Resumo: O presente artigo traz um breve panorama de algumas das principais teorias a respeito do direito animal, desde a cultura cosmocêntrica grega, passando pelo antropocentrismo consagrado pelos socráticos, confirmado pela Escolástica e levado ao seu extremo pelo movimento renascentista. Ressalta, ainda, as primeiras teorias em defesa dos direitos dos animais, o que possibilitaria uma evolução semântica no contexto do direito animal, causando, inclusive, uma “irritação” do sistema política, que responde através da produção das legislações protetivas do direito animal. Por fim, descreve a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Direito. Animal. Sujeito de direito.
Sumário: Introdução. 1. Antropocentrismo grego: animais como seres a serviço dos homens. 2. Império romano: do animal como res ao animal sujeito processual. 3. Escolástica: sobre necessária hierarquia entre as criaturas. 4. Renascimento e a teoria do animal máquina. 5. As primeiras teorias em defesa do direito dos animais. 6. Evolução da legislação protetiva dos animais no Brasil. Conclusão.
Introdução
O presente artigo pretende trazer um sintético panorama de algumas das mais importantes teorias a respeito da relação homem e animal no decorrer da história da civilização ocidental. Claro que tal pretensão não se pretende holística e, muito menos, exauriente, mas acreditamos ser importante ressaltar como a comunicação com relação ao reconhecimento dos direitos dos animais chegou ao atual patamar.
Inicialmente, descreveremos a superação da cultura cosmocêntrica dos chamados “filósofos da natureza” pelo antropocentrismo iniciado pelos sofistas e consagrado pelos Socráticos, que colocavam os animais na posição de escravos dos homens, dentro de uma estrutura societária estamental.
Após, será ressalto o aspecto patrimonial que os animais adquirem no direito romano, os animais, passando a serem considerados como res, como coisas, recebendo o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados e à propriedade privada.
No que diz respeito à Escolástica, demonstraremos como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino retomaram a teoria helênica da grande cadeia da vida, voltando a ressaltar que os animais seriam seres imperfeitos, destituídos de espírito, devendo, pois, estar a serviço do ser perfeito e racional: o homem.
Ressaltaremos, ainda, que a centralidade do homem no interior da natureza permanece como dogma Renascentista e Iluminista, mas alguns nomes irão encampar as primeiras defesas dos direitos dos animais, dentre eles: Voltaire, Rousseau, Leonardo da Vinci, José do Patrocínio, Osvaldo Orico e Olavo Bilac, o que possibilitaria uma evolução semântica no contexto do direito animal, causando, inclusive, uma “irritação” do sistema política, que responde através da produção das legislações protetivas do direito animal.
Por fim, descreveremos a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.
1. Antropocentrismo grego: animais como seres a serviço dos homens
A tradição ocidental, marcada pela instrumentalização do sentido das coisas (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 24), desde muito cedo excluiu os animais de quaisquer considerações morais, sendo os sofistas gregos os primeiros a se afastarem da perspectiva cosmocêntrica defendida pelos chamados pensadores pré-socráticos ou filósofos da natureza.
Esclarecendo o que se entende por cultura cosmocêntrica, remontamos à Escola de Mileto, para a qual a vida seria uma contínua transformação, defendendo a dinâmica das coisas, a evolução das espécies e, sobretudo, a origem animal do homem, nos mostrando “uma dimensão do pensamento mais originária do que as dicotomias e dualismos que marcaram o desenvolvimento da filosofia ocidental” (UNGER in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 25).
Neste contexto, o homem seria parte integrante do Cosmos, do Universo, não possuindo qualquer tipo de autonomia diante da imensidão. Mesmo as construções teóricas a respeito da nomos (lei), considerada aspecto essencial da vida civilizada, fundamento da polis grega, desenvolviam-se com base nas leis da natureza. Neste diapasão, “a justiça do Estado se confundia com as leis da natureza, uma vez que o homem, imerso na totalidade do cosmo, obedecia às leis físicas ou religiosas que o regiam. Esta concepção é um jusnaturalismo cosmológico” (DIAS, 2004, p. 1).
Dizemos que estes pensadores anteriores a Sócrates são pensadores originários porque se debruçaram sobre a origem de todas as coisas, o princípio, a arché da physis. Pertenceria à physis o céu, a terra, o sol, o homem, os deuses, o animal, a planta, ou seja, tudo aquilo que é. Esse “é” constituiria, portanto, o princípio unificador de uma totalidade aberta, correspondendo ao próprio processo de surgir, de parecer e perdurar por um tempo, dito de outra forma, esse processo se revelaria como Cosmos (UNGER in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 26-27).
Em síntese:
(...) os pensadores da Antiguidade nunca separavam sentimento e conhecimento. O sentimento panteísta pré-cristão concebia o cosmos como uma força viva exprimindo-se de igual modo em cada criatura. Portanto, homens e animais compartilhavam qualidades que posteriormente passaram a ser atribuídas exclusivamente aos homens tais como inteligência, razão, sensibilidade. Para o homem antigo, os animais possuíam não apenas qualidades estéticas superiores mas também faculdades cognitivas e sensitivas extremamente aguçadas como por exemplo uma capacidade de observação e de previsão que nós homens estamos longe de possuir. Muitos pensadores antigos davam uma igual dignidade ontológica a todos os seres vivos (DOWELL, 2008, p. 20).
Diferentemente desta perspectiva cosmocêntrica, sofistas como Protágoras debruçaram-se unicamente sobre a questão do homem, fazendo nascer a cultura antropocêntrica, deslocando a questão do conhecimento do cosmos para o homem, que passa a ser referencial de medida para todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são (MARCONDES, 2004, p. 44).
Firmado o discurso sofistico e inaugurado o humanismo grego, a vida do animal passa a ter uma única finalidade: a de servir o homem. Apesar da ferrenha crítica ao relativismo sofista, os filósofos socráticos caminharam em sentindo semelhando no que diz respeito à importância do humanismo, afirmando Sócrates que a questão fundamental da filosofia não corresponderia à compreensão da natureza e de seus fenômenos, mas se relacionava com o estudo do homem em sociedade (LEVAI, 2004, p. 18). É a famosa máxima do “conhece-te a ti mesmo”, que difunde inquestionavelmente a concepção de conhecimento a partir do próprio homem.
Neste contexto, o homem passa a ser objeto de si mesmo, reconhecendo-se livre, o que não aconteceria com os animais que não podem exercitar esse autoconhecimento. Não se sabendo livres, os animais se colocariam na posição de escravos, contentando-se com a escravidão, uma vez que são incapazes de pensar como um “eu”, podendo ser controlados através do medo e da dor (SANTANA, 2006, p. 54).
Mais do que isso, os homens se diferenciariam dos animais por seu espírito. Segundo a concepção socrática, todos os animais possuiriam alma, mas apenas o homem teria um espírito. Além disso, acreditava-se que no corpo dos animais teria abrigo a alma de homens não virtuosos. No diálogo atribuído a Sócrates por Platão, temos esse entendimento explicitado de forma clara:
Sim, sem dúvida, Cebes; e é muito verossímil também que não sejam as almas dos bons, mas sim as almas dos maus que são obrigadas a vagar por esses lugares onde pagam a pena de sua primeira vida, que foi má, e onde continuam vagando até que, pelo amor que têm a essa massa corpórea que as segue sempre, vêm a se unir aos mesmos costumes que foram a ocupação de sua primeira vida. – Como é isso Sócrates? - Digo, por exemplo, Cebes, que aqueles que gozaram apenas a intemperança sem pudor, sem nenhuma contenção, entram realmente nos corpos de asnos e animais semelhantes, não crês? (PLATÃO, 1981, p. 53)
Trilhando caminho semelhante ao seu mestre, Platão também distingue entre três espécies de alma, que seriam de um lado o desejo e a disposição, presentes nos homens, crianças, escravos e animais, que permite a compreensão de pensamentos simples como “meu senhor está vindo em minha direção”; e, de outro, o pensamento, exclusividade dos homens. Desta forma, a alma teria o sentido de substância ou causa, sendo vista como “a mais importante atuação de um corpo com uma vida em potência, mas que, diferentemente do espírito, não pode dele separar-se, já que constitui a sua própria atividade. A alma, portanto, é a própria vida, estando para o corpo como a visão para o aparelho ótico” (ABAGNANO, 1982, p. 25).
Mantendo os mesmos pressupostos de Platão quanto à existência da alma, Aristóteles entendeu que o espírito seria uma espécie de alma intelectual, que poderia ser subdividida em espírito passivo, que se relacionaria com a alma sensitiva; e em espírito ativo, que produziria o pensamento, “assim como a luz conduz as cores do estado de potência ao ato” (ARISTÓTELES, 2001, p. 112-113). Portanto, desprovidos da alma sensitiva, não possuindo intelecção ou raciocínio, os animais não mereceriam qualquer consideração ética.
Segundo a concepção aristotélica, os animais possuiriam alma sensitiva, uma vez que possuem sentimentos, mas não possuiriam alma imaginativa, a inteligência, pertencente exclusivamente ao homem, único capaz de elaborar um discurso e de viver na polis. Sendo assim, a superioridade do homem em relação ao animal se daria, sobretudo, pelo dom da palavra, sendo natural, portanto, o domínio do homem sobre o animal, da mesma forma que também seria natural o domínio do de um homem que só tem força física por aquele que tem ideias. Nesse contexto de dominação, o animal se inclui na sociedade de forma equiparada ao escravo. Em suas próprias palavras: “A família se formou da mulher e do boi feito para lavra. O boi serve de escravo aos pobres” (ARISTÓTELES, 1951, p. XLV).
A grande cadeia dos seres criada com base nessa lógica de dominação faz o homem grego aparecer logo após os deuses, que estariam em seu topo, seguindo da mulher, das crianças, dos loucos e dos escravos, em ordem decrescente de parcela de espirito racional. Por fim, na base da pirâmide, encontram-se os animais, que não possuiriam espírito. Neste contexto, os seres que se posicionam na base da cadeia existiriam para servir aos que se encontram nos degraus mais elevados. Dessa forma, a posição dada aos animais é ainda mais penosa, uma vez que, embora reconheça que eles sintam dor e prazer, aprendam e experimentem os fenômenos, Aristóteles defende que eles são privados de um mundo espiritual, sendo incapazes de distinguir um ato de justiça e um ato de injustiça, não merecendo qualquer consideração moral (ARISTÓTELES, 2001, p. 114).
Comentando Aristóteles, Luhmann (2007, p. 728) esclarece que:
Coincidindo com as plausibilidades de uma ordem de sociedade estratificada e com a forma de cidade organizada, Aristóteles dita: “Em tudo o que é composto de parte e nasce delas para chegar a ser uma unidade comum (hén ti koinón)- seja de partes relacionadas ou separadas – sempre se apresenta também algo governante (to árchon) e algo governado (to archómenon)”. Para isso, Aristóteles apela maciçamente à natureza, à necessidade e à utilidade – e para a desigualdade só faz valer como argumento de justiça que as melhores partes são as que governam.
O homem pode, portanto, distinguir-se de outros seres e seu lugar no cosmos pode se determinar mediante estas distinções, uma vez que a ordem social de sua vida é manifestação da sua natureza. Se, por um lado, a natureza dá ao homem algumas características em comum com os demais animais, como a percepção sensorial, o movimento ou mesmo a morte, de outro lado, a natureza dota o homem daquela peculiaridade que o distingue dos demais e que a tradição chama de “razão”.
Em síntese, podemos concluir que o determinismo helênico partia do pressuposto de que todos os processos naturais estariam dirigidos a um determinado fim, definindo-se em função dele. A própria vida nada mais seria do que a realização de todas as possibilidades de existência que se contêm em potência nas ideias que correspondem às novas formas vivas. A natureza, portanto, seria uma grande ordem, dentro da qual cada uma das formas vivas ocuparia uma posição rígida e fixa, de forma a confirmar a imobilidade da grande cadeia do ser (ARAÚJO, 2003, p. 47).
Mesmo os estoicos, defensores da ideia de que todos os seres vivos são parte integrante da ratio universal, estando sujeitos ao mesmo Deus e à mesma lei, fizeram a ressalva de que a justiça estaria reservada apenas aos seres racionais, excluindo os animais desse universo (DIAS, 2004, p. 1). Neste contexto, “como o que distingue os seres humanos dos animais e os fazem participar da natureza divina é a razão, toda vida natural é sempre vida irracional e por isso os animais não podem ser incluídos na esfera da moralidade” (SANTANA, 2006, p. 50).
Conclui-se, portanto, que o patrimônio conceitual da sociedade helênica, ou seja, o conjunto de formas utilizáveis para a função de seleção dos conteúdos de sentido, não possui o tema direito subjetivo animal à disposição para emissão da comunicação. Dito de outra forma, o conceito de direito animal não faz parte dos significados de sentido condensados e reutilizáveis que está disponível para a emissão da comunicação.1
2. Império romano: do animal como res ao animal sujeito processual
Caminhando um pouco mais adiante na história, o trabalho dos jurisconsultos romanos, influenciado pelo estoicismo, possibilitou a difusão do ordenamento jurídico romano pelo ocidente, inserindo os animais num contexto privatista em que a noção do direito alcançaria apenas os homens em sociedade.
A concepção romana reduz o direito à realidade, caracterizando-o fundamentalmente por seu caráter objetivo, em algo externo ao sujeito, como a partilha de bens materiais, dentre os quais estavam os animais, que passaram a serem considerados como res, como coisas, recebendo o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados e à propriedade privada (LEVAI, 2004, p. 19).
Neste contexto, duas seriam as classes de animais, a depender do interesse econômico que se tinha sobre eles. Os animais domésticos, de tração e carga eram classificados como res mancipi, ou seja, coisa passível de apropriação para fins econômicos e socioculturais. Já os animais silvestres eram classificados como res nec mancipi, que significa coisa não passível de apropriação. Num momento posterior, época em que o Império Bizantino preservou a tradição jurídica romana, houve uma modificação dessa forma de classificação dos animais, que passaram a ser considerados como bens móveis e semoventes, conforme previa uma Constitutio de Justiniano, do ano de 531 D.C; ou como res nullius, coisa de ninguém, a exemplo dos animais silvestres, ou, ainda, res derelicta, coisa abandonada por seus proprietários que, renunciando a seu direito de propriedade, possibilitariam que outros viessem a adquirir a propriedade originária (ALVES, 1999, p.140-147).
O interesse econômico nos animais se tornou ainda mais intenso com a conhecida política do pão e circo, desenvolvida por Roma. Objetivando desviar a atenção da população dos reais problemas enfrentados pelo Império Romano, surgem formas de entretenimento do grande público que se utilizam dos animais. Primeiramente o Circo Máximo de Roma e, um pouco depois, o imenso Coliseu, foram cenário para exibição de animais exóticos, dentre outras raridades e excentricidades. “No período de perseguição ao cristianismo, as arenas foram ocupadas por espetáculos de violência, como a sangrenta entrega de cristãos a felinos” (MARTINS, 2008, p. 119).
Sobre o tema, esclarece Jamieson (2008, p. 51) que:
Os Romanos, por exemplo, mantinham animais como isca viva para os jogos. Seu entusiasmo para os jogos era tanto que até os primeiros tigres levados a Roma, presente para Augustos César de um governante indiano, iriam para arena. O imperador Trajan durou 123 dias consecutivos de jogos para celebrar a conquista de Dácia. Durante os jogos, onze mil animais foram sacrificados, incluindo, leões, tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas, búfalos, renas, crocodilos e serpentes. Os jogos eram populares em todas as partes do Império. Quase todas as cidades tinham uma arena e coleções de animais para colocar nela. Na França do século V, havia vinte e seis arenas que continuaram a triunfar até o final do século VIII.
Com a queda do Império Romano, a influência das superstições dos povos ditos bárbaros produz uma radical mudança no tratamento dos animais pelo direito, reconhecendo-lhes uma capacidade processual, tanto no âmbito cível, possibilitando sua responsabilização por danos materiais causados, quanto no âmbito penal, sendo-lhes imputados os crimes cometidos, a exemplo dos casos de atentados à vida humana. Sobre o tema, Azkoul (1995, p. 27) esclarece que:
Durante a época dos bárbaros os animais foram incluídos na relação de direitos comuns, a qual sempre regulou as relações de pessoas na atualidade. Sendo certo que o animal na atualidade é irresponsável pelos próprios atos, respondendo por eles aqueles titulares que têm sob sua guarda o referido animal. A contra senso, antigamente, caso o animal cometesse uma falta devia ser punido; no entanto, eram-lhes reconhecidos direitos legais de serem assistidos por advogados e todos os meios de provas admitidas.
Neste momento histórico particular, houve, portanto, uma igualdade de tratamento, ao menos processual, entre homens e animais, submetendo-lhes aos mesmos suplícios, como a prisão e a pena de morte. Contudo, tal tratamento deriva não do desenvolvimento de uma consideração moral para com o animal, mas sim de um conjunto de fatores típicos do início da Idade Média, como a forte crença em superstições ou, ainda, como forma de justificar os males que recaiam sobre a sociedade da época, que exigiam uma resposta perante a população faminta e miserável.
Desse modo, a Igreja e a nobreza feudal, que, dentro do modelo pluralista do medievo, criavam e aplicavam normas de conduta, buscaram responsabilizar pelos males da sociedade qualquer tipo de seres, até mesmo os inanimados. Homens, ratos, insetos e até mesmo pedras foram responsabilizados juridicamente pelas pragas e outros males que assolavam a Europa da época, como forma de expiar o mal (SANTANA; OLIVEIRA, 2006, p. 78).
Este tratamento processual isonômico de homens e animais é explicado em detalhes por Azkoul (1995, p. 29-31):
Poderia se interrogar como poderiam os animais responder a quaisquer processos judiciais se, durante o Medievo, mal havia se fortalecido o Estado Nacional? Sucede que durante a Idade Média, por razões históricas, a autoridade jurisdicional era distribuída entre a Igreja Católica, ente supranacional que predominava na época e que herdara a processualística romana, e os Feudos, cujo direito era extremamente casuístico, salvo pouquíssimas exceções que tentavam aplicar alguns institutos do Direito Romano adequando-o à realidade local. Assim, boa parte dos processos contra animais tramitavam nas instâncias judiciais eclesiásticas, havendo, primeiro, uma fase pré-processual com a autoridade religiosa do lugar, um padre, por exemplo, proferindo maldições contra os animais que causassem quaisquer danos materiais, em casos que não haviam atentado direto à vida humana, pois estes implicavam em imediata prisão do animal. Em seguida, era redigida uma petição ao juiz eclesiástico o qual oficiava o Promotor de Justiça para acompanhar os autores da ação e nomeava um advogado dos réus. “Os animais eram citados e intimados a comparecer ao tribunal” e caso não comparecessem após a terceira citação, eram condenados por revelia, sendo aplicada a pena de expulsão, ao mesmo tempo em que o advogado dos animais recorreria da decisão, fazendo as alegações que entendesse pertinentes, cabendo ao Promotor de Justiça replica-las, reafirmando a condenação.
Pode-se pensar, equivocadamente, que, sendo equiparados em responsabilidade, homens e animais possuiriam os mesmos direitos. Sendo assim, tanto deveria ser punido o animal que lesionasse o homem, quanto o homem que lesionasse o animal. Mas não era assim que ocorria, pois só haveria crime se um animal lesasse um ser humano, visto que o “seu gesto representava objectivamente uma insurreição contra a ordem hierárquica estabelecida pelo Criador, que colocava o homem numa posição incomensuravelmente superior à dos não-humanos, uma posição valorativamente inexpugnável” (ARAÚJO, 2003, p. 75). O julgamento dos animais ainda tinha outro objetivo prático: servia como advertência para que os humanos não atentassem contra a hierarquia e estratificação social, caracterizadoras da época medieval.
Esta concepção define os lugares apropriados para todos os estratos da ordem hierárquica por meio de três dicotomias que tendem a convergir: todo/parte; mais alto/mais baixo e fins/meios, tendo sido introduzidas por Aristóteles, como vimos, e utilizada como fórmula de coerência no marco geral de uma cosmologia religiosa, como em Tomás de Aquino, conforme veremos (LUHMANN, 1998, p. 77).
Vê-se, portanto, que não houve uma real modificação no conteúdo do sentido do conceito de animal durante a Idade Média, muito embora tenha havido um tratamento processual igualitário. O patrimônio semântico do medievo se manteve praticamente inalterado, o que podemos atribuir à filosofia clássica, sobretudo às ideias de Platão e Aristóteles, incorporadas pela Igreja Católica, que insistiu no aspecto teleológico da vida animal, que ocuparia uma posição estanque na base da grande cadeia do ser, conforme vermos a seguir. Ou seja, “a distinção ser - humano/animal ocupou o lugar que hoje gostaríamos que ocupasse uma teoria da sociedade. É precisamente neste sentido de autodescrição da sociedade que a antiga Europa se concebe humanisticamente” (LUHMANN, 2007, p. 740-741).