CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO – ASPECTOS GERAIS
É-nos evidente que o Direito Constitucional representa, nos ordenamentos modernos, a base/substrato que rege e harmoniza o sistema jurídico. Para os profissionais da área e mesmo àqueles que, diletantes, tem voltado sua atenção aos temas jurídicos, é notório que há algum tempo tem se falado com bastante frequência no processo de “constitucionalização do Direito”. Isso não significa que os ditames das mais diversas áreas do Direito, em especial do Privado, não estivessem já, há considerável tempo, sob a direta influência das prescrições das variadas Constituições, mas que agora esta “irradia valores constitucionais pelo sistema jurídico (SAMPAIO, 2006, p. 140)
Chamado, em geral por críticos, de processo de “publicização do direito privado”, o fenômeno consiste, em linhas gerais, na aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, o qual se deu de diferentes modos, intensidades e velocidades aos mais diversos campos do Direito. Tal processo tem origens que remontam à Alemanha do início do século XX. A autora MARGARIDA (2009), em referência a Barroso, explica que isso aconteceu por volta de 1949, assentando-se o Direito constitucional em situações individuais em razão do interesse coletivo ou social.
SAMPAIO (2006) divide o processo de constitucionalização do Direito Civil (donde se ramifica as demais áreas do direito privado) em três fases: em primeiro a que ele denomina de “Mundos apartados” (ocorrida na Europa, principalmente a partir do século XVIII) na qual havia separação entre os ditames constitucionais, os quais funcionavam mais como prescrições políticas, das leis infraconstitucionais, que regiam diretamente as relações privadas.
A segunda, inspirada no Código Napoleônico (França), fortificou-se especialmente a partir do início do século XX, com a gradual superação do dualismo público/privado, deixando o direito civil de ser magnânima soberania das vontades privadas (entendidas como o poder dos indivíduos de auto regulamentarem suas decisões, negativas ou positivas) e caminhando a um dirigismo contratual. Finalmente, a terceira e atual fase é marcada pela posição central ocupada pelas Constituições, que passa a funcionar como “filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito civil (p. 127)”, sustentado pela valorização do princípio da dignidade da pessoa humana (fortalecido no pós Segunda Guerra) e na aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas.
De forma geral pode-se dizer que a constitucionalização resulta em: a) acolhimento pelas Constituições de institutos e regras antes relegadas ao campo infraconstitucional; b) releitura dos institutos previstos na legislação por meio dos princípios fundamentais (BARROSO, 2005).
Esse mecanismo irradiatório se concretiza, em especial, através da via judicial, sobretudo nos chamados leading cases. Nesse tocante é salutar relembrar o famoso caso Marshall vs. Alabama (1946) (cujo posicionamento foi seguido posteriormente em outras questões não menos famosas, apreciadas pela Suprema Corte Americana) em que se discutia a eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais, tendo a Corte decidido pela aplicação de certas garantias às relações privadas, abrindo caminho para a consolidação do entendimento e aplicação da chamada public function doctrine (indivíduos que exercem atividade estatal estariam submetidos às diretrizes dos direitos fundamentais constitucionais).
Esse ativismo judicial e mecanismo de constitucionalização pelo Poder Judiciário é descrito por BARROSO, para quem:
Em sentido amplo, a jurisdição constitucional envolve a interpretação e aplicação da Constituição, tendo como uma de suas principais expressões o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. No Brasil, esta possibilidade vem desde a primeira Constituição republicana (controle incidental e difuso), tendo sido ampliada após a Emenda 16/65 (controle principal e concentrado). A existência do fundamento normativo expresso, aliada a outras circunstancias, adiou o debate no país acerca da legitimidade do desempenho pela corte constitucional de um papel normalmente referido como contra-majoritário: órgãos e agentes públicos não eleitos tem o poder de afastar ou conformar leis elaboradas por representantes escolhidos por vontade popular (p.142, in SAMPAIO, 2006).
No Brasil, e noutros países (Portugal, Espanha, etc) cujo processo de entrada da democracia se deu mais lentamente, a constitucionalização se deu mais tardiamente, embora o tenha (e ainda esteja) ocorrido de forma bastante intensa.
CONSTITUCIONALIZAÇÃO NO DIREITO EMPRESARIAL
Após discorrermos em linhas gerais sobre as origens, características e sobretudo os efeitos da constitucionalização no Direito, enquanto fenômeno transnacional, vejamos de que forma isso se dá no âmbito do Direito Comercial/Empresarial, fato também conhecido como “despatrimonialização do direito privado”.
Em primeiro lugar é importante lembrar que, apesar de sua autonomia doutrinária, jurisprudencial e disciplinar, o Direito Comercial tem suas origens intrinsecamente voltadas ao Direito Privado por excelência: o Direito Civil. Assim, em que se pese a adoção de normas empresariais ou comerciais pelo novo Código Civil, não se pode dizer que houve alteração, em substancia, na autonomia do Direito Empresarial. Nesse sentido, SILVA (2003) explica que:
Assim, dizer que o direito comercial perdeu sua autonomia jurídica por causa do novo Código Civil é não perceber que a maior parte do seu objeto de regulação (falência e concordata, títulos de créditos, marcas e patentes, direito societário, registro de empresas etc) continua vivo e sem alteração sob o prisma científico, já que alterações legislativas de específicos tópicos regulados não tem o condão de modificar a estrutura científica de um ramo do direito [...]O que se pode discutir é a conveniência de unificação do estudo do direito comercial com o direito civil. (p. 01)
Consolidado esse pressuposto autonômico do Direito Comercial, voltemos a ele nosso foco. A doutrina majoritária aponta como princípios gerais básicos mais importantes do Direito Comercial os seguintes: liberdade de iniciativa, liberdade de competição e função social da empresa. E são exatamente esses que irão figurar como protagonistas na publicização/constitucionalização do objeto em estudo, ora colidindo com outros princípios constitucionais, ora atuando em sintonia com estes. A função social da empresa atuaria como mitigador dos dois primeiros, balanceado os interesses privados com o caráter social e despatrimonializador que marcou a edição da atual Carta magna e das leis dela decorrentes. O agir empresário, desse modo não é apenas “com o outro, mas para o outro (SANTOS, 2013).
A liberdade de iniciativa tem seu fundamento no caput do artigo 170 da própria Carta Constitucional (“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, [...]”), que é o espírito norteador (ou “geist”, na melhor expressão alemã) de todo o Direito Empresarial. BASTOS e MARTINS (1990), em sua obra “Comentários a Constituição do Brasil”, prelecionam sobre este princípio, ensinando que:
O seu exercício envolve uma liberdade de mercado, o que significa dizer que são proibidos os processos tendentes a tabelar os preços ou mesmo a forçar a sua venda em condições que não sejam as resultantes do mercado. A liberdade de iniciativa exclui a possibilidade de um planejamento vinculante. O empresário deve ser o senhor absoluto na determinação de o que produzir, como produzir, quanto produzir e por que preço vender. Esta liberdade, como todas as outras de resto, não pode ser exercida de forma absoluta. Há necessidade sim de alguns temperamentos. O importante, contudo, é notar que a regra é a liberdade. Qualquer restrição a esta há de decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela (p. 16)
Ora, se a própria Constituição tratou de fazer ressalvas a controlar a atuação deste princípio, doutro modo não atuaria a jurisprudência majoritária, em especial a do STF, que vem mitigando esse princípio, em consonância com os ditames constitucionais (em especial da função social da empresa). Tal posição tem provocado polêmica no altamente capitalizado meio jurídico brasileiro moderno. A autora NASCIMENTO (2011), sob orientação de Fábio Ulhoa Coelho, chega a se perguntar:
“o princípio da livre iniciativa perde de todos os princípios sociais quando sujeito à ponderação de princípios, como se pode ver na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o que nos leva à seguinte reflexão: será que a maioria dos juízes e juristas considera a livre iniciativa um princípio inferior? (p.08)”
A própria autora ainda exemplifica ao citar o acórdão da APDF 45, em que se discutia o monopólio do serviço postal pelos Correios, tendo o STF decidido pela manutenção deste, diferenciando serviço público e atividade econômica em sentido estrito, atingindo diretamente, desse modo, várias empresas que atuavam ou pretendiam incorporar o nicho exclusivo da EBCT. Nesse mesmo sentido vários outros julgados, citados pela autora, reforçam a tendência mitigadora da Suprema Corte¹.
O segundo princípio, da Liberdade de concorrência, é decorrência lógica e corolário do primeiro, sendo sua própria manifestação, devendo o Estado protege-la, por todos os meios (como o fez ao editar a Lei 8.884/1994, que criou o CADE ou o próprio, e festejado, Código de Defesa do Consumidor). Isso significa, conforme COELHO (2005), que se a “atividade econômica resulta em dominação de mercado, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário de lucros ela é considerada abusiva e, portanto, ilícita (p. 209)”.
Em diversos casos, o próprio Estado vem tabelando preços, numa tentativa de mitigar a livre concorrência sob pretexto de estar fazendo valer os ditames constitucionais que vedam a concorrência desleal. Entretanto, os tribunais e preponderantemente o STF vêm corrigindo os abusos de poder estatais, defendendo que “não é legal a fixação de preços abaixo do valor de mercado (NASCIMENTO, p.09)”
Nota
¹ Limitação social à liberdade de iniciativa: AC 1.657-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-6-2007, Plenário, DJ de 31-8-2007; ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006; ADI 3.512, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006; ADI 319-QO, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 3-3-1993, Plenário, DJ de 30-4-1993; STA 171, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 12/12/2007, Tribunal Pleno, DJ de 29-02-2008; ADI 3512, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15/02/2006, Tribunal Pleno, DJ de 23-06-2006; ADI 1950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 03/11/2005, Tribunal Pleno, DJ de 02-06-2006; RE 349686, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 14/06/2005, Segunda Turma, DJ de 05-08-2005; RE 321796 Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 08/10/2002, Primeira Turma, DJ de 29-11-2002.
Referência
NASCIMENTO, Juliana. PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL (org. Fabio Ulhoa Coelho). 2011. São Paulo. Disponível em: http://www.congressodireitocomercial.org.br/site/images/stories/pdfs/gep2.pdf. Acesso em: 25/11/2013.
SANTOS, Jose Camacho. O novo Código Civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas: do liberalismo a socialidade. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_45/Artigos/Art_jose.htm
BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 16
MARGARIDA, Silvania Mendonça. A constitucionalização do direito sob a ótica de Luis Roberto Barroso. 2009, disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-constitucionalizacao-do-direito-sob-a-otica-de-luis-roberto-barroso,31231.html> acesso em: 18.11.2013.
SAMPAIO, José Adercio (coord). Constituição e crise política. 1ª edição. Ed. Del Rey: 2006.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, [1] nov. [2005]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 18 nov. 2013.
SILVA, Bruno Mattos e. O Novo Código Civil e a autonomia do Direito Comercial. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 64, [1] abr. [2003] . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3946>. Acesso em: 26 nov. 2013.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1, 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 209