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A curvatura do espaço jurídico: neutralidade, segurança jurídica e hermenêutica na perspectiva quântica

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Agenda 06/08/2014 às 14:33

As teorias que criticam a abordagem científica do Direito encontram respaldo em conceitos desatualizados sobre a ciência e seu método. Aborda-se o pensamento jurídico à luz dos paradigmas inaugurados pela física moderna, tendo por base conceitos quânticos, relativísticos e probabilísticos.

“As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.”

Carlos Drummond de Andrade

IDEIAS PROPEDÊUTICAS

Até o início do século XX, imperavam no cenário científico os postulados de Isaac Newton, que brilhantemente soube combinar matemática à física. Com uma clareza de raciocínio extraordinária, ele demonstrou que todos os movimentos observados na natureza, desde a queda de uma gota de chuva até a trajetória dos cometas, podem ser compreendidos em termos simples por leis de movimento expressas matematicamente. “Desde então, o raciocínio quantitativo tornou-se sinônimo de ciência, e com tal sucesso que a metodologia newtoniana foi transformada na base conceitual de todas as áreas da atividade intelectual” (GLEISER, 1997, p.163-164).

A concepção de espaço na visão de Newton era de um espaço absoluto. Em outros termos, com base na física mecanicista, a dimensão espacial era neutra e consistia uma realidade indiferente aos eventos que nele interagiam. Na mesma esteira, o tempo refletia uma ideia de continuidade e regularidade e totalmente livre de referências subjetivas. Segundo seus estudos, a força de atração que existia entre os corpos era exterior, um “mistério” alheio àquele espaço determinado.

Assim, de acordo com a estrutura inaugurada por Newton, o ambiente físico seria um espaço hermético, no qual o cientista não interferia nos fenômenos estudados, pois que desempenhava o simples papel de observador. Nesse contexto clássico, o subjetivismo do cientista era irrelevante.

Com o advento da teoria da relatividade, Einstein “desvenda” o mistério da gravidade, concluindo que aquela força que existia entre os corpos seria decorrente da curvatura do espaço, e não de uma energia misteriosa. Abandona-se o ideal de espaço neutro e uniforme para filiar-se a um modelo de espaço curvo, deformado geometricamente pela presença da matéria. Ademais, reformula-se a concepção contínua de tempo, tendo em vista que a sequência causal de um fenômeno seria sempre relativa a um determinado observador.

Ainda no embalo das revoluções, a física quântica, através de estudos da micro-realidade, põe em cheque a exatidão científica, quando revela o caráter dual da matéria, que ora se comporta como onda, ora como partícula. A incerteza, por fim, toma conta de todo o cenário da física clássica.

Tomando como ponto de partida a quebra do paradigma da compreensão do mundo físico como estático, através dos conceitos relativísticos e quânticos, percebe-se que todo o universo está imerso em uma realidade cósmica em constante movimento, como numa dinâmica cosmo-social. A confiança dos cientistas em sua capacidade de observar e entender um fenômeno, sem alterá-lo fundamentalmente no processo, foi carcomida, de tal maneira que hoje seria inconcebível falar em espaço social independente e apartado de seus agentes.

Em outras palavras, a Física do século XX nos convida a um novo modelo de ciência e de pensamento, no qual a participação do cientista, desde a definição do objeto até o próprio resultado do estudo, intensifica e altera significativamente sua “arena” de observação. 

Sob o prisma epistemológico, a verdade objetiva e natural cede lugar a uma verdade subjetiva e artificial. Não há mais uma verdade determinada a ser descoberta pelo cientista, mas uma provável a ser criada a partir do seu olhar. Essa evolução de pensamento surtiu reflexos em todas as searas de conhecimento, incluindo as ciências sociais, e, por sua vez, a ciência jurídica.

Importa ressaltar que não se trata, por óbvio, de importar fórmulas matemáticas na resolução dos conflitos sociais, tampouco de sugerir uma hierarquia epistemológica com o Direito, mas sim de desfrutar de conceituações físicas e filosóficas que possam enriquecer nossa compreensão sobre questões sociais e legais, explorando ramificações heurísticas para a lei. Não convém tecer aprofundadas considerações sobre postulados físicos, tampouco trazer equações numéricas, que geralmente afastam os juristas menos pacientes. O que se propõe aqui é, antes, uma mudança de postura.

Se o bater de asas de uma borboleta pode provocar um furacão do outro lado do mundo[1], há, deveras, uma interligação no universo muito mais convincente do que se possa imaginar. Em suma, em âmbito bem mais estrito, porém não menos impactante, estudaremos aqui a influência da física moderna no Direito.


CAPÍTULO I: OS ENTRAVES PARADIGMÁTICOS PRÉ-MODERNOS

Aduzindo à obra de Freud, Túlio Lima Vianna pondera que, ao longo da história, o narcisismo humano sofreu três golpes truculentos da ciência: o cosmológico, o biológico e o psicológico. O primeiro golpe ocorreu quando Copérnico demonstrou que a Terra não era o centro do universo. O golpe biológico, quando Darvin revelou que o homem não era um ser superior ou diferente dos animais, já que deles ascende. Por fim, o terceiro, um golpe psicológico, quando o próprio Freud evidenciou que a vida de nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada e que nossos processos mentais são, em si, inconscientes e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança. (FREUD, 1996, p.147, apud, VIANNA, 2008, p.110).

Ainda sobre os choques sofridos pelo egocentrismo humano, Viana (2008, p.110) pontua:

Não obstante esses severos golpes, o narcisismo humano ainda assim podia gabar-se de sua ciência, pois por meio dela construíra representações da realidade centradas no planeta Terra, na espécie humana e em seu próprio ego. (...) A consciência mantinha o ser humano em posição singular na natureza, pois lhe possibilitava explicar a realidade por meio de representações mentais do universo circundante. (...) O maltratado narcisismo humano sofreu então um quarto golpe, abalando definitivamente os fundamentos da teoria do conhecimento: o golpe quântico, que rompeu a dicotomia res cogitans e res extensa e afastou a possibilidade da busca de uma verdade objetiva e determinística mesmo nas ciências naturais.

Mais que acertados foram os apontamentos freudianos. Indubitável que as descobertas, mormente as científicas, reorganizaram toda a estrutura de pensamento do homem moderno, a começar pela ruína do mundo geocêntrico, que tinha o sujeito como núcleo e fundamento de todo conhecimento, a própria fonte da verdade absoluta.

Não obstante as inúmeras revoluções epistemológicas que ocorreram ao longo dos séculos, no campo das ciências naturais e sociais, nosso eixo de estudo focará as principais transformações do mundo físico e seus reflexo nas diversas áreas de conhecimento, sobretudo no Direito.

1.     O reducionismo cartesiano

 Não por acaso os estudiosos e historiadores denominaram os séculos XVI e XVII de a “Idade da Revolução Científica”, dado o merecido reconhecimento do papel crucial da ciência nas mais emblemáticas transições paradigmáticas da época.

Itália, final do século XVI. Um físico de apenas 19 anos de idade realiza um experimento sobre a “Queda Livre dos Corpos”. Os preciosos estudos e a audácia desse jovem cientista, chamado Galileu Galilei, serviriam de base para uma verdadeira revolução, que romperia drasticamente com toda visão organicista e teocêntrica de mundo, dando lugar a um universo de moldes antropocêntricos[2].

Ao dirigir o recém-inventado telescópio para os céus e aplicar seu extraordinário talento na observação científica dos fenômenos celestes, Galileu fez com que a velha cosmologia fosse superada e estabeleceu a hipótese de Nicolau Copérnico – de que a Terra não seria o centro do universo – como teoria científica válida[3].

Desse modo, cai por terra (permita-se a ironia) todo aquele universo da Idade Média, fundado na fé, e ganha relevo uma nova ordem, edificada no chamado conhecimento racional e na verdade objetiva. O homem deixa de ser um mero intérprete da vontade divina e passa a ser o sujeito da sua própria história.

Enquanto isso, na Inglaterra, Francis Bacon descrevia o método empírico da ciência e formulava uma teoria clara do procedimento indutivo, atacando frontalmente as escolas tradicionais de pensamento e desenvolvendo uma verdadeira paixão pela experimentação científica. Superando a indução aristotélica que apenas ordena o já conhecido, a indução baconiana amplia o conhecimento avançado do conhecido para o desconhecido.

Nos escritos de Bacon, a antiga concepção da Terra como matriz nutriente foi radicalmente transformada e, com o advento da revolução científica, finalmente o conceito orgânico da natureza foi substituído pela metáfora do universo como máquina. Essa mudança, tida como verdadeiro divisor de águas na evolução do pensamento ocidental, contou com a participação avultosa de duas figuras do século XVII, que merecem aqui um destaque especial: Descartes e Newton.

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Consagrado como o fundador da filosofia moderna, René Descartes foi um excepcional matemático, cujo horizonte filosófico influenciou-se dos novos modelos de física e de astronomia. A visão de Descartes era guiada pela certeza do conhecimento científico e sua inclinação principal era distinguir, em todos os campos do saber, a verdade do erro. “Toda ciência é conhecimento certo e evidente”, escreveu ele. “Rejeitamos todo conhecimento que é meramente provável e consideramos que só se deve acreditar naquelas coisas que são perfeitamente conhecidas e sobre as quais não pode haver dúvidas” (DESCARTES, apud, CAPRA, 2006, p. 53).

Segundo o raciocínio cartesiano, a chave para decifrar o universo era conhecer sua estrutura matemática. Descartes acreditava que a certeza e a ciência carregavam uma essência eminentemente matemática e afirmava que sua física nada mais era que geometria. Assim, ele escreveu a respeito das propriedades dos objetos físicos:

Não admito como verdadeiro o que não possa ser deduzido, com a clareza de uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade não podemos duvidar. Como todos os fenômenos da natureza podem ser explicados desse modo, penso que não há necessidade de admitir outros princípios da física, nem que sejam desejáveis (DESCARTES, apud, CAPRA, 2006, p. 53).

Na visão de Descartes, não havia vida ou espiritualidade na matéria. O universo material era nada mais que uma máquina regida por leis mecânicas. Tudo no mundo material podia ser explicado, segundo ele, em função da organização e do movimento de suas partes. O método analítico que usava – provavelmente sua maior contribuição à ciência – consistia justamente em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-las em sua ordem lógica.

Inconteste o fato de que esse método foi extremamente útil e influenciou o desenvolvimento de teorias científicas modernas, malgrado seu excessivo aspecto reducionista. Isto porque, à guisa de buscarem maior aprofundamento em certos campos de conhecimento, esse método busca uma análise fragmentária que concentra todas as atenções em determinado aspecto dos fenômenos, ignorando ou desprezando outras variáveis que também influenciam nos resultados[4].

A dicotomia lógica cartesiana, representada pela divisão entre ser pensante (res cogitans) e a coisa pensada (res extensa) revelou o sustentáculo teórico que induziria toda uma estrutura de pensamento, que, inclusive, encontra-se arraigada até hoje no senso comum geral. Da separação entre sujeito observador e objeto investigado, infere-se a neutralidade científica, onde o observador tem o papel exclusivo de descrever os fatos, sem intervir no estudo.

Trazendo essa percepção para o universo jurídico, podemos citar o ilustre Hans Kelsen como discípulo de Descartes, pois que adaptou a objetividade e exatidão do método cartesiano para a formulação de um positivismo legal.

A bem da verdade, esse quadro mecânico da natureza tornou-se o paradigma dominante da ciência no período que se seguiu a Descartes. Contudo, foi na crença da certeza do conhecimento científico (premissa essencial da filosofia cartesiana) que Descartes errou. Mais adiante, a física do século XX vem nos mostrar de maneira convincente que não existe verdade absoluta em ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados e aproximados. Desse modo, reorganiza-se a própria noção de ciência, refletindo em mudanças de paradigmas das mais diversas áreas de conhecimento[5].

2.     O mecanicismo de Newton

Inglaterra, 1642. Nascia o homem que daria vida ao sonho cartesiano. Não obstante ter criado o arcabouço conceitual da ciência do século XVII, as percepções de Descartes permaneceram como simples visões, durante sua vida. Foi o célebre cientista Isaac Newton que transformou em realidade a teoria idealizada por Descartes, dando mais impulso à revolução científica que se instaurava.

Realizando uma magnífica síntese dos pensamentos de Copérnico, Bacon, Galileu e Descartes, Isaac Newton desenvolveu uma completa formulação matemática da concepção mecanicista da natureza. Desse modo, a física newtoniana forneceu uma consistente teoria matemática do mundo, que permaneceu como sólido alicerce do pensamento científico até boa parte do século XX.

Antes de Newton, duas tendências opostas orientavam a ciência seiscentista: o método empírico, indutivo, representado por Bacon, e o método racional, dedutivo, representado por Descartes. Newton, em seus Principia, introduziu a combinação apropriada de ambos os métodos, sublinhando que tanto os experimentos sem interpretação sistemática quanto a dedução a partir de princípios básicos sem evidência experimental não conduziriam a uma teoria confiável. Ultrapassando Bacon em sua experimentação sistemática e Descartes em sua análise matemática, Newton unificou as duas tendências e desenvolveu a metodologia em que a ciência natural passou a basear-se desde então (CAPRA, 2006, p. 59).

Na visão mecanicista de Newton, todos os fenômenos físicos estariam reduzidos ao movimento de partículas materiais, causado por sua atração mútua determinada pela gravitação universal. Foram estabelecidas leis fixas de acordo com as quais os objetos materiais se moviam, e acreditava-se que eles explicassem todas as mudanças observadas no mundo físico[6].

A explicação da origem da força gravitacional que movia as partículas, bem como as próprias partículas, era atribuída a Deus e, por conseguinte, não estavam sujeitas a uma análise ulterior.

[...] Na concepção newtoniana, Deus criou, no princípio, as partículas materiais, as forças entre elas e as leis fundamentais do movimento. Todo o universo foi posto em movimento desse modo e continuou funcionando, desde então, como uma máquina, governado por leis imutáveis. A concepção mecanicista da natureza está, pois, intimamente relacionada com um rigoroso determinismo, em que a gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada. Tudo o que aconteceu teria tido uma causa definida e dado origem a um efeito definido, e o futuro de qualquer parte do sistema podia — em princípio —— ser previsto com absoluta certeza, desde que seu estado, em qualquer momento dado, fosse conhecido em todos os seus detalhes (CAPRA,2006, p. 61).

Em palavras que ilustram de maneira prática a física de Newton, o professor Laurence H. Tribe[7], em brilhante artigo intitulado “The Curvature of Constitucional Space: what lawyers can learn from modern physics” assinala que a física newtoniana de dois séculos atrás, considerava que os objetos agiam uns sobre os outros através da extensão de um espaço neutro e indiferenciado, de uma forma objetiva e cognoscível, de acordo com simples leis da física que pareciam explicar a realidade observada sem a necessidade de maiores reflexões sobre a estrutura básica do universo. Como num jogo de bolinhas de gude, objetos podem colidir uns com os outros, mas eles não podem alterar o campo que se joga (TRIBE, 1989, p. 3, tradução nossa)[8].

Assim, para dar validade a seus postulados, Newton elaborou a noção de um espaço absoluto, uma arena geométrica onde os fenômenos físicos se manifestam, constituindo uma realidade indiferente aos eventos que nele interagem. Do mesmo modo, o tempo, na visão newtoniana, era absoluto, um palco totalmente indiferente à presença de plateia. E com essas definições Newton formula suas três famosas leis do movimento, que condensam todos os postulados necessários à descrição do movimento de objetos materiais.

Nesse diapasão, com base nos conceitos erguidos por Newton, fruto do amadurecimento cartesiano, a ciência limitar-se-ia à pura descrição dos eventos físicos, desempenhando o cientista um papel de mero observador perante o fenômeno estudado. A crença na neutralidade do cientista decorria do fato de que, qualquer que fosse o referencial do observador – sua posição e/ou velocidade –, as medidas do espaço e do tempo seriam as mesmas.

Em suma, a física clássica tinha como alicerce a neutralidade do cientista e a irrelevância das condições subjetivas daquele na determinação do objeto em estudo.

A respeito da influência da teoria newtoniana sobre as mais diversas searas do conhecimento, Durval Carneiro (2009, p. 5) pontua:

Calcados no método de raciocínio cartesiano, os padrões de pesquisa da Física newtoniana foram empregados em diversos outros campos científicos, tendo se tornado a “ciência-padrão” em relação a todas as demais formas de conhecimento, a tal ponto de a Sociologia Clássica ter sido inicialmente chamada de “Física Social” (Auguste Comte). Em seguida, abriu-se espaço para o “organicismo” ou “darwinismo social” (Herbert Spencer), o pensamento estatístico de Émile Durkheim e historicismo de tipos ideais pregado por Max Weber. A lógica cartesiana também marcou presença na Economia Clássica (Adam Smith) e, posteriormente, na chamada Macroeconomia (J. M. Keynes). Na Psicologia foram desenvolvidas diversas correntes reducionistas tais como o estruturalismo (Wilhelm Wundt), o funcionalismo (William James), o behaviorismo (J. Watson e B. Skinner) e até mesmo a psicanálise (Freud). E na Medicina Moderna foram surgindo cada vez mais especializações, afastadas das chamadas Medicinas Tradicionais, de visão holística (indígena, chinesa, hindu etc.). A influência do pensamento cartesiano, enfim, revelou-se decisiva na definição da ciência moderna, levando a que outros métodos de conhecimento, tradicionalmente localizados à margem deste paradigma, fossem aviltados, ridicularizados, tratados como mitos, lendas, superstições, curandeirismos ou coisas do gênero.

Segundo CAPRA (2006, p. 156), seguindo Descartes, os psicólogos adotaram a divisão estrita entre a res cogitans e a res extensa, dificultando o entendimento da interação mútua da mente e o corpo. Os estruturalistas estudaram a mente através da introspecção e tentaram analisar a consciência em seus elementos básicos. Os behavioristas, por sua vez, concentraram-se exclusivamente no estudo do comportamento e, assim, foram levados a ignorar ou negar a existência pura e simples da mente.

Na mesma esteira, procurando aplicar a eficiência das ciências naturais à sociologia, Durkhein instruía o sociólogo a encarar os fatos sociais como objetos que, lhe sendo exteriores, deveriam ser medidos, observados e comparados independentemente do que os indivíduos envolvidos pensassem ou declarassem a seu respeito.

Desse modo, percebe-se que todo raciocínio emergido na época em que o pensamento científico era dominado pelo modelo newtoniano de realidade, adotou por modelo a física clássica, incorporando os conceitos básicos da mecânica em sua estrutura teórica.

Dada a hegemonia do mecanicismo em todas as searas do conhecimento humano, conforme apontado acima em alguns exemplos ilustrativos, na Ciência do Direito não teria sido diferente.

Houve no campo do Direito um fértil terreno para o desenvolvimento de correntes positivistas que passaram a pregar a aplicação silogística da norma jurídica ao fato. Dentre elas, a Escola da Exegese[9], a Jurisprudência dos Conceitos, o Pandectismo, o método histórico-natural de Jhering, e tantas outras que refutavam qualquer valoração por parte do aplicador[10]. Inclusive, a própria noção tripartida dos poderes pregava o culto objetivo da lei, de tal forma que os juízes haveriam de se comportar meramente como “a boca que pronuncia as palavras da lei”, na célebre frase de Montesquieu.

Citando as palavras de Tércio Sampaio Ferraz, Durval Carneiro explica:

[...] a crítica dos pensadores iluministas e a necessidade de segurança da sociedade burguesa passou, então, a exigir a valorização dos preceitos legais no julgamento dos fatos. Daí se originou um respeito quase mítico pela lei, base, então, para o desenvolvimento da poderosa Escola da Exegese, de grande influência nos países em que dominou o espírito napoleônico. A redução do jurídico ao legal foi crescendo durante o século XIX, até culminar no chamado legalismo. Não foi apenas uma exigência política, mas também econômica. Afinal, com a Revolução Industrial, a velocidade das transformações tecnológicas aumenta, reclamando respostas mais prontas do direito, que o direito costumeiro não podia fornecer (FERRAZ, 2003, p. 74-75, apud CARNEIRO NETO, 2009, p. 08).

3.     A pureza Kelseniana

Em seguida, radicalizando toda uma guinada positivista que vinha sendo realizada desde o século XIX, ganha relevo a famosa Teoria Pura do Direito, formulada pelo célebre Hans Kelsen, que pregava uma teoria purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, visando aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão.

Com a finalidade maior de obter um conhecimento acurado do Direito, Kelsen exclui todos os elementos estranhos à cognição do Direito positivo, como o Direito Natural e a Filosofia do Direito.

Com efeito, o qualificativo positivista[11] é atribuído à obra jurídica de Hans Kelsen pela sua assumida pretensão de somente descrever as normas jurídicas existentes, retirando do cientista do Direito a tarefa de emitir juízos de valor sobre seus conteúdos ou mesmo de questionar sua validade. Segundo Kelsen, a discussão sobre a valoração das normas seria um papel reservado à Filosofia do Direito, um estudo apartado da ciência jurídica.

Kelsen buscou na lógica formal a validação das normas jurídicas e por isso sua teoria é denominada de “normativismo lógico”[12].

Interessa-nos perceber que essa secessão de tarefas entre a ciência e a filosofia jurídica reflete a própria concepção de ciência subjacente ao pensamento kelseniano, qual seja, o entendimento, surgido com o positivismo filosófico e especificamente nas ciências naturais, de que as ciências trabalhariam com o empírico, com a observação dos fatos da realidade, ao passo que a filosofia se restringiria à especulação, à mera erudição.

Desse modo, nota-se no ideal de pureza de Kelsen a influência do método mecanicista utilizado nas ciências naturais por Newton, no que tange o seu empirismo e na incumbência exclusivamente descritiva e observatória do cientista.

Em verdade, foi por intermédio do filosófico de Augusto Comte (1798-1857) que o positivismo jurídico chega à reformulação do próprio conceito de Direito, retirando deste todo resquício metafísico, opondo-se assim às concepções jusnaturalistas. A partir de então, o Direito é identificado à lei, não havendo nada acima dele que funcione como parâmetro de aferição de sua justeza.

Nesta senda, o conhecimento caracterizar-se-ia pela elaboração de leis tendo em vista a regularidade dos fenômenos. A busca de tais leis, mais especificamente, das leis naturais, seria feita pela observação, abdicando-se de qualquer pergunta por uma causa última.

 Tal concepção de ciência, não obstante ter surgido atrelada às ciências da natureza, foi e ainda é largamente utilizada nas ciências humanas, a citar, na ciência jurídica, muito embora existam críticas a respeito da especificidade de seus fenômenos que levam alguns a questionar a própria possibilidade de considerá-las como ciência. Pergunta-se se é ainda legítimo adotar a concepção de ciência das ciências naturais para analisar as ciências do homem e, neste caso, a própria ciência jurídica[13].

Ocorre que, Kelsen, em suas teorias, de fato, transpõe o método das ciências naturais para a análise do Direito, acreditando ser tal metodologia indispensável para se alcançar a objetividade que o conhecimento científico do fenômeno jurídico, em seu entender, requereria. Inclusive, nesse sentido, já no prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, ele assim se pronunciou:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a jurisprudência[14], que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. (KELSEN, 1997, p.11)

Curioso notar que, analogamente ao espaço neutro, hermético e absoluto idealizado por Newton, Kelsen formula um método onde seu objeto de estudo, qual seja, a norma jurídica, é, de per si, independente e pura. Na teoria kelseniana, assim como já demonstrado particularmente na física pré-moderna, a pureza espacial e o desprezo aos fatores externos estão presentes como ideal metodológico.

Assim, Kelsen postula o estudo científico do Direito positivo e formula uma teoria positivista, afastada da doutrina do Direito natural (segundo a qual as normas de acordo com a natureza humana devem fornecer a pauta do Direito positivo) e da doutrina do Direito histórico (que entendia que o costume jurídico deve ser recebido como o melhor Direito, pois que originado espontaneamente do seio do povo).

O mundo da teoria pura do Direito é o mundo da realidade ideal, e não lhe interessa, por incompatibilidade com a pureza metódica, o mundo da metafísica. Da mesma forma, não lhe importa o mundo dos fenômenos, pela impureza adstrita à própria realidade social. Há, nesse contexto a distinção entre dois mundos: o mundo do “ser” (do Direito real e possível) e o do “dever-ser” (do Direito tido como justo).

Nessa visão, não há propósito em legitimar o Direito pela sua justiça ou em desqualificá-lo pela sua injustiça. Segundo ele, a validade das normas decorre de um sistema hierarquicamente escalonado. Assim, a validade de uma norma, ou seja, seu sentido objetivo pressupõe outra norma hierarquicamente superior, e assim sucessivamente, até se chegar à Constituição.

Mas, se toda norma adquire validade a partir de uma norma superior, de onde adviria a validade da Constituição? Como solucionar o paradoxo de ser a Constituição o fundamento de validade das demais normas e não possuir, ela mesma, fundamento? Como solucionar essas questões sem romper com sua opção metodológica, isto é, sem recorrer a elementos externos ao Direito para justificá-lo, como a natureza ou a Deus?

Por conseguinte, como um artifício mental do autor para tornar coerente e operacional sua teoria e para garantir o respeito à própria Constituição, já que não há norma posta acima dela, Kelsen criou a chamada Norma Fundamental Hipotética, uma pressuposição lógico-transcendental, uma norma que, em última instância, conferiria validade a todo o ordenamento jurídico, ao estabelecer o caráter vinculante da Constituição.

Decorrente da consciência jurídica, a Norma Fundamental Hipotética, válida por ser pressuposta como válida, confere poder criador de Direito ao ato do primeiro legislador e a todos os outros atos baseados no primeiro ato, dando validade e transmitindo juridicidade a todo ordenamento jurídico.

Dessa forma, a norma fundamental surge com o propósito de justificar uma suposta contradição, já que não se sustentaria um sistema com hierarquia de normas “ad infinito”. Reporta-se aqui à engenhosidade de Newton, quando usa Deus como criador das leis fundamentais de movimento e das próprias partículas materiais, para explicar a origem de suas ideias.

Ocorre que, em razão de seu caráter abstrato, as normas jurídicas carecem de interpretações, pois que não há, segundo a teoria tradicional da interpretação, um método que leve, a priori, a uma resposta fixa para cada caso concreto. Diante disso, revela-se a tessitura aberta do Direito, caracterizada principalmente pela discricionariedade do aplicador, quando, in concreto, pode escolher qualquer dos sentidos atribuídos às normas jurídicas.

É justamente nessa discricionariedade atribuída ao operador do Direito que é mitigada a pureza idealizada por Kelsen. Ele teria que admitir a influência das questões metajurídicas, sem que restasse comprometida a pureza metodológica de sua teoria. Desse modo, Kelsen acaba consentindo com a ideia de que o juiz, ao aplicar a norma jurídica no caso concreto, criaria um novo direito[15].

[...] o próprio Kelsen deu uma guinada decisionista na segunda edição da Teoria Pura do Direito, de 1960, quando admitiu que o juiz poderia decidir um caso sem adotar qualquer das interpretações disponíveis na moldura elaborada pelo Direito e, a partir de então, a única coisa que vincularia o aplicador seria uma norma de competência, ou seja, uma norma superior que lhe desse poder para decidir a controvérsia jurídica a ele encaminhada para julgamento (TORRES, 2006, p.73).

Assim, a custo de implicitamente negar seus pressupostos epistemológicos, Kelsen teve que admitir que a complexidade do Direito moderno seria incapaz de ser apreendida e traduzida em leis, quando ressalta a abertura interpretativa do Direito para situações futuras.

Curioso observar que quando Kelsen, inspirado pelos ideais positivistas da lógica cartesiana, desenvolveu a Teoria Pura do Direito na primeira década do século XX, os estudos científicos da Física já estavam caminhando em outro sentido, flexibilizando muitos de seus conceitos e axiomas clássicos.

Enquanto a física moderna já atentava para a falibilidade do método objetivo na descrição de certos fenômenos naturais, os juristas continuavam se apegando a ele como a solução para o problema científico do Direito. 

Em suma, não obstante uma ou outra variante do positivismo jurídico moderno, o estudo do Direito durante os dois últimos séculos esteve sob nítida influência do mecanicismo da Física newtoniana, calcando-se em metodologias contaminadas por conceitos categóricos, fórmulas apriorísticas e organizada através de pressupostos tendenciosos à redução de complexidades. Desse modo, os juristas modernos passaram a abominar todo tipo de percepção jurídica baseada na retórica.

Não obstante a obra de Kelsen ter sido de fundamental importância para delimitar o âmbito da ciência jurídica[16], seu pensamento apresenta limites para a compreensão do Direito moderno, na medida em que tende a um puro formalismo, abrindo espaço para que se atribua qualquer conteúdo às normas jurídicas. Aliás, foi nesse sistema de pensamento que a experiência nazista de Hitler foi validada juridicamente.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Flávia L. Freitas. A curvatura do espaço jurídico: neutralidade, segurança jurídica e hermenêutica na perspectiva quântica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4053, 6 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29182. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como requisito complementar para a obtenção do grau de Bacharel em Direito no Curso de Bacharelado em Direito da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, sob a orientação do Professor Edmilson Cruz Júnior.

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