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Uma análise dos direitos sociais nos 25 anos da Constituição Federal de 1988: desafios, limites e possibilidades

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Agenda 17/08/2014 às 11:30

Especialmente sob a perspectiva constitucional, quais obstáculos, limitações e potenciais podemos relacionar no que tange aos direitos sociais nos vinte e cinco anos da Constituição Federal de 1988?

1. Introdução

O aniversário de vinte e cinco anos da nossa Carta da República certamente representa um bom momento que possibilita enxergar os caminhos que ela tem percorrido, as dificuldades pelas quais tem passado, as barreiras que precisam ser superadas e, sobretudo, o descompasso entre algumas de suas promessas e a real consecução dos planos e metas traçados, dada a distância entre as Constituições legal e real, esta última assente na força vida da sociedade.

É preciso reconhecer que, se, por um lado, os anos do regime militar provocaram a obstrução dos canais institucionais de participação política, principalmente os partidos políticos, por outro, ensejaram a multiplicação de entidades setoriais inclinadas a interesses gerais ou a reivindicações específicas, com lastro nos movimentos de negros, de mulheres, de associações religiosas, de preservação do meio ambiente etc, cujo fortalecimento e organização, inelutavelmente, contribuíram para a inserção de um imenso rol de direitos sociais no texto constitucional de 88, os quais nem mesmo as vicissitudes que atingiram a Assembléia Nacional Constituinte lograram desprestigiar.

Neste ponto, impende registrar que os trabalhos da Constituinte foram longos, encerrando-se formalmente a 5 de outubro de 1988, data da promulgação do novo texto constitucional. A ausência de um anteprojeto prévio, dada a rejeição pelo presidente Sarney do trabalho elaborado pela comissão de notáveis constituída para desenvolvê-lo, ajudou a alongar os trabalhos. A isso se somam os obstáculos naturais oriundos da heterogeneidade das visões políticas e a própria metodologia do trabalho, que optou pela fórmula insatisfatória de delegação dos poderes constituintes ao Congresso Nacional (ANDRADE; BONAVIDES, 1991).

O avanço que a Constituição Federal de 1988 representou, no que se refere aos direitos sociais, não foi fortuito e simboliza os desejos latentes do seio social, infelizmente ainda incapaz de vislumbrar de maneira idônea os frutos que o Estado Providência, desde 34, pôs-se a distribuir.

A absorção dessa assertiva é relevante para que se compreenda, absolutamente, que o discurso dos direitos sociais, mormente um país profundamente injusto e desigual, vítima da impotência de sete Constituições que irradiaram nos quatro polos do território nacional várias promessas inalcançáveis, não pode ser relegado a mera ficção ou simbologia, como insistem em proclamar aqueles que não admitem tais direitos como fundamentais, imediatos e exigíveis, negando-lhes, por conseguinte, juridicidade normativa plena.

Nessa linha, há de se indagar acerca do nível de desenvolvimento de nossa sociedade, requisito indispensável para a concretização da justiça social que se pretende alcançar, pois é sabido que a proteção da maioria dos direitos sociais depende de um determinado progresso social cuja solução “desafia até mesmo a Constituição mais evoluída e põe em crise até mesmo o mais perfeito mecanismo de garantia jurídica”, como já ensinava Bobbio (1992, p. 45).

O imenso desafio a superar é agravado pelos limites que se impõem à efetividade dos preceitos sociais, especialmente num Brasil pobre economicamente, carente de políticas estruturais e de planejamento, tradicionalmente comandado por grupos políticos despreparados e não, no todo, preocupados com os interesses nacionais.

Surge, nessa direção, a certeza de que, após a proclamação dos direitos sociais pela positivação constitucional e infraconstitucional, e em face do não cumprimento suficiente de tais mandamentos, a sociedade busca, agora, a efetivação desses direitos, recorrendo ao Poder Judiciário e exigindo-lhe respostas aos problemas esquecidos.

As possibilidades de promover a progressão social, como se vê, circundam-nos. É preciso, todavia, percorrer um árduo e extenso caminho. O presente artigo pretende suscitar reflexões concernentes a alguns pontos pelos quais deve passar a efetivação do constitucionalismo social brasileiro, afastando o singelo discurso obstinado em se guiar nos falaciosos argumentos de que o Estado social está em crise, caduco, impotente, extemporâneo, o que é tão propagado pelo modelo político-jurídico dominante no Brasil, qual seja o liberal-individualista.


2. As limitações impostas à concretização dos direitos sociais e a necessidade de mudança do discurso.

A principal discussão a respeito dos direitos sociais refere-se à aplicabilidade e à efetividade de suas normas, problemática longe de pacificação na doutrina e na jurisprudência brasileira, o que tem impedido a materialização efetiva desses preceitos e, por conseguinte, a consolidação da cidadania social.

Nossa história constitucional mostra que fomos obtendo, gradativamente, êxito em plasmar em nossos textos as reivindicações dos mais diversos segmentos da sociedade no que tange à proclamação dos direitos sociais, e, de fato, consagramos esse itinerário positivo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que ampliou, a um nível sem precedentes, garantias e princípios inerentes aos ditames sociais.

O enorme abismo a separar texto da realidade social e a persistência do Estado em tornar letras mortas tais dispositivos promissores, contudo, revelam a inocuidade de uma mera declaração de direitos, por mais extensa e explícita que seja, quando inexistem meios políticos, culturais e operacionais para materializá-la. Daí a relevância de compreender a grande diferença entre o que realmente está para a sociedade no plano fático daquilo destituído de efetivação, de inteiro corpo, mas sem alma, despontando a necessidade de abordar a discussão da concretização dos direitos sociais sob a perspectiva da óptica cidadã, ainda tão distante da maioria dos brasileiros.

Interessa-nos, aqui, combater o posicionamento que enquadra os direitos individuais e sociais em categorias distintas de direitos, negando aos últimos a operatividade de que necessitam para sua implementação, retirando-lhes conteúdo e amoldando-os a uma concepção de Estado liberal vinculada à “discursiva jurídica teórico-dogmática, no âmbito jurídico-formalista, que retira dos direitos sociais a sua condição de direitos fundamentais e defende a sua possibilidade de supressão por meio de emenda constitucional” (ESTEVES, p. 28).

É possível dizer que os direitos sociais, intitulados direitos de segunda dimensão ou geração, geralmente exigindo para sua realização uma atuação positiva do Estado, são os que mais se inserem no âmbito da discussão da efetividade, porquanto, em quase sua totalidade, geram maiores dificuldades para sua afirmação do que os direitos ditos de primeira dimensão ou geração, quais sejam os direitos civis e os direitos políticos. Assim, enquanto os direitos de defesa não costumam ter sua plena eficácia questionada, é nos direitos sociais que a discussão atinge os mais diversos posicionamentos, o que permitiu a boa parte da doutrina do século XX negar a “possibilidade de tutela judicial dos direitos sociais e econômicos consagrados nas Constituições, rotulando as normas que os positivavam como de caráter meramente programático” (SARMENTO, p. 391).

Convém lembrar que existe imensa resistência ideológica, já que a inclinação dos direitos sociais para uma transformação do status quo mobiliza contestações dos segmentos privilegiados da sociedade, certamente não desejosos de mudanças. Há também graves barreiras operacionais, devido à natureza eminentemente prestacional desses direitos, que abre espaço para a lógica da eficiência e para o discurso dos custos materiais, chocando-se a almejada efetivação com os obstáculos fáticos inescondíveis. Diante disso, afirma-se que os direitos sociais estão sujeitos à reserva do possível. Com base nesse entendimento, diz Gustavo Guerra que

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“os direitos sociais estariam, portanto, "reféns" de opções de política econômica do aparato estatal, eis que a reserva do possível traduz-se em uma chancela orçamentária; trata-se de um princípio (implícito) decorrente da atividade financeira do Estado alusivo à impossibilidade de um magistrado, no exercício da função jurisdicional, ou, até mesmo, o próprio Poder Público, de efetivar ou desenvolver direitos, sem que existam meios materiais para tanto, o que conseqüentemente resultaria despesa orçamentária oficial. “A aferição desta disponibilidade é feita em função do orçamento. Justifica-se que a concessão de determinadas prestações, ou seja, a realização de determinados direitos, pode implicar a inviabilização da consecução de outros".

É falacioso, entretanto, o argumento de que os direitos sociais, por se traduzirem em direitos de cunho naturalmente positivo, a exigirem do poder público comportamento ativo para a materialização de seus preceitos, não ensejam imposição e exigibilidade de prestações por parte do Estado, como se fossem meros enunciados destituídos de eficácia jurídica e fundamentalidade e subordinados à conveniência das políticas estatais.

Tais direitos, na verdade, abrangem tanto direitos prestacionais (positivos) quanto defensivos (negativos), uma vez que sua efetivação pode reclamar tanto uma atuação ofensiva como um agir negativo por parte do Estado. Sem necessidade de maior delineamento, vale lembrar que, no caso da garantia do direito à livre organização sindical e à greve, insculpidos nos arts. 8º e 9º da Constituição, o ideal é a inércia do Estado, e não sua atuação.

Também se constata que não é apenas a implementação de direitos sociais que gera despesas, mas, também, a dos direitos individuais: “assim quando o Estado assegura a liberdade de circulação deve financiar a construção de vias públicas e calçadas, assegurar a iluminação pública, garantir a segurança para que ninguém perturbe o transeunte” (COUTINHO, p. 383). Nessa linha, é grande a quantidade de recursos necessários à manutenção do direito de propriedade,

“segundo o qual o Estado deve intervir para sua garantia por meio de manutenção de um aparato que tem por objetivo impedir a turbação ou o esbulho de terceiros, o qual se efetiva na organização de diversos serviços públicos, pois a esse direito é destinada grande parte da atividade policial, da justiça civil e penal, e também de registro, controle e uso da propriedade móvel e imóvel” (ABRAMOVICJ, 2002, p. 24).

Todos os direitos pressupõem, embora de maneira distinta, intervenção estatal, atuação positiva e negativa, seja exigindo do Estado regulamentação, cumprimento de obrigações e realização de serviços, seja impondo restrições à faculdade de determinadas pessoas e à própria atuação do poder público. Consagrando esse entendimento, intocável a lição de João Martins Esteves (2007, p. 55), para quem:

“[...] apresenta-se superada aquela tradicional tipologia baseada na dicotomia ‘positivos/negativos’ dos direitos fundamentais, e um dos motivos é o fato de quaisquer dos direitos fundamentais podem ensejar uma ação de inércia ou de agir do Estado para sua efetividade, e portanto é inadequada aquela teoria dogmática para o estudo do exercício dos direitos fundamentais. Da mesma forma, mostra-se deslocada da realidade fática a argumentação de que os direitos individuais se diferenciam de direitos sociais por aqueles não ensejarem uma prestação positiva que demande custos e estes, ao contrário, dependerem de gastos do Estado para sua consecução”.

Ingo Sarlet (2002, p. 51), a cujo entendimento aderimos, não admite distinção jurídica entre direitos sociais e individuais no que atine à Constituição brasileira, compreendendo que ambos integram o sistema unitário e aberto dos direitos fundamentais constitucionais, posicionamento que se coaduna com o tipo ideológico de Estado consubstanciado em 88, cuja pretensão não aceita diferenciações entre os direitos que proclama, posto que irrigado por dispositivos de extrema significação que denotam os valores a serem perseguidos: os objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, regra da qual derivam todos os direitos, em especial, os direitos sociais.

Não se pode desprezar a existência de limites financeiros para o exercício dos direitos fundamentais – reitere-se que geram gastos a implementação de todos eles. É fato que os Estados atuam consoante as receitas orçamentárias, realizando, excluindo ou restringindo gastos de acordo com as prioridades definidas pelos poderes Executivo e Legislativo, cujas opções políticas devem ser obedecidas.

Sem embargo, a efetivação dos direitos fundamentais sociais não pode ter por barreiras a justificativa de que inexiste previsão orçamentária, ou que ela não foi suficiente para contemplá-los. A elaboração do orçamento deve atender aos mandamentos constitucionais, sem discriminar alguns direitos em detrimento de outros. E o administrador público deve ter “sua discricionariedade limitada á vista dos direitos consagrados na Constituição”, de sorte que o estabelecimento das prioridades orçamentárias deve ser extraído das diretrizes traçadas pelo texto constitucional, sob o risco de eivar-se de inconstitucionalidade. O mesmo se diga do gerenciamento dos recursos orçamentários, que “deve ter por motivação e limite o mesmo comando constitucional, sem o qual também estaria exorbitando a competência delegada constitucionalmente” (ESTEVES, 2007, p. 5).

Importa afastar, desse modo, a principal objeção em relação ao cumprimento dos direitos sociais: o argumento enganoso de que sua satisfação, e somente a deles, vincula-se à disponibilidade de recursos, como se essa condicionante fosse capaz de extrair-lhes a fundamentalidade exigida para sua afirmação. Como adverte Flávia Piovesan,

“Os impedimentos para a implementação dos direitos econômicos e sociais, entretanto, são mais políticos que físicos. Por exemplo, há mais que suficiente alimento no mundo para alimentar todas as pessoas; a fome e a má nutrição generalizada existem não em razão de uma insuficiência física de alimentos, mas em virtude de decisões políticas sobre sua distribuição” (2002, p. 185).

Tenham sido expressa ou implicitamente positivados, todos os direitos sociais são fundamentais, e às suas normas “se deve outorgar a máxima eficácia e efetividade possível, no âmbito de um processo de otimização pautado pelo conjunto de princípios fundamentais e á luz das circunstâncias do caso concreto” (SARLET, 2007, p. 329), sendo possível, no caso de conflitos entre os direitos fundamentais, prevalecer os direitos sociais sobre os individuais, porquanto se encontram todos no mesmo plano hierárquico, emergindo, vê-se, o caminho da ponderação como o melhor modo de satisfazer uma hipótese determinada.


3. O papel do poder Judiciário na realização do Estado social.

É consagrada a função precípua do Poder Executivo de realizador das políticas públicas, sobretudo no que diz com a efetivação dos comandos gerais consignados no ordenamento jurídico e com a implementação dos programas necessários à prestação de serviços para a coletividade.

Além dos pontos por que passa a concretização constitucional do Estado brasileiro, que avaliaremos no tópico seguinte, convém, para que o Executivo possa garantir, ao máximo, os dispositivos do texto constitucional, buscando a completude da promoção social, na linha do que nos interessa nos limites deste artigo, uma atuação contundente dos demais poderes envoltos no jogo democrático.

A atividade fiscalizadora do Poder Legislativo espraia-se de extrema relevância com seu controle sobre a atuação do Executivo na realização dos fins previstos na Constituição, especialmente no que diz respeito aos direitos fundamentais cujo gozo depende tanto ou diretamente da materialização dos comandos do segundo. Na mesma direção, a concepção do Legislativo como o programador dos meios para o desenvolvimento do Estado, a par de sua ligação com os fenômenos da formação do direito positivo, denota sua imprescindibilidade para a formação de uma sociedade democrática.

A indispensabilidade desse Poder para a sustentabilidade do Estado Democrático, todavia, não consegue ocultar sua insuficiência como instrumento de legitimação política. As mazelas que afligem o Congresso Nacional, seja na ausência de vontade política, seja no descaso com o interesse coletivo, seja nas denúncias de corrupção, desnudam o desgaste sofrido hoje por nossos representantes, incapazes de oferecer à população a credibilidade e a confiança de que o jogo ordinário do sistema político democrático necessita. Como afirma Luis Roberto Barroso,

“Não cabe aqui perquirir as razões para esse fato. Mas não se deve omitir uma referência á circunstância de que, dentre todos, o Legislativo é o Poder mais exposto, mais visível, cuja atuação não se desenrola no recesso dos gabinetes, mas em sessões franqueadas e usualmente submetidas ao crivo severo da imprensa. É antes produto de preconceito a avaliação de que o Legislativo é inferior, em sua composição, aos órgãos dos demais Poderes, muito embora, no caso específico do Brasil, disfunções ligadas à patologia do autoritarismo mais recente tenham afastado da saudável militância partidária vocações que aí encontrariam sua melhor expressão” (2006, p. 130-131).

Diante de um Executivo atrelado a acordos políticos e econômicos circunstanciais e de um Legislativo desprestigiado, ganha destaque a figura do poder Judiciário, chamado a materializar as conquistas constitucionalizadas e a promover a cidadania social preconizada pelo texto constitucional. Poder esse tão esquecido nos debates político-jurídicos, fruto talvez da “ignorância sobre o relevante papel que desempenha na defesa dos direitos fundamentais e na construção da democracia, assim como indica o descaso da maioria da população brasileira pela justiça e pela lei (PINHO, 2004, p. 28).

Antoine Garapon identifica a existência de nova concepção de Estado, sugerindo que, “se no século XIX, da ordem liberal, houvera preponderância do Legislativo, e no século XX, sob a égide da Providência, foi a vez do Executivo, o século XXI caminha para ser a supremacia do Judiciário” (1999, p. 227).

Setores conservadores e mantenedores do status quo, contudo, continuam não admitindo a tarefa do Judiciário na resolução dos reclamos sociais, impondo uma resistência claramente intencionada a extirpar desse Poder a função estatal de efetivação dos direitos sociais, como se ele somente se vinculasse a seu papel de legislador negativo, “esperando que lhe seja submetida à análise uma norma positivada a fim de decidir sobre sua constitucionalidade, ou seja, traduz um modelo centrado na lei e não na defesa de direitos” (ESTEVES, 2007, p.69).

Tal entendimento afasta esse poder das novas exigências sociais, cujos proclamos, não encontrando nos demais órgãos estatais a solução desejada para os anseios que as afligem, batem às portas dos magistrados exigindo-lhes a concretização de seus direitos, tão reiteradamente proclamados, mas bastante esquecidos. Essa concepção, tão infiltrada na cultura jurídica brasileira, limita a atuação do Judiciário sob orientações que proíbem o juiz de julgar contra a lei e prestigiam o modelo meramente subsuntivo de aplicação da norma.

É preciso reconhecer as potencialidades do poder Judiciário para a realização do Estado social, afastando-se a concepção liberal-individualista obstinada em compreendê-lo tão somente como instrumento de controle social, de pacificação de conflitos, de obediência aos ditames da lei e de mera garantia dos direitos adquiridos, o que contribui para a manutenção da ordem jurídico-social estabelecida, mas que não atende aos clamores de uma sociedade que se encontra sob a égide de um Estado democrático de direito, cuja função prospectiva, antes de se limitar a estabilizar as relações sociais e políticas vigentes, almeja transformações e progresso, tudo isso consubstanciado na dignidade da pessoa humana, fim e fundamento da Carta da República.

Outro norte deve ser buscado, a conceber nossa justiça mais como meio de direção e promoção social, de correção de desigualdades e consecução de equilíbrio nas relações socioeconômicas que como instrumento tecnicista de garantia de certeza e segurança de direitos já tão historicamente assegurados em nossos ordenamentos. Buscar-se-á, nesse sentido:

“[...] a transformação do juiz um legislador ativo e criativo, consciente de que a justiça não pode ser reduzida a uma dimensão exclusivamente técnica, devendo ser concebida como instrumento para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa. [...] capaz de identificar e esclarecer o significado político das profissões jurídicas, possibilitando-lhes assim um distanciamento crítico e uma clara consciência das inúmeras implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades socioeconômicas” (FARIA, 1989, p. 96-97).

Convém combater, igualmente, as objeções ao papel do Judiciário como controlador das políticas de governo, como se a discricionariedade administrativa pudesse, num Estado democrático de Direito guinado a princípios da magnitude dos da dignidade da pessoa humana, da supremacia do interesse público e da justiça social, fazer a oportunidade e a conveniência das políticas públicas sobrepujar o controle efetivo de que elas não devem prescindir.

Nessa direção, podem e devem sofrer controle jurídico a fixação de metas e prioridades por parte do poder público em matéria de direitos fundamentais; o resultado final das políticas públicas; a quantidade de recursos a ser investida em políticas públicas destinadas à realização de direitos fundamentais, em termos absolutos ou relativos; o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio poder público e a eficiência mínima (entendida como economicidade) na aplicação dos recursos públicos destinados a determinada finalidade (BARCELLOS, 2007, p. 635).

No que se refere ao dogma da separação de poderes, sempre invocado com o condão de impedir a possibilidade do papel construtor e ativo do Judiciário, é importante absorver que o esquema da distribuição de funções estatais, tal como concebida por Montesquieu, na prática, jamais subsistiu. Com efeito, sempre houve penetração entre as funções das três esferas de poder, as quais, como se sabe, exercem, cada uma, tarefas preponderantes, mas não exclusivas, cometendo, todas, funções legislativas, administrativas e judiciárias. Compartilhando essa posição, obtempera Rodolfo de Camargo Mancuso (2014, p. 328):

“Ao contemporâneo Estado Social de Direito não mais contenta uma singela divisão em Poderes (palavra que denota um ranço autoritário, ligado a uma concepção arcaica e estática da Autoridade Pública), mas, antes e superiormente, cabe falar numa divisão em Funções, visão mais afinada com a ideia de um Estado retributivo e prestador, engajado socialmente – o ideário do Welfare State – e comprometido com a consecução de metas e programas adrede estabelecidos, no ambiente de uma desejável telocracia”.

Isso demonstra que todos os órgãos estatais exercem função política, não se podendo admitir os argumentos de que ao Judiciário compete uma função meramente jurisdicional. Inexiste, portanto, separação de poderes estanque que possa suscitar o discurso defensor da manutenção de um modelo organizacional de Estado que não se compatibiliza com as necessidades enfrentadas hoje pelos magistrados, que, vertiginosamente, têm recebido apelos a substancializar, no plano fático, os direitos fundamentais constitucionais. Com a mesma compreensão, Paulo Bonavides (2007, p. 587), para quem a separação de poderes move-se, hoje, no campo dos direitos fundamentais.

De igual modo, é preciso concluir que, em colisão com o princípio da separação de poderes, deve exsurgir a superioridade da preservação(e da consolidação) da dignidade da pessoa humana. Como ensina João Luiz Martins:

“A defesa dessa concepção deve ser buscada no entendimento de que o princípio da separação de poderes não pode ser invocado para inibir a atuação do Judiciário na tarefa que lhe incumbe, de garantidor da Constituição, pelo menos quando o que está buscando garantir, mediante procedimento judicial, é a dignidade da pessoa humana no seu aspecto máximo. A regra contida no art. 2º da CF – que define os poderes da República e proclama a independência harmônica entre eles – é meio e não fim do Estado. Deve ela, pois, ser utilizada para dar concretização á Constituição, mormente para atingir os objetivos contidos no art. 3º, com fundamento nos princípios contidos no art. 1º. E, sendo a mesma regra meio, nunca se poderá dar á separação de poderes caráter absoluto, mas deve aquela constantemente subsumir-se aos objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana (ESTEVES, 2007, p. 69)".

Nossa sociedade consagrou na Constituição de 1988 a confiança num Poder, até então, raramente mencionado nas discussões do jogo democrático. Surgiu uma nova realidade a compelir o Judiciário a um rompimento com a ordem anterior, o que é explicitamente manifestado nos novos dispositivos que a Carta preceitua, os quais exigem que os magistrados tenham uma formação técnica segura, aliada a uma formação social a fazê-los conscientes politicamente da ética humanista que lhes cobra a função. Luiz Flávio Gomes (1997, p. 68) disserta acerca da necessidade de conscientização de nossa magistratura no que atine à sua função na sociedade:

“É de suma importância que o juiz tenha consciência crítica da própria função que desempenha, é dizer, na medida em que aplica cega e automaticamente a legislação elaborada pelo Poder Público, sem nenhuma consideração com as normas, princípios constitucionais ou tratados internacionais, no âmbito dos direitos humanos, especialmente, corre o risco de cumprir o simples papel de mero instrumento de reprodução das relações de dominação. [...] A concretização da vontade declarada na Constituição seria, nesse sentido, uma obra aberta confiada ás futuras gerações, ás quais competiria garantir a efetividade do sistema de direitos constitucionalmente assegurados por meio dos recursos procedimentais dispostos em seu próprio texto. A política se judicializa a fim de viabilizar o encontro da comunidade com seus próprios propósitos, declarados formalmente na Constituição.”

É importante lembrar que nosso texto constitucional vigente, entendendo que a proteção aos direitos fundamentais deve vir também pela atuação do Judiciário, ampliou a jurisdição constitucional, estendendo o controle concentrado de competência do Supremo Tribunal Federal. Tangente à garantia constitucional das liberdades, ampliou os remédios constitucionais, criando o mandado de segurança coletivo, o habeas data e o mandado de injunção. Deu maior relevância à ação popular, legitimando-a para a proteção do patrimônio histórico-cultural e para a moralidade administrativa.

Isso tudo desnuda a importância que deve adquirir tal Poder para ser verdadeiramente percebido como figura ativa e confiável na proteção das expectativas por igualdade, norteando sua função mais para a transformação social, no sentido de viabilizar o cumprimento das metas enunciadas e perseguidas pela Lei Maior, porquanto, em uma sociedade de interesses cada vez mais complexos e conflitantes, onde a essência das diferentes reivindicações já não se esgota, de todo, nos textos da lei, qualifica-se como imprescindível a figura de um rearranjador a proferir a decisão final, que deve ser justa o suficiente a promover o equilíbrio que a desigualdade das relações socioeconômicas do país exige.

Sobre o autor
Lucas Sales da Costa

Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lucas Sales. Uma análise dos direitos sociais nos 25 anos da Constituição Federal de 1988: desafios, limites e possibilidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4064, 17 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29351. Acesso em: 22 nov. 2024.

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