Um procedimento que deveria ser simples, e que requer uma inicial de no máximo duas páginas, é o pesadelo vivo de qualquer advogado brasileiro – estou falando das execuções de títulos, sejam judiciais ou extrajudiciais. As dificuldades começam ao tentar se encontrar o devedor, e quando finalmente se consegue citar o mesmo, vem a segunda luta, que é encontrar bens para garantir a execução. Mas o mais lamentável é quando, por não se cumprir alguma formalidade legal, o devedor consegue transferir aquele que seria o único bem apto a garantir a execução.
E não faltam casos de fraude contra o credor, ou contra a execução. Em muitos casos, esta fraude pode ser evitada mediante a averbação da penhora.
No processo de execução por quantia certa contra devedor solvente, ocorrendo alienação ou oneração de bem passível de averbação ou registro de penhora, só se configurariam duas hipóteses: Existindo a averbação no órgão registrário, há presunção jure et de jure da má-fé do adquirente, e não existindo, há presunção juris tantum da boa-fé do adquirente. No primeiro caso, a penhora não surtiu efeito.
Fraude à execução existe quando ocorre um ato de disposição ou oneração sobre um bem, já existindo uma ação em andamento contra o devedor que possa afinal resultar em insolvência deste. Este é o sentido da norma contida no artigo 593 e seus incisos do CPC, complementada pelo disposto nos artigos 42, § 3º e 672, § 3º.
A alienação ou oneração do bem no momento em que simplesmente existe uma ação passível de reduzir o devedor à insolvência não merece ser tratada da mesma forma quando já existe uma execução em andamento, e o executado tem a obrigação, inclusive, de não praticar quaisquer atos que obstem o sucesso desta execução. Casos existem, e não são poucos, onde o executado busca por todos os meios se eximir da sua obrigação, em prejuízo do exequente.
No caso dos bens que se transmitem pela simples tradição, combater fraude à execução encontra óbice na delicada questão envolvendo a boa-fé do adquirente.
Já no caso dos bens para cuja transmissão requer-se registro ou averbação, por se transmitirem exclusivamente pelo ato registrário, a proteção é muito mais simples, fazendo-se mediante a averbação da execução (artigo 615-A do CPC) e averbação da penhora (artigo 659, §§ 4º e 5º do CPC).
Em grande parte das vezes em que é necessário discutir-se a ocorrência ou não de fraude à execução existe desídia do exequente – pelo simples fato de o mesmo não ter averbado a penhora. Cabe observar que a averbação da penhora também pode ocorrer para bens móveis quando isto é previsto em lei, como no caso de aeronaves e seus motores quando a averbação é igualmente obrigatória e regida por lei especial, o Código Brasileiro de Aeronáutica neste caso, e também no caso de navios, nos termos da parte vigente do Código Comercial. Por este motivo, aqui se prefere referir a órgão registrário, pois a lei não se restringe ao registro imobiliário.
Nos últimos anos o Código de Processo Civil passou por modificações quando a execução recai sobre bens imóveis, na busca de dois resultados: Garantia da satisfação dos créditos do credor que procura tutela jurisdicional, e menos movimentação da máquina judicial no cumprimento deste afã. Neste ínterim a Lei 6.015/73, lei especial de cunho processual, manteve a averbação da penhora como obrigatória.
No CPC o primeiro grande passo foi, em 1994, a introdução do § 4º no artigo 659 - “A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, e inscrição no respectivo registro"
Ora, a partir daí a inscrição da penhora no “respectivo registro”, que até então era obrigatória por força do Código Comercial (navios), Código Brasileiro da Aeronáutica (Aeronave e seus motores) e Lei de Registros Públicos, passou a integrar o rito processual (a lei processual limitando-se aos bens imóveis), e destarte sempre ter se permitido a discussão de fraude à execução nos casos onde a penhora não foi averbada, até mesmo porque como se sabe fraude à execução pode também ocorrer em processo de conhecimento, o fato é que na execução a ausência desta averbação ocorre em duplo prejuízo: Tanto de quem adquire o imóvel de boa-fé, quanto do Estado, que tem sua máquina judiciária movimentada para, a partir da complexa atividade da análise de provas, ter que julgar a ocorrência ou não da fraude.
Visto por outro ponto de vista, a penhora sem cumprimento de um dos requisitos legais culmina na nulidade da própria penhora, por força das leis especiais, sendo que também o exequente perde o benefício advindo da presunção absoluta de má-fé do adquirente, assumindo o ônus da prova, devendo demonstrar que o adquirente tinha conhecimento da existência da penhora.
Neste sentido, decisão do Colendo STJ:
I - Para a caracterização da fraude de execução, relativa à alienação de bem constrito, é indispensável a inscrição do gravame no registro competente, cabendo ao exequente, na ausência desse registro, provar que o terceiro adquirente tinha ciência do ônus que recaía sobre o bem. II - Exatamente para melhor resguardar o terceiro de boa-fé, a reforma introduzida no Código de Processo Civil pela Lei 8.953/94 acrescentou ao art. 659 daquele estatuto o § 4º, segundo o qual, "a penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, e inscrição no respectivo registro". III - Não prevalece a arrematação, contra o pedido de anulação feito pelo proprietário, que não é o executado, se o arrematante não demonstra que à época da transferência da propriedade o adquirente tinha conhecimento da existência da penhora. (STJ, REsp 215306/MG. Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª Turma, DJ 13.09.1999 p. 72)
De fato, a interpretação gramatical da norma, confirmada pela interpretação jurisprudencial, leva a uma única conclusão possível: Sem a inscrição da penhora perante o órgão registrário a penhora não prevalece contra o terceiro adquirente.
Aqui cabe estudar, ainda que brevemente o que vem a ser a penhora.
A penhora, uma das muitas medidas constritivas, é o ato específico da intromissão do Estado na esfera jurídica do executando quando a execução precisa de expropriação de eficácia do poder de dispor. Tudo que então se passa, entre juiz, oficial de justiça e devedor, é mandamental, mas a serviço da execução. [...] Os atos de alienação praticados pelo devedor penhorado são ineficazes; isso significa que não lhe foi tirado todo o poder de dispor, e sim que se lhe tirou o poder de dispor eficazmente, em prejuízo do exequente (ineficácia relativa). A compra-e-venda de bens penhorados não é nula, nem anulável; é apenas ineficaz, não se pode opor ao exequente. (MIRANDA, 2002, p. 77)
Temos portanto, que no direito processual civil, a alienação do bem penhorado não é nula nem anulável, mas ineficaz perante o exequente. A penhora atinge, no âmbito do direito real, o jus abutendi, o direito de dispôr, mas mesmo assim não de forma absoluta. O que acontece na prática é que o adquirente não pode, havendo penhora averbada, opôr sua aquisição perante o exequente, como no caso de embargos de terceiro, pois nesta situação a presunção de que o adquirente tinha conhecimento da execução/penhora é absoluta.
Mas na hipótese da inexistência da averbação, o posicionamento reiterado da jurisprudência é no sentido de que a alienação permanece válida, impondo-se ao exequente o ônus de provar que o adquirente tinha conhecimento da execução e da penhora. A simples presunção de que o adquirente “devia saber” não existe, agora presume-se que não sabia.
Em 2002 a lei não amenizou esta obrigação do exequente, pois com a nova redação o § 4º do artigo 659 do CPC mantém o exequente na obrigação de averbar a penhora no registo de imóveis, com a ressalva de que agora a lei traz uma parte de interpretação legal ou autêntica, “para presunção absoluta de conhecimento por terceiros”. Vale sustentar a tese de que, sendo a averbação elemento da norma que regula a penhora do imóvel, na ausência deste a penhora pode e deve ser tida como inexistente perante o adquirente.
Com a lei 11.382/06 esta situação não se modificou, e a despeito da evolução do Código de Processo Civil, nas três leis especiais mencionadas a averbação ou registro da penhora manteve-se como situação sine qua non, inclusive para a eficácia do ato (LRP). Daí que a penhora não averbada é penhora nula. Por certo trata-se de nulidade, tal como denominada por Pontes de Miranda, “não-cominada”, o que remete ao artigo 243 e seguintes do CPC. Se considerarmos o novel artigo 615-A, agora pode-se com apenas a certidão da distribuição da execução efetuar-se a averbação da execução no órgão registrário, e é fácil perceber o interesse do legislador em diminuir as contendas tão facilmente resolvidas com o simples agir do exequente, pelo que o exequente tem, mesmo muito antes da averbação da penhora, a oportunidade de efetuar a averbação da execução, dando ao eventual adquirente do bem o alerta de que existe a intenção de penhora sobre este determinado bem, e avisando-o de que eventual aquisição culminará em presunção absoluta de sua má-fé.
A penhora, se feita mediante a apresentação da certidão de matrícula do bem, será feita por termo nos autos, do que deve ser extraída a certidão de inteiro teor do ato (da penhora), para final averbação. A lei, neste ponto, privilegia o exequente que não precisa mais distribuir uma precatória para que a penhora se efetue onde se localiza o bem. A proteção ao terceiro de boa-fé, por outro lado, se agiganta com o cumprimento do preceito legal na forma como se demonstra. É possível até ousar, e salvo prova robusta de conluio, simplesmente não se conhecer da arguição de fraude à execução nos casos em que houve simples desídia do exequente em se averbar a penhora. É que se o exequente não cumpriu o seu munus e descumpriu a lei, não pode agora arguir sua própria torpeza. Outro argumento neste sentido vem do fato que o direito não socorre quem dorme, e de vez que o código subjetivo impõe ao exequente a obrigação de determinados atos dentro de uma execução, este detém a obrigação de praticá-los na forma e momento apropriados, na busca da proteção de seus direitos.
Ademais, a não averbação da penhora ocorre apenas para se economizar as custas e despesas concernentes, em detrimento do preceito legal, e porque não se mencionar, em detrimento também das taxas, custas e emolumentos a que os órgãos registrários fazem jus. Se o exequente não se submeteu aos gastos da averbação, e agiu ao arrepio da lei, é injusto que invoque, posteriormente, proteção que a lei não lhe concede.
Aqui cabe especificar o direito material violado. A lei 6.015/73, contemporânea ao nosso CPC, prevê em seu artigo 240 que a averbação da penhora “faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior”, mas a coisa não para aí. A leitura conjunta dos artigos 1, 169 e 167 Inc. I nº 5, demonstra que a averbação da penhora é ato necessário, sob pena de ineficácia do ato.
Daí que a penhora não averbada é penhora nula.
No mesmo sentido, vale dizer que o artigo 155 do Código Brasileiro de Aeronáutica obriga incondicionalmente que a penhora de aeronave e motores seja averbada no Registro Aeronáutico Brasileiro, além de impor que a guarda e depósito de aeronave e motores judicialmente constritados se faça nos termos dos artigos 312 a 315 da mesma lei. Novamente a penhora ocorrendo sem a averbação é nula, por violação explícita de dispositivo legal. O Código Comercial também fala em nulidade, em seu artigo 468, no caso em que não estejam presentes todas as anotações do registro do navio.
É importante atentar-se ao fato de que o mesmo dispositivo que admite a averbação da execução, ou seja, o artigo 615-A, vincula expressamente no seu § 3º a fraude de execução do artigo 593 especificamente à existência desta averbação. Sem esta averbação, não há fraude possível, existe pura desídia do exequente.
Ressalva se faz apenas fora dos casos de execução de título extrajudicial, onde prevalece o disposto no artigo 593 do CPC, mas face à inexistência de averbação no órgão registrário nos outros tipos de processo, resta a presunção juris tantum de boa-fé do adquirente, onde retorna-se à necessidade de o credor demonstrar a má-fé, se presente.
Voltando à execução de título extrajudicial, aí o que se busca é a satisfação de um crédito. Daí que existindo a hipótese de fraude à execução não se persegue o devedor que caiu em insolvência, porque isto seria inútil. Persegue-se a coisa, mas só a partir da constatação da má-fé do adquirente.
Este é o posicionamento da melhor doutrina:
Hoje, pode-se ter como assentada a jurisprudência de que só se configura a fraude de execução, em matéria de alienação do bem penhorado, se:
a) o ato de disposição for posterior ao registro da penhora, porque dito registro "faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior (Lei nº 6.015, art. 240)" (STJ, 4ª T., AG 4.602/PR, AgRg, Rel. Min. ATHOS CARNEIRO, 04.03.1991, DJU 01.04.1991, p. 3.423); ou
b) se não houver registro da penhora, só pode-se cogitar de fraude “se o credor provar que o terceiro adquiriu o imóvel sabendo que estava penhorado” (STJ, 3ª T., REsp 113.666/DF, Rel. Min. MENEZES DIREITO, Ac. 13.05.1997, DJU 30.06.1997, p. 31.031). Ou seja, para que a fraude de execução se configure quando inexiste o registro, ao tempo da alienação, incumbe ao credor "fazer a prova da má-fé do terceiro adquirente" (STJ, 4ª T., REsp 76.063/RS, Rel. Min. RUY ROSADO, Ac. 08.04.1996, DJU 24.06.1996, p. 22.767). (THEODORO JUNIOR, 2001)
Neste mesmo sentido o entendimento do Colendo STJ, do qual se transcrevem mais duas ementas:
“Assentou a 2ª Seção do STJ que fica afastada a fraude à execução se, vendido o imóvel em data anterior à inscrição da penhora, não existir prova da má-fé do adquirente.” (STJ, REsp 648457/MT, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, DJ 29.08.2005 p. 334)
“Não há que se falar em fraude contra credores se, quando da alienação do bem, não havia registro de penhora. Para tanto, teria que restar nos autos provado que o terceiro adquirente tinha conhecimento da demanda executória, o que não ocorreu no caso em apreço. Precedentes.” (STJ, REsp 791104/PR, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, 1ª TURMA, DJ 06.02.2006 p. 222)
A penhora não averbada pode até ser válida dentro dos autos onde deferida, mas apenas entre exequente e executado.
Por certo os tribunais consideram a penhora como ineficaz perante o terceiro de boa-fé, ao passo em que a penhora, se averbada, faria com que a alienação fosse considerada ineficaz perante o exequente. Mas as leis especiais impõem a averbação como condição sine qua non na penhora de imóveis, aeronaves e navios, onde sem a averbação, a penhora sobre tais bens pode sim ser considerada como nula nos termos dos artigos 243 e seguintes do CPC, e uma vez ausente a averbação da penhora no órgão registrário, a má-fé do adquirente, caso comprovada, corre o risco de apenas se equilibrar com a má-fé do exequente que deixou de promover ato essencial que daria validade jurídica à penhora.
BIBLIOGRAFIA
THEODORO JUNIOR, Humberto, Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº 12 – JUL-AGO/2001, São Paulo: Síntese, 2001, pág. 14
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil: tomo X, arts. 612 a 735. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 134