4 RESPONSABILIDADE DE TERCEIROS
Como já mencionado acima, todo responsável, pessoa estranha à relação Fisco-Contribuinte, é tido como terceiro[9]. O CTN, porém, reserva os artigos 134 e 135[10] para tratar da responsabilidade de terceiros – como se só naqueles casos a figura do terceiro se fizesse presente.
O artigo 134 traz hipóteses relacionadas a atos e omissões de terceiros, os quais acarretam a responsabilidade tributária. Da leitura do dispositivo, extrai-se ser necessária a presença de dois requisitos para que a responsabilidade seja transferida ao terceiro, quais sejam: impossibilidade do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte e ação ou indevida omissão imputável à pessoa designada como responsável.
É manifesta a presença do benefício de ordem na cobrança do tributo, pois só responderá o responsável, caso o contribuinte não cumpra a obrigação. Infere-se, daí, ser responsabilidade subsidiária a descrita no dispositivo, e não solidária, como consta no Codex.
No que diz respeito ao segundo requisito, Amaro (2007) ressalta:
Observe-se que não basta mero vínculo decorrente da relação de tutela, inventariança etc., para que se dê a eleição do terceiro como responsável; requer-se que ele tenha praticado algum ato (omissivo ou comissivo), pois sua responsabilidade se conecta com os atos em que tenha intervindo ou com as omissões pelas quais for responsável. (AMARO, 2007, p. 326).
Neste sentir, tem-se:
Mesmo com a impossibilidade de cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, somente haverá responsabilidade dos ‘terceiros’ enumerados nas alíneas do art.134 se estes tiverem participado ativamente da situação que configura fato gerador do tributo ou tenham indevidamente se omitido. (ALEXANDRE, 2012, p. 326).
O artigo 135 estabelece a responsabilidade nos casos em que o terceiro viola a lei, o contrato social ou o estatuto, ou seja, atua de maneira irregular. Ainda à luz dos ensinamentos de Amaro (2007, p.327), para que reste configurada esta hipótese de responsabilidade, enxerga-se a necessidade de “haver prática de ato para o qual o terceiro não detinha poderes, ou de ato que tenha infringido a lei, o contrato social ou o estatuto de uma sociedade.”
O dispositivo reza serem “pessoalmente responsáveis” as pessoas elencadas em seus incisos, desde que realizem a conduta supradescrita. Ao fazer uma interpretação literal, Amaro (2007, p.327) proclama: “não se trata, portanto, de responsabilidade subsidiária de terceiro, nem de responsabilidade solidária. Somente o terceiro responde, ‘pessoalmente’.” Contudo, Cassone (2007, p. 170) doutrina: “pelo que se vê, o dispositivo, indiretamente, exclui a responsabilidade da pessoa jurídica, que é desconsiderada, para atribuir a responsabilidade a pessoa física que cometeu o excesso não autorizado. Mas, em verdade, opera-se a solidariedade.” Alexandre (2012, p. 331, grifou-se) arremata afirmando que a “responsabilidade será pessoal e não apenas solidária.”
Valendo-se do escólio dos mestres e do brocardo que anuncia “quem pode mais, pode menos”, conclui-se que caberá ao credor optar entre a responsabilidade solidária e a pessoal do agente do ato irregular.
Os dispositivos sobre os quais foram tecidos breves comentários devem ser levados em conta como regras matrizes, bússolas da responsabilidade de terceiros. Estabelecidas todas aquelas premissas, abordar-se-á a consequência processual mais significante da responsabilização do terzo: o redirecionamento da execução fiscal.
5 REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL
O redirecionamento é uma mudança dos sujeitos no polo passivo da execução, que deve ocorrer quando há “modificação subjetiva no polo passivo da obrigação” (AMARO, 2007, p. 303). Essencial à compreensão do instituto é distinguir as relações processual e de direito material. Os pressupostos desta são definidos pelas normas gerais – que tratam da responsabilidade tributária – estudadas acima, ao passo que os daquela são: o inadimplemento da obrigação e o título executivo (STJ, 2006).
Em precisa lição, Arthur César afiança:
Redirecionamento é um fenômeno processual. Significa deslocar o foco do processo de execução em direção ao patrimônio de terceiro que, de alguma forma, possa ser legalmente responsabilizado pelo débito exequendo. Noutro giro, traz-se outra pessoa para o polo passivo da execução. (PEREIRA, 2011, p. 15).
Interessante rememorar que o fenômeno do redirecionamento não se cinge à seara tributária, fazendo-se presente, também, em diversos dispositivos do Código Civil[11] e da legislação extravagante[12]. Logo se vê que o instituto é amplamente adotado pela legislação pátria. Assim, garante-se ao exequente mais uma ferramenta para ver atendido seu crédito.
Nos casos da execução fiscal, em especial, a recuperabilidade do crédito público é baixíssima. O estudo sobre o “Custo unitário do processo de execução fiscal na justiça federal”, produto de uma parceria entre o IPEA e o CNJ, traz diversos dados estatísticos neste sentido (2011, p. 33):
O processamento da execução fiscal é um ritual ao qual poucas ações sobrevivem. Apenas três quintos dos processos de execução fiscal vencem a etapa de citação (sendo que em 36,9% dos casos não há citação válida, e em 43,5% o devedor não é encontrado). Destes, a penhora de bens ocorre em apenas um quarto dos casos (ou seja, 15% do total), mas somente uma sexta parte das penhoras resulta em leilão. Contudo, dos 2,6% do total dos processos que chega a leilão, em apenas 0,2% o resultado satisfaz o crédito. (IPEA, 2011, p. 33).
Ademais, outros dados corroboram o acima demonstrado, como o fato de que, em um período de dez anos (1994 a 2004), a União arrecadou pouco mais de R$ 13 bilhões. O montante, apesar de parecer alto, é uma pequena parte do todo da dívida – que, na época, era de R$ 240 bilhões (CASTRO et al., 2005, p. 10).
Acresça-se ao quadro o elevadíssimo índice de mortalidade das empresas brasileiras[13], que deixam de funcionar, sem, na maioria das vezes, deixar qualquer bem para garantir seus débitos. O redirecionamento, desse modo, é um meio de remediar a situação.
5.1 Objetivos do Redirecionamento da Execução Fiscal
É mais comum do que se imagina as pessoas jurídicas executadas não possuírem patrimônio algum ao tempo do ajuizamento da execução. Em decorrência disto, as execuções fiscais não logram êxito em recuperar o crédito público. De suma importância para os entes fazendários é redirecionar a execução em face dos sócios que derem azo a esta possibilidade. Nesta toada, é possível que a Fazenda Pública atinja os bens dos integrantes do quadro societário das pessoas jurídicas devedoras, desde que preenchidos os requisitos legais.
A principal meta do redirecionamento é, por óbvio, ver adimplida a obrigação. Sendo assim, sua finalidade precípua é garantir a arrecadação do crédito público. Mas este é apenas um dos objetivos do redirecionamento, o de caráter fiscal. O instituto se destina a outros fins extrafiscais, como proteção ao princípio da isonomia e da livre concorrência. Explica-se.
É dever constitucional de todos os cidadãos pagar tributos, sendo uma consequência do princípio da igualdade. É fácil enxergá-lo dessa forma no momento de incidência das normas tributárias, as quais, como foi visto, são instituídas em consonância com o princípio da capacidade contributiva.
Na ocasião do cumprimento da lei, porém, alguns cidadãos recolhem espontaneamente o tributo, enquanto outros não. Dessa forma, é preciso compelir o devedor a pagar o tributo devido, a fim de que os efeitos da incidência da lei também sejam igualitários. Tem-se aqui o instante em que a Fazenda Pública deve se valer de todos os instrumentos que possui para cobrar o crédito e promover a justiça fiscal.
É evidente que há grave prejuízo para a livre concorrência se uma empresa carreia aos cofres públicos os tributos devidos, ao passo que outra empresa, do mesmo ramo, deixa de pagá-los. Isto, porque aquela que não recolheu o tributo e, consequentemente, não foi onerada com a altíssima carga tributária nacional, poderá comercializar seus produtos e serviços por preços inferiores aos das demais.
Não se deve olvidar da máxima “a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza”. Parece ser o caso. A empresa inadimplente se beneficia exatamente em virtude de sua atitude contra legem, passando a dispor de mais capacidade para investir, além de perceber maior lucro. A concorrente, por sua vez, é prejudicada mesmo tendo obedecido a seus deveres fiscais.
O instrumento utilizado pela Fazenda Pública para igualar a situação da empresa contribuinte a da empresa devedora é a execução fiscal, na qual o escopo é obrigar esta a cumprir seu dever.
5.2 Redirecionamento da Execução Fiscal Decorrente de Atuação Irregular
Como já mencionado, é alto o insucesso da execução fiscal em razão da inexistência de bens da pessoa jurídica. Como ninguém ignora, o patrimônio da pessoa jurídica e o dos sócios que a compõem não se confundem. Assim, o patrimônio dos sócios fica protegido dos atos de execução. Porém, é de se assinalar que, por vezes, os sócios responsáveis pela gestão da pessoa jurídica atuam de maneira irregular, extrapolando suas funções e dando ensejo ao nascimento ou inadimplemento de obrigações tributárias. Não seria justo, então, eles usufruírem desse patrimônio enquanto os sócios das empresas concorrentes lutam para se salvar dos prejuízos causados pela concorrência ilegal e desleal.
Em razão disso, o CTN prevê, em seu artigo 135, a responsabilização dos “diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”, que atuarem com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.” (BRASIL, 1966, p. 21). Ao tratar do tema, em seu voto no RE 562.276, a Ex Ministra Ellen Gracie ensina:
O pressuposto de fato ou hipótese de incidência da norma de responsabilidade, no artigo 135, III, do CTN, é a prática de atos, por quem esteja na gestão ou representação da sociedade, com excesso de poder ou à infração a lei, contrato social ou estatutos e que tenham implicado, se não no surgimento, ao menos o inadimplemento de obrigações tributárias. (BRASIL, 2010, p. 2).
Extrai-se do referido dispositivo um dever implícito de, na direção, gerência ou representação da pessoa jurídica, agir com esmero, observar os ditames da lei e atuar sem exploração dos poderes legais e contratuais de gestão, objetivando o não cometimento de ilícitos que acarretem o inadimplemento de obrigações tributárias.
É pacífico o entendimento no sentido de que o ilícito precisa ser qualificado, ou seja, dele deve surgir a própria obrigação ou seu inadimplemento. Registre-se que o ilícito não se confunde com o mero atraso no pagamento dos tributos, possibilidade inerente ao risco do negócio. Tal pensamento foi consagrado pela Súmula STJ, enunciado 430, que reverbera: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio gerente.”
O artigo 135, III regula, assim, a responsabilidade dos sócios administradores da empresa de forma geral. Possui estrutura própria e requer a existência de um fato determinado, sem o qual não é possível atribuir a responsabilidade ao terceiro. Estes fatos específicos devem ser analisados caso a caso, uma vez que o legislador não os abordou pormenorizadamente. Alguns casos, entretanto, repetem-se com tanta frequência que os Tribunais já uniformizaram a jurisprudência estabelecendo se configura ou não hipótese de atuação irregular. Dentre eles, está a dissolução irregular da empresa, que será analisada a seguir.
5.3 Redirecionamento nos casos de dissolução irregular da empresa
Há divergência no que diz respeito ao dispositivo legal no qual se enquadraria a responsabilidade do sócio gerente no caso de dissolução irregular. Parte da doutrina defende que a hipótese subsumiria ao previsto no artigo 134, VIII c/c 135, III [14]; outra parcela, ao previsto no artigo 137[15]. A doutrina majoritária e os tribunais superiores, porém, entendem que a responsabilidade do sócio administrador de empresa dissolvida irregularmente advém simplesmente do artigo 135, III. Neste trabalho, adotar-se-á o último entendimento.
O Superior Tribunal de Justiça, em sua Súmula, n° 435, afirma: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
O rol elencado pelo enunciado, entretanto, não exaure as hipóteses de caracterização da dissolução irregular. Essa pode ocorrer por diferentes meios, como: informações da Justiça Trabalhista de que a pessoa jurídica não cumpre as obrigações devidas a seus empregados; informações nos sistemas próprios das Procuradorias das Fazendas Públicas de que a empresa está inativa; promoção de baixa nos registros com apuração de débitos realizada posteriormente, entre outros. Salienta-se ser mister a reunião de indícios de que a pessoa jurídica encerrou suas atividades de forma irregular.
Comprovada a dissolução irregular, é preciso identificar os sócios que atuavam com poderes de gerência à época em que se deu a dissolução, pois só a eles poderá ser transferida a responsabilidade. Nas palavras de Grupenmacher (2005, p. 425), “em ocorrendo encerramento irregular da empresa, com intenção de fugir ao pagamento dos débitos de natureza tributária, a responsabilidade pessoal permanece em função do encerramento fraudulento da sociedade.” Apoiando este entendimento, Ferragut reverbera:
Assim, não basta indicar o nome de todos os sócios constantes do contrato social, é imperioso que se individualize o autor da dissolução irregular, demonstrando ao menos qual sócio geria a sociedade e decidia pela prática dos negócios empresariais tipificados como fatos jurídicos tributários (ou que, de alguma forma, pudessem resultar em obrigações tributárias). (FERRAGUT, 2006, p. 307).
Desta forma, os sócios a serem responsabilizados serão aqueles cujos nomes constem dos atos constitutivos e tenham poderes de gerência à época da dissolução. Impende ressaltar que caberá ao credor comprovar que o administrador agiu com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatutos. Nesta linha, o STJ decidiu no AgRg REsp 276.779/SP: “Prova não feita pelo Fisco de que, na época da ocorrência do fato gerador tributável, o recorrido era sócio, da sociedade ter sido dissolvida irregularmente ou de que ele exercia função de sócio-gerente.”
Tendo isto em vista, infere-se que, em regra, os sócios não respondem pelas obrigações da empresa. No entanto, esta regra, como qualquer outra, comporta exceções, dentre as quais se encontra a hipótese de dissolução irregular da pessoa jurídica. Neste caso, desde que a Fazenda Pública logre provar qual sócio ocupava o cargo de gerência no momento da dissolução, a execução poderá ser redirecionada em face dele. Após o redirecionamento, o patrimônio do sócio-gerente passará a também responder pela dívida. Salienta-se que o sócio-quotista não poderá ser responsabilizado, porquanto a responsabilização se dará não pelo fato do administrador ser sócio, mas sim por possuir o poder de gerir a instituição, acrescido ao mau uso deste poder.