4- Companheiro: herdeiro necessário?
Questão que para os mais incautos pode parecer simples, vem causando polêmica doutrinária: poder-se-ia, a partir do novo Código Civil, atribuir ao companheiro a condição de herdeiro necessário ou deve-se considerar o elenco previsto no artigo 1845, cuja clareza não pode ser questionada, taxativo. Comecemos pela transcrição do artigo: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”. Antes de tudo, é preciso salientar que a colocação expressa do cônjuge na condição de herdeiro necessário já significou um avanço em relação ao Código Civil de 1916, que só assegurava a legítima aos descendentes e ascendentes. Tal mudança veio ao encontro de todas as outras ocorridas em matéria de direito sucessório, haja vista o claro intuito do legislador de garantir maior participação dos cônjuges na sucessão.
Voltando à questão central deste tópico, a se interpretar de acordo com a literalidade do texto legal, não existe qualquer possibilidade de se enquadrar o companheiro como um herdeiro necessário, o que, como é sabido, não impediria o autor da herança de, vivendo em união estável, dispor livremente de seu patrimônio mediante ato de última vontade, caso não tivesse ascendentes nem descendentes. Os defensores dessa interpretação literal sustentam que, pelo fato de o artigo representar uma limitação à liberdade de testar, a interpretação deve ser restritiva.
Existe, contudo, interpretação que procura harmonizar o artigo 1845 às outras regras de direito sucessório estabelecidas no Código e com a Constituição de 1988.
Essa corrente usa como um de seus argumentos o fato de que o companheiro, nos casos dos incisos I e II do artigo 1790, está situado na primeira classe de herdeiros legítimos, em concorrência com os descendentes. Ora, os descendentes são, sem qualquer sombra de dúvida, herdeiros necessários e, como o Código chama à sucessão descendentes e companheiro simultaneamente, não há como excluí-lo da sucessão.
Nos casos de sucessão previstos nos incisos III e IV do artigo 1790, o argumento possui mais uma fundamentação doutrinária do que legal. A proteção à família é considerada como um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido:
A união estável, no direito brasileiro, constitui modalidade de família (Constituição Federal, art. 226, § 3º), à qual se estende, pois, aquela ‘especial proteção do Estado’, prometida no texto constitucional (art. 226, caput). Se, na hipótese de que ora se cogita, for permitido a um dos companheiros dispor da totalidade de seu patrimônio, o exercício dessa irrestrita liberdade de testar poderá comprometer, em muitos casos, a própria sobrevivência do mais próximo de seus familiares – o resultado, manifestamente indesejável, parece condenar qualquer interpretação em sentido contrário. (PEREIRA, 2002, 167)
Além disso, seria estranho considerar o companheiro um herdeiro necessário apenas em algumas situações.
Outro reforço de argumento dessa corrente fundamenta-se no artigo 1850 do Código Civil: “Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar”. Ora, se não fosse da vontade do legislador garantir a legítima ao companheiro, porque a referência se daria apenas aos colaterais?
Apesar de, mais uma vez, o Código apresentar incoerências, expressão da falta de técnica e cuidado em sua redação, entendemos que se harmoniza mais com o espírito empreendido pelo legislador, e pelo próprio Constituinte, a segunda interpretação, que estende ao companheiro a garantia de sua legítima. Quanto ao fato do artigo 1845 ser taxativo, fica mais uma vez constatado que a inserção da regulamentação dos direitos sucessórios do companheiro em um Projeto de Código Civil que originalmente não tratava da matéria, não veio procedida da devida harmonização e sistematização com as outras regras do próprio Código.
Conclusão
O objetivo deste trabalho foi, ao se analisar a evolução dos direitos sucessórios garantidos ao companheiro, procurar se chegar a uma conclusão que nos permitisse dizer se o Código Civil de 2002 representou realmente um avanço ou se ele apenas veio apenas polemizar ainda mais essa questão.
Na análise da evolução histórica, constatamos que o Código Civil de 1916 não se preocupava em proteger a relação afetiva não oficializada perante o Estado. Essa relação, ainda quando pública, contínua e duradoura, permaneceu por longo tempo estranha à proteção do ordenamento jurídico brasileiro. Não se pensava em conceder qualquer garantia ao convivente, que, na ocorrência da morte do parceiro, se via sozinho. Tal situação prejudicava sobremaneira a mulher, que, geralmente, não tinha condições de se manter sozinha. A única modalidade de família tida como legítima era aquela fundada no casamento.
Essa mentalidade foi mudando paulatinamente. O primeiro passo dessa mudança foi a criação, por parte da doutrina, da “sociedade de fato”. O raciocínio, fundamentado no direito obrigacional, consistia em tratar os conviventes como verdadeiros sócios. Ora, se ambos os parceiros foram responsáveis pela aquisição de bens durante a constância da união, nada mais justo que, ao término da mesma (fosse por ato de vontade ou causa mortis), tais bens fossem partilhados. Nesse sentido foi emblemática a edição da Súmula 380 do STF.[2]
A evolução prosseguiu com o reconhecimento, mais tarde, da chamada “participação indireta” da companheira (os serviços domésticos e a educação dos filhos, por exemplo) como apta a garantir a participação da mesma na partilha. É bom lembrar que, até então, não eram garantidos direitos sobre herança.
A Constituição de 1988 veio então dar novo rumo para o tratamento dispensado à união estável. O reconhecimento de que a mesma constituía modalidade de entidade familiar, trouxe a questão definitivamente para o âmbito do direito de família e sepultou de vez a idéia de que o casamento possuía aptidão exclusiva para servir de fundamento à entidade familiar. A mudança de enfoque foi clara: passou-se a proteger, a partir daquele momento, não apenas um parceiro em relação ao outro, mas também a relação em si perante terceiros.
Nesse contexto de evolução, editaram-se as Leis 8971/94 e 9278/96, sendo que a última se propôs expressamente a regulamentar o artigo 226, §3º da Constituição. Em termos de direitos sucessórios, a Lei 8971/94 foi, entretanto, bem mais importante, com a ressalva de que foi a segunda que garantiu o direito real de habitação dos conviventes.
O diploma legal posterior que se encarregou de tratar da matéria foi o Código Civil. Variadas foram as críticas apresentadas com relação a essa regulamentação, sejam elas de imprecisões terminológicas do legislador, falta de harmonia e sistematização do Código, etc. Mas será que, não obstante essas graves falhas, poderíamos concluir que o Código apresentou um avanço no trato do direito sucessório dos companheiros?
Para tentarmos responder a essa pergunta, enumeraremos alguns aspectos importantes. Primeiramente, é importante ressaltar que a substituição do usufruto, garantido pela Lei 8971/94, pela garantia da propriedade plena ao companheiro é salutar. A reserva de usufruto é prejudicial à economia e à circulação de riquezas, além de representar pouco para aquela pessoa que ajudou a construir o patrimônio do casal.
O Código, entretanto, apresenta muitas falhas. Infere-se que o legislador procurou proteger de maneira significativa aquele que foi casado com o autor da herança, mas existem situações nas quais o companheiro terá mais direitos frente à herança do que se casado fosse. É o caso, por exemplo, da pessoa casada sob o regime da comunhão universal ou da comunhão parcial de bens que tinha como acervo patrimonial tão-somente bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento. Na ocasião de sua morte, seu cônjuge não terá direito a concorrer com os seus descendentes na herança, enquanto que, se fossem companheiros, o convivente concorreria.
Como o objetivo do Código parece ser o de se privilegiar o cônjuge, uma alternativa simples poderia ser, talvez, a de se limitar a participação do companheiro na herança à quota-parte que seria cabida a uma pessoa casada sob o regime da comunhão parcial de bens, que é o regime que deve ser aplicado à união estável quando não houver pacto escrito dispondo em contrário.
No entanto, entendemos que a principal falha do Código foi a de tentar distanciar os direitos sucessórios conferidos ao companheiro e os conferidos ao cônjuge. O legislador perdeu, sem dúvida alguma, a oportunidade de dar continuidade ao processo de mudança de mentalidade que foi propugnado pela Constituição de 1988.
A união afetiva entre um homem e uma mulher, sem as formalidades do casamento, sempre existiu. Antes de ser um fato jurídico é um fato social.
É perceptível uma tendência das pessoas de não quererem a intromissão estatal num terreno eminentemente privado como é o relacionamento afetivo. O “ar de definitividade” imposto pelo casamento muitas vezes assusta os indivíduos que se acostumaram a viver numa sociedade dinâmica como é a atual, sem que isso signifique, no entanto, que o amor dispensado por aqueles que não oficializaram a sua união perante o Estado seja menor do que o do casal que constituiu matrimônio.
O próprio Código apresenta casos em que o fim do casamento no plano fático se sobrepõe à sua continuidade no plano formal. Como exemplo, o artigo 1830:
Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente (destaque nosso).
Ora, se o Código permite a exclusão dos direitos sucessórios dos cônjuges em casos de separação de fato há mais de dois anos, porque não pode considerar aquela relação afetiva não oficializada que, no plano fático espelha um verdadeiro casamento, possa se equiparar, em determinados efeitos, à relação “oficial”. E um desses efeitos a que podem ser equiparados ambos os institutos é o relativo aos direitos sucessórios.
Obviamente, a equiparação dos direitos sucessórios teria que vir acompanhada de uma adaptação e harmonização com o restante do Código: os requisitos para caracterização da união estável poderiam tornar-se mais rigorosos, por exemplo.
Dessa forma, concluímos que o Código Civil de 2002 não se apresentou como um avanço na regulação dos direitos sucessórios do companheiro. Sobretudo por ter faltado coragem ao legislador para equiparar ou, no mínimo, aproximar mais tais direitos aos direitos de sucessão do cônjuge.
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NOTAS
[1] A Lei nº 5.478/68 é a Lei de Alimentos.
[2] Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.