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A vedação das provas ilícitas e a busca da verdade no processo penal

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Agenda 08/11/2014 às 11:43

Aborda-se a polêmica questão da inadmissibilidade de provas ilícitas no processo, em especial o penal, e os problemas de ordem prática que a aplicação incondicional do instituto pode gerar.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagrou como um de seus princípios mais importantes a vedação à utilização de provas obtidas por meios ilícitos no âmbito processual. O citado princípio encontra-se inserido no longo rol dos direitos e garantias fundamentais, mais precisamente no art. 5°, LVI, o qual prescreve: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Como se sabe, a Constituição representa a norma fundamental, de modo que todo o ordenamento jurídico estará atrelado às disposições constitucionais, não podendo contrariá-las, conforme ensina Norberto Bobbio em sua obra:

Dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas: essa norma é a norma fundamental. A norma fundamental, enquanto, por um lado, atribui aos órgãos constitucionais poder de fixar normas válidas, impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o dever de obedecê-las.[1]

Dessa forma, o sistema jurídico brasileiro, especialmente na seara processual, encontra-se de certa maneira preso a esse princípio, o qual deverá ser aplicado em todos os momentos processuais e pré-processuais, como durante o inquérito policial, por exemplo, que envolvam a produção de provas.

Conforme observa Mauro Cappelletti, embora a concepção moderna da atividade probatória seja no sentido de propiciar todos os elementos relevantes para a valoração crítica do juiz, há hipóteses em que o próprio direito a prova deve ceder a outros valores, em especial se estão constitucionalmente previstos e garantidos[2].

Por outro lado, é necessário analisar até que ponto tal princípio deve ser aplicado. Como qualquer outra norma jurídica, a vedação de provas ilícitas não possui caráter absoluto. Em diversos momentos, haverá choques com outros princípios constitucionais.

Nesse contexto, Feitosa observa que não há bem jurídico que receba proteção absoluta em nosso ordenamento, lembrando que até mesmo o direito à vida pode ser relativizado quando se verificar, por exemplo, a incidência de excludente de ilicitude.[3]

No caso da proibição ao uso de provas ilícitas, não é diferente. Quando a sua aplicação reproduzir transgressão a direito que se mostre mais relevante, é preciso que se relativize a regra da vedação, podendo-se acolher a prova ilícita para resguardar esse direito. Em situação como tal, deverá o juiz empregar o princípio da proporcionalidade, visando ponderar os interesses em conflito para decidir qual deverá prevalecer.[4]

O princípio da proporcionalidade, com origens no direito alemão, encontra também guarida na Constituição Federal. Porém, ao contrário da maioria dos outros princípios, este está consagrado de maneira implícita. Entende a maior parte da doutrina que a proporcionalidade é um desdobramento do direito ao devido processo legal, constante do art. 5º, LIV, da CF, em um sentido substantivo ou material.

Sobre isso, assim sustenta Paulo Henrique Lucon: “O devido processo legal substancial diz respeito à limitação ao exercício do poder e autoriza ao julgador questionar a razoabilidade de determinada lei e a justiça das decisões estatais, estabelecendo o controle material da constitucionalidade e da proporcionalidade.”[5]

Ademais, é também possível extrair o princípio da proporcionalidade da própria lógica democrática instituída pela Lei Maior, onde não se pode reconhecer nenhum direito como sendo absoluto, sob pena de pôr em risco todos os outros.

É relevante salientar que não há qualquer tipo de hierarquia entre os princípios constitucionais implícitos e os explícitos, na medida em que ambos possuem status constitucional. Os princípios explícitos apenas são mais fáceis de se detectar no texto normativo.

Ainda sobre o princípio da proporcionalidade, o renomado jurista Paulo Bonavides assim se posiciona: “A vinculação do principio da proporcionalidade ao Direito Constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais. É aí que ele ganha extrema importância e aufere um prestígio e difusão tão larga quanto outros princípios cardeais e afins, nomeadamente o princípio da igualdade.”[6]

Logo, observa-se que para a aplicação da proibição de provas ilícitas, deve-se levar em consideração uma série de fatores: primeiramente, é preciso delimitar exatamente o conceito de provas ilícitas, distinguindo as provas ilícitas das provas ilegítimas, além de destacar alguns pontos especiais, como é o caso da prova ilícita por derivação (Teoria dos “Frutos da Árvore Venenosa”, importada do Direito norte-americano).

Além disso, é necessário levar em conta os outros direitos que poderão estar em jogo no caso concreto, dentre eles, podemos citar como exemplo, o direito à prova como meio indispensável à confirmação dos fatos alegados pelas partes, também insculpido de maneira implícita na Carta Magna, além de princípios como o da busca da verdade real e do livre convencimento do Juiz.

Assim, a ponderação de valores vem se tornando cada vez mais importante no contexto da vedação das provas ilícitas, uma vez que esta proibição geralmente afeta outros direitos, já que muitas vezes desconsiderar a prova ilícita acaba significando fechar os olhos para a verdade.

Sobre o assunto, Ada Pellegrini Grinover também leva em consideração a importância da proporcionalidade e da razoabilidade:

Outra tendência que se coloca em relação às provas ilícitas é aquela que pretende mitigar a regra de inadmissibilidade pelo princípio que se chamou, na Alemanha, da “proporcionalidade” e, nos Estados Unidos da América, da “razoabilidade”; ou seja, embora se aceite o princípio geral da inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos, propugna-se a idéia de que em casos extremamente graves, em que estivessem em risco valores essenciais, também constitucionalmente garantidos, os tribunais poderiam admitir e valorar a prova ilícita.[7]

Ante o exposto, rediscutiremos os limites da desconsideração das provas ilícitas no âmbito do processo criminal, tendo em vista uma série de fatores como a conceituação mais precisa possível de prova ilícita, o grau de confiabilidade de uma prova obtida ilicitamente nas diversas hipóteses de casos concretos e os outros bens jurídicos que poderão estar em jogo nas inúmeras situações analisadas em processos criminais.

Desse modo, procuraremos demonstrar como o princípio da vedação das provas ilícitas, apesar de sua grande importância num Estado Democrático de Direito, na prática, pode acabar ocasionando flagrantes injustiças se for aplicado de maneira absoluta.

1. O Princípio da Vedação de Provas Ilícitas

A vedação de provas ilícitas, conforme mencionado acima, se encontra consagrada no Art. 5º, LVI, da Constituição Federal. Este princípio limita o direito à prova, o qual é corolário dos direitos de ação, defesa e contraditório, também garantidos pela Carta Magna (art. 5º, LV).

De modo a regulamentar a sua utilização, a legislação processual prevê uma boa quantidade de meios de prova, isto é, de recursos através dos quais as provas são trazidas ao processo, tais como depoimentos, perícias e interrogatórios. No entanto, não há uma enumeração taxativa dos meios de prova que poderão ser utilizados no processo, até mesmo porque isso seria impossível para o legislador, tendo em vista a imensa variedade de formas pela qual se pode provar um fato.

Sobre isso, Espíndola Filho leciona que, em decorrência da inadmissibilidade de limitações dos meios de prova, se conclui não ser necessário que cada meio de prova utilizável esteja expressamente previsto ou autorizado em lei, bastando que não seja proibido ou incompatível com o sistema geral de direito positivo.[8]

Visando compreender melhor o tema, é importante, antes de tudo, procurar distinguir os conceitos de provas ilícitas em sentido estrito e de provas ilegítimas.

São ilícitas em sentido estrito as provas obtidas com violação a alguma norma ou princípio de direito material, isto é, conseguidas através de conduta para a qual o direito penal, civil ou administrativo, por exemplo, imponha para o infrator uma sanção de natureza também material, em geral visando proteger às liberdades públicas e o direito à intimidade. Seria o caso das provas obtidas com violação ao domicílio (art. 5º, XI, CF) ou das comunicações (art. 5º, XII, CF); as conseguidas mediante tortura ou maus tratos (art. 5º, III, CF); as colhidas com infringência à intimidade (art. 5º, X, CF), dentre outras.[9]

As provas ilegítimas, por sua vez, são aquelas obtidas com violação a norma de direito processual. Com relação a essas provas, a própria legislação processual apresenta dispositivos que tratam do destino que será dado a elas no processo, prevendo, em regra, o seu afastamento. Tem-se, portanto, uma sanção de natureza processual.

Em nosso ordenamento jurídico, por força do art. 5º, LVI, da CF, há uma equiparação entre as provas ilegítimas e as provas ilícitas em sentido estrito, na medida em que se cumula a estas, além da sanção de direito material eventualmente cabível, uma sanção de natureza processual, isto é, sua inadmissibilidade. Nas palavras de Grinover, Scarance Fernandes e Gomes Filho: “... ao prescrever expressamente a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a Constituição brasileira considera a prova materialmente ilícita também processualmente ilegítima, estabelecendo desde logo uma sanção processual (a inadmissibilidade) para a ilicitude material”.[10]

Para alcançar com maior precisão os aspectos do princípio insculpido no art. 5º, LVI, da Carta Magna, é necessário analisar inicialmente algumas características relacionadas ao direito à prova, às origens do instituto de inadmissibilidade de provas ilícitas e ao tratamento dado pelas diversas ordens jurídicas no decorrer da história, em especial a brasileira, como veremos a partir do tópico seguinte.

1.1 O Direito à Prova

A palavra “prova” é oriunda do termo latim probatio, que significa “exame”, “inspeção”, “verificação”, “confirmação”. Deriva do verbo probare, que seria equivalente a “provar”, “demonstrar”, “examinar”, “verificar”. Em suma, pode-se dizer que prova é o elemento utilizado para persuadir alguém da veracidade de algo. Sobre o tema, assim se posiciona Fernando Capez:

...o tema referente à prova é o mais importante de toda a ciência processual, já que as provas constituem os olhos do processo, o alicerce sobre o qual se ergue toda a dialética processual. Sem provas idôneas e válidas, de nada adianta desenvolverem-se profundos debates doutrinários e variadas vertentes jurisprudenciais sobre temas jurídicos, pois a discussão não terá objeto.[11]

No cenário processual penal, a definição dada por Gomes Filho é bastante esclarecedora. Segundo ele, o termo prova indicaria, em sentido amplo, “o conjunto de atividades realizadas pelo Juiz e pelas partes na reconstrução dos fatos que constituem o suporte das pretensões deduzidas e da própria decisão”.[12]  Ou, em sentido estrito, “também pode aludir aos instrumentos pelos quais as informações sobre os fatos são introduzidas no processo (meios de prova); e, ainda, dá o nome ao resultado dessas atividades”.[13]

O objetivo de um processo judicial não é outro senão encontrar e em seguida estabelecer uma verdade, a qual decorrerá de um procedimento pautado pelo contraditório, onde ambas as partes tenham iguais oportunidades de participar e influenciar no convencimento do magistrado. Nas palavras de Malatesta: “Todo o processo penal, no que respeita o conjunto das provas, só tem importância do ponto de vista da certeza do delito, alcançada ou não”.[14]

                  Deve-se levar em consideração que o julgador não esteve presente no momento da ocorrência de uma infração penal, por exemplo. É por esta razão que as provas possuem participação fundamental durante o processo. Através delas, é possível reconstituir os fatos analisados, de modo que o juiz seja capaz de construir a sua própria convicção a respeito deles.

Assim, pode-se dizer que a prova judiciária tem como objeto os fatos relevantes para a causa, fatos cujo conhecimento é essencial para a determinação da norma a ser aplicada. Segundo Greco Filho, a prova não teria um fim em si mesma, de caráter moral ou filosófico, mas sim uma finalidade prática, isto é, convencer o seu destinatário, o juiz. [15]

O autor ainda ressalta que não se busca a certeza absoluta, a qual seria impossível, mas a certeza relativa suficiente para a convicção do magistrado.[16]

De fato, apesar de o objetivo primordial do processo, especialmente o penal, ser a busca da verdade, é impossível atingi-la com absoluta precisão, pois as provas apenas possibilitam uma reconstrução artificial dos fatos. Por essa razão, na prática, pode-se dizer que o processo não busca encontrar a verdade, mas sim a maior aproximação possível, de modo a tornar a dúvida insignificante, mas nunca inexistente.

E o meio para que se chegue a essa aproximação são as provas, sendo esta a razão de sua vital importância para a aplicação do Direito. Pois, ainda que não sejam capazes de trazer uma certeza, podem reduzir a dúvida a um grau mínimo.

1.2 Histórico da Vedação das Provas Ilícitas no Direito Comparado

No final do século XVIII, surgiram dois documentos de imensa importância para a História do Direito: a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França (1789). Ambos os documentos são frutos de grandiosos movimentos revolucionários, com base em ideais iluministas. E, como tais, tiveram como seu mais relevante ponto em comum a exposição dos direitos essenciais da pessoa, concretizando a ideia de que a Lei Maior de um Estado não deve apenas regular a estrutura política e administrativa do mesmo, mas também elencar os direitos e garantias fundamentais que deverão ser protegidos pela ordem jurídica.

Posteriormente, esse mesmo fenômeno se verificou também em praticamente todas as Constituições de países que, seguindo os modelos francês e americano, pretenderam criar um Estado Democrático de Direito.

Porém, nota-se que nenhuma dessas novas Cartas Magnas continha em seus textos disposições acerca dos efeitos gerados por ato que violasse algum dos direitos ali previstos. Isto é, não havia qualquer disposição que impusesse a invalidade desses atos. No caso de uma prova ilícita, por exemplo, considerando que esta houvesse sido obtida por meios inconstitucionais, evidentemente os agentes responsáveis pelo ato ilícito seriam punidos mediante as regras de direito material, no entanto, permanecia a lacuna com relação à admissibilidade processual das mesmas.

Assim, surgiu o entendimento de que tais provas deveriam ser aproveitadas no âmbito processual, independentemente da ilicitude material e sua respectiva sanção. Conforme ressalta Hairabendián, utilizava-se a máxima segundo a qual aquilo que não está expressamente proibido, é permitido, sem prejuízo das eventuais sanções penais ou administrativas ao responsável pela infração aos direitos fundamentais.[17]

Em contrapartida, e em razão da mesma lacuna constitucional, começa a surgir a ideia da necessidade de exclusão das provas ilícitas do processo, como mais uma forma de salvaguardar os direitos fundamentais ainda recém-nascidos naquele momento.

A ordem jurídica percussora na aplicação dessa tese foi a dos EUA, cuja jurisprudência, já no início do século XIX, vinha se posicionando no sentido de desconsiderar no processo as provas obtidas por meios ilícitos. Concretizava-se, assim, a chamada Teoria da Exclusionary Rule, segundo a qual a invalidação dos efeitos de atos produzidos com violação aos direitos consagrados na Constituição era regra implícita da própria Carta.

Em 1886, a Suprema Corte Americana, apreciando o caso BOYD v. US, entendeu que, para que se aplicasse a Exclusionary Rule, seria necessário que, na ocasião da obtenção do material probatório em tela, ocorresse violação à Quarta[18] e à Quinta[19] Emenda. Isto é, se, apesar de desrespeitados outros dispositivos constitucionais, não houvesse ofensa a nenhuma das citadas emendas, ou ainda que ofendida apenas uma delas, a prova poderia ser aproveitada.

Quase três décadas depois, em 1914, a mesma Corte modificou seu posicionamento ao julgar o caso WEEKS v. US. Ocasião na qual, entendeu-se que bastaria a violação à Quarta Emenda para que a prova assim obtida fosse afastada. A Alta Corte dos Estados Unidos concluiu que se cartas ou quaisquer documentos privados podem ser indevidamente apreendidos, mantidos e usados como provas contra um cidadão acusado, a proteção da quarta emenda ficaria sem valor.[20]

Depois, no caso SILVERTHONE LUMBER CO. v US (1920), a Suprema Corte dos EUA aplicou a Exclusionary Rule não somente às provas obtidas ilicitamente, mas também às que fossem derivadas daquelas, consolidando-se assim a Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa (Fruits of the Poisonous Tree). Expressão de origem bíblica[21], usada em juízo pela primeira vez no caso NARDONE v US (1939).[22]

Além do sistema americano, o ordenamento jurídico alemão foi também um dos primeiros a aplicar a tese de não aproveitamento processual das provas obtidas ilicitamente, mais conhecida no cenário acadêmico alemão como teoria das Beweisverbote. O autor Ernst Beling foi pioneiro na discussão teórica sobre o assunto, publicando em 1903 a obra Die beweisverbote als grenzen der wahrheitsforschung im strafprozess[23].

Apesar das semelhanças entre a teoria das Beweisverbote e a Exclusionary Rule americana, os dois institutos não se confundem. Pois, enquanto esta buscava limitar às atuações abusivas das autoridades policiais, a tese germânica, surgida essencialmente em meio acadêmico, foi desenvolvida com base na própria ideia de proteção dos direitos fundamentais.

Consoante explica Batlouni, enquanto as exclusionary rules buscam a prevenção pela repressão, a Beweisverbote estaria calcada numa análise do caso concreto sob a perspectiva da situação de direito e garantia individual que se procurou proteger, ponderando-se os valores em tela. Tal critério resulta no que os alemães denominam Princípio da Proporcionalidade Constitucional (Verhältnismaßigkeitsgrundsatz).[24]

Nos dizeres de Manuel da Costa Andrade, mais importante “... é saber se a intromissão na esfera íntima do acusado se pode ou não considerar justificada, em nome do relevo da infracção que lhe é imputada”.[25]

O assunto também gera polêmica em outros sistemas, como é o caso do espanhol. Em 1984, o Tribunal Constitucional Espanhol manifestou-se no sentido de que se fossem produzidas ou obtidas com ofensa aos direitos ou liberdades fundamentais, as provas seriam destituídas de eficácia[26]. Contudo, em 1988, o mesmo tribunal, com arrimo na teoria alemã da proporcionalidade (que será mais bem explicada neste trabalho em momento oportuno[27]), consolidou o entendimento de que a inadmissão das provas ilícitas estaria relacionada com a restrição ao direito de defesa do réu, isto é, sem prejuízo para a defesa, não haveria motivo para o não aproveitamento processual daquele material probatório.[28]

Na Itália, cuidou-se de legislar infraconstitucionalmente sobre o assunto, apresentando-se hipóteses taxativas de inadmissão de provas ilícitas.

Já o legislador português, no qual o brasileiro acabou se espelhando, cuidou de constitucionalizar expressamente o assunto[29]. Contudo, ao contrário do que ocorre em nossa Lei Maior, que contém disposição genérica sobre o assunto, a Constituição lusitana possui previsões específicas acerca das hipóteses em que as provas ilícitas serão nulas.

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1.3 A Presença do Instituto no Direito? Brasileiro

No Brasil, antes de 1988, apesar da inexistência de disposição constitucional sobre o assunto, a questão da inadmissibilidade de provas ilícitas já dava ensejo a inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

Conforme destaca Walter Nunes, havia basicamente três correntes: a primeira defendia a independência entre o direito processual e o material, de modo que a ilicitude na captação da prova, embora censurável até mesmo criminalmente, não contaminaria a sua validade processual; a segunda, em atenção à unidade do ordenamento jurídico, sustentava o oposto; a terceira corrente encontrava-se em posição eclética, admitindo a aplicação do princípio da proporcionalidade.[30]

Buscava-se analisar o tema à luz da legislação infraconstitucional, mais especificamente por meio do sistema de nulidades constante do Código de Processo Penal (art. 563 e seguintes), bem como através de aplicação analógica do art. 332 do Código de Processo Civil, que assim dispõe: “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.” Destarte, interpretando-se por exclusão, os meios ilegais e os moralmente ilegítimos não seriam hábeis para provar a verdade dos fatos.

Igualmente, o Código de Processo Penal Militar, em seu art. 295[31], já refletia a mesma ideia. Razão pela qual também se fazia interpretação analógica desse dispositivo.

Nota-se que, com o passar dos anos, a doutrina passou a adotar um posicionamento cada vez mais garantista, no sentido de efetivar uma maior proteção aos direitos e garantias individuais. Nos dizeres de Ada Pellegrini: “a finalidade do processo não é aplicar a pena ao réu de qualquer modo, a verdade deve ser obtida de acordo com uma forma moral inatacável. O método através do qual se indaga deve constituir, por si só, um valor, restringindo o campo em que se exerce a atuação do juiz e das partes”.[32]

A jurisprudência pátria também seguiu o mesmo caminho, conforme se pode verificar na ementa abaixo colacionada de julgado do Supremo Tribunal Federal, ainda em data anterior à Constituição de 1988:

- HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PROVA ILICITA. CONSTITUCIONAL. GARANTIAS DOS PARAGRAFOS 9 E 15 DO ART. 153 DA LEI MAIOR. (INOBSERVANCIA). TRANCAMENTO DO INQUERITO POLICIAL.

1 - OS MEIOS DE PROVA ILICITOS NÃO PODEM SERVIR DE SUSTENTAÇÃO AO INQUERITO OU A AÇÃO PENAL.

2 - AS PROVAS PRODUZIDAS NO INQUERITO ORA EM EXAME - GRAVAÇÕES CLANDESTINAS - ALÉM DE AFRONTAREM O PRINCÍPIO DA INVIOLABILIDADE DO SIGILO DE COMUNICAÇÕES (PARAGRAFO 9., E ART. 153, CF), CERCEIAM A DEFESA E INIBEM O CONTRADITORIO, EM OFENSA, IGUALMENTE, A GARANTIA DO PARAGRAFO 15, ART. 153, DA LEI MAGNA.

3 - INEXISTÊNCIA, NOS AUTOS, DE OUTROS ELEMENTOS QUE, POR SI, JUSTIFIQUEM A CONTINUIDADE DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.

4 - TRANCAMENTO DO INQUERITO, O QUAL PODERA SER RENOVADO, FUNDANDO-SE EM NOVOS INDICIOS, NA LINHA DE PREVISÃO DO ESTATUTO PROCESSUAL PENAL.

5 - VOTO VENCIDO QUE CONCEDIA A ORDEM EM MENOR EXTENSAO. RHC PROVIDO PARA DETERMINAR O TRANCAMENTO DO INQUERITO POLICIAL.[33]

Assim, visando pacificar a questão, o constituinte de 1988 tratou de inserir a vedação das provas ilícitas na Carta Magna, sem fazer qualquer tipo de ressalva. Essa constitucionalização se explica, em grande parte, pelo fato de a Carta de 1988 ter surgido logo após um sangrento regime autoritário, o que motivou os constituintes a inserir na Lei Maior o máximo possível de direitos fundamentais.

Apesar disso, os debates acerca do tema persistiram, surgindo até mesmo novos questionamentos. O primeiro deles é com relação ao conceito de provas obtidas por meios ilícitos para os fins do dispositivo constitucional. Seriam todas aquelas que para sua produção ou obtenção violassem qualquer tipo de norma jurídica, ou apenas as que violassem direitos fundamentais?

Para Walter Nunes, é indubitável que o tratamento constitucional dado ao tema é em sentido estrito, de modo que a nulidade das provas se aplicaria apenas àquelas obtidas com violação aos direitos fundamentais.[34]

É esse também o posicionamento de Grinover, Fernandes e Gomes Filho. Para eles, o art. 5º, LVI, da CF se refere às provas colhidas “...infringindo-se normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, frequentemente para a proteção das liberdades públicas e dos direitos da personalidade e daquela sua manifestação que é o direito à intimidade”.[35]

Nesse ponto, percebe-se que, felizmente, a maior parte da doutrina já abre mão de uma interpretação totalmente taxativa do dispositivo, o qual, quando se refere a “provas obtidas por meios ilícitos”, não especifica em momento algum o tipo de ilicitude e, portanto, se interpretado ao pé da letra, acabaria servindo quase sempre como um instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.

Essa flexibilização dá margem a uma discussão ainda maior acerca do alcance do art. 5º, LVI, da CF. Isto é, até que ponto é possível flexibilizá-lo.

Debruçando-se sobre a questão em 1993, o Supremo Tribunal Federal acolheu material probatório consubstanciado em gravação clandestina. Segundo entendeu o Ministro Carlos Velloso, relator do caso:

A alegação no sentido de que a prova é ilícita não tem procedência, dado que não ocorreu, no caso, violação do sigilo das comunicações – C.F., art. 5º, XII – nem seria possível a afirmativa de que fora ela obtida por meios ilícitos (C.F., art. 5º, LVI). Não há, ao que penso, ilicitude em alguém gravar uma conversa que mantém com outrem, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa. A alegação talvez pudesse encontrar ressonância no campo ético, não no âmbito do direito.[36]

Naquele julgado, ao considerar a gravação particular de uma conversa como sendo um meio probatório lícito, o STF, inegavelmente, reduziu o alcance do art. 5º, LVI. Dando ensejo, inclusive, a ideia de que a função, ou pelo menos a principal função, daquele dispositivo seria coibir atuações arbitrárias por parte das autoridades, especialmente policiais. Ideia que vai ao encontro daquela que originou a Exclusionary Rule norte-americana.

Ainda sobre os limites do dispositivo, verificam-se também, como será mais bem detalhado adiante[37], sérias controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais no que tange à aplicabilidade no Direito Brasileiro da famigerada Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa.

Como bem ressaltou Avolio, a questão suscita debates não apenas no Brasil, mas também no Direito Comparado, tendo em vista o seu caráter delicado e, no caso pátrio, o espaço aberto deixado pela CF de 1988, o que deixou o tema, portanto, a mercê de complementação jurisprudencial.[38]

Essa celeuma das provas ilícitas por derivação pôde ser nitidamente observada na célebre Ação Penal 307-DF, da qual foi réu o ex-presidente da República Fernando Afonso Collor de Mello.

Naquela ocasião, avaliando provas colhidas por derivação de material eletrônico ilegalmente obtido pela Polícia Federal, o Ministro Moreira Alves rechaçou a aplicabilidade da teoria norte-americana, argumentando que, pela maneira através da qual a Constituição Federal de 1988 tratou o tema, não deixou qualquer margem para a alegação da existência do instituto em nosso ordenamento[39].

Já o Ministro Celso de Mello sustentou que a redação do art. 5º, LVI, oferece um caráter irrestrito à vedação das provas ilícitas, de modo que não haveria como afastar, inclusive, a aplicação da regra dos Frutos da Árvore Venenosa[40].

Em 2008, a Lei n° 11.690 alterou dispositivos do Código de Processo Penal, o qual passou a proibir, em seu art. 157, §1º,[41] também as provas ilícitas por derivação.

Como se percebe, as discussões acerca da inadmissibilidade das provas ilícitas sempre foram numerosas e permanecem sendo mesmo após a Constituição Federal de 1988. A partir do próximo tópico, analisaremos os diversos problemas que a marcante presença do instituto em nosso ordenamento acaba provocando na prática.

2. A Problemática Gerada pelo Instituto: Contradições e Choques com Outros Valores Constitucionais

2.1. O Princípio da Verdade Real no Processo Penal

No mundo contemporâneo, após as revoluções liberais que marcaram a sua consolidação, a liberdade passou a ser enxergada como sendo talvez o direito mais importante a ser juridicamente protegido, à exceção apenas do direito à vida.

Assim, passa a existir uma maior cautela na aplicação do Direito Penal, sendo exigido um alto grau de convicção para que se condene um indivíduo criminalmente.

Por essa razão, o Processo Penal deve buscar reconstruir os fatos com o máximo de fidelidade possível. Sobre isso, Frederico Marques leciona que a defesa da sociedade e o interesse da repressão demandam a utilização de todos os meios necessários para que sejam conhecidas, de maneira precisa, todas as circunstâncias que envolvem o delito a ser investigado. Necessidade que se torna ainda maior quando se observa a individualização da pena, levando em consideração até mesmo aspectos da personalidade do agente.[42]

É nesse contexto que está presente o Princípio da Verdade Real (também conhecido como Princípio da Verdade Material, ou ainda, da Verdade Substancial), segundo o qual deve o Processo (em especial, o Processo Penal) desvendar, com a maior aproximação possível, a verdade dos fatos em discussão, pautando-se naquilo que o Juiz tem em mãos no momento da lide, isto é, baseando-se no acervo probatório. Nas palavras de Avolio, o Princípio da Verdade Real “...diz respeito ao poder dever inquisitivo do juiz penal, tendo como objeto a demonstração da existência do crime e da autoria. A prova penal, assim, é uma reconstrução histórica, devendo o juiz pesquisar além da convergência das partes sobre os fatos, a fim de conhecer a realidade e a verdade dos fatos”.[43]

Pela sua própria definição, fica claro que o Princípio da Verdade Real encontra-se em frontal oposição ao Princípio da Inadmissibilidade das Provas Ilícitas. Se o Magistrado, após analisar determinado material probatório trazido aos autos, consistente em interceptação telefônica realizada sem autorização, por exemplo, deixa de condenar o indivíduo acusado apenas pelo fato de ter sido aquele material obtido ilicitamente, ainda que o mesmo demonstre com clareza a veracidade das alegações acusatórias, estará o julgador abdicando da verdade material em prol da intimidade do acusado. Apesar de parecer insensato, é isso o que se depreenderá de uma interpretação exageradamente literal e desprovida de razoabilidade do art. 5º, LVI, da Constituição Federal.

Ora, verificando a questão sob essa ótica do conflito com a verdade real, parece-nos que o aproveitamento das provas ilícitas estaria mais próximo de uma efetiva concretização daquilo que o ordenamento jurídico visa aplicar. Isso porque, ao inadmitir uma prova em razão de ter sido ela obtida ilicitamente, o julgador está negando o fato que se encontra diante de seus olhos e aplicando o direito sobre uma inegável ficção processual, ficção esta que surge no momento em que o aplicador simplesmente age como se aquele material probatório não existisse.

É por esta razão que outros ordenamentos jurídicos aplicam com cautela ou sequer adotam o princípio da vedação das provas ilícitas. No sistema inglês, por exemplo, a utilização das provas ilícitas é a regra, pois, na Inglaterra, se concluiu ser mais inseguro para a administração da Justiça o não aproveitamento dessas provas. Para eles, sem prejuízo da eventual punição que couber aos responsáveis pela ilicitude, deve o Processo Criminal averiguar como os fatos ocorreram e não como as provas foram obtidas[44].

Até mesmo na Espanha, cuja Carta Magna foi, assim como a do Brasil[45], promulgada logo após a extinção de um regime de governo totalitário, a vedação das provas ilícitas é relativizada diante da busca pela verdade material. Conforme destaca Barbosa Moreira:

... não escandaliza o mundo jurídico espanhol ouvir dizer ao Tribunal Constitucional que os próprios direitos fundamentais não devem erguer obstáculo intransponível à busca da verdade material que não se pode obter de outro modo. Nem por isso alguém se animará a afirmar que a sociedade espanhola não seja democrática. (...) a melhor forma de coibir um excesso e de impedir que se repita não consiste em santificar o excesso oposto.[46]

Um interessante ponto, que acaba servindo para ilustrar a contradição que se busca demonstrar neste tópico, é a questão das provas ilícitas utilizadas em prol do acusado. Nesses casos, o entendimento doutrinário e jurisprudencial é praticamente unânime no sentido de que deve o julgador admitir tais provas.

Segundo Walter Nunes, a análise dos incisos LV e LVI do at. 5º da CF leva à conclusão de que tais direitos representam limitações ao poder do estado, de modo que a sua aplicação se dará na atuação processual do Ministério Público. Assim, seria vedada a utilização de provas ilícitas para a condenação do réu, mas nunca quando estas estivessem a seu favor. Deparando-se com situação na qual uma prova ilícita atesta a inocência do réu, o juiz deverá, então, absolver com base em insuficiência de provas (art. 386, VII, do CPP).[47]

De fato, não há como desconsiderar as provas ilícitas quando apresentadas em favor do acusado, até mesmo porque este, ao produzir as provas ilícitas, estaria abarcado por excludente de antijuridicidade[48], uma vez que estaria agindo na proteção de sua liberdade, ameaçada por eventual condenação criminal.

Como se percebe, a discussão é bem maior no que tange às provas ilícitas utilizadas em desfavor do réu. Porém, se for tomada uma posição favorável às provas ilícitas em favor do acusado e, ao mesmo tempo, contrária às apresentadas contra ele, podem surgir, na prática, situações claramente esdrúxulas.

Para exemplificar, imaginemos a seguinte situação: Tício, respondendo processo pela prática do homicídio de Mévio, apresenta material ilicitamente obtido que comprova ter sido Caio quem praticou o delito. Ora, se o material em questão for considerado idôneo para a absolvição de Tício, não há como desconsiderá-lo para a condenação de Caio. Como poderia o Poder Judiciário, em um dado momento, abrir os olhos para uma determinada prova e, em outra ocasião, fechar os olhos para a mesma prova? Teríamos assim um inegável cinismo estatal.

Guiado pelo bom senso, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar questão similar à exemplificada, admitiu material alegadamente ilícito para condenar um indivíduo. No caso em questão, um dos sujeitos acusados, para provar sua inocência, apresentou aos autos uma gravação de diálogo realizado entre ele e outro acusado, através da qual ficou comprovado que este último cobrava propina daquele. Com base nessa prova, o STF não apenas absolveu o acusado que a apresentou, mas também condenou o outro[49].

Conforme bem observou Walter Nunes:

O Supremo Tribunal Federal tem posição mais avançada do que aquela que propõe a admissibilidade da prova ilícita produzida em prol do acusado, pois, consoante o seu posicionamento, não apenas pode ser utilizada para a defesa do agente na fase do inquérito ou do processo judicial, como é idônea, também, para, eventualmente, incriminar outra pessoa.[50]

Ainda sobre a crítica exposta no presente tópico, é importante salientar que esta não se estende ao caso da confissão obtida mediante tortura. Este tipo de prova é inaceitável, especialmente pela ofensa gravíssima que ele representa aos direitos humanos.

É como bem resume Paulo Lúcio Nogueira: “...uma coisa é torturar alguém para obter a confissão, o que atenta contra todos os princípios, e outra é grampear um telefone, fotografar alguém, violando sua intimidade, ou usar um gravador disfarçadamente para obter declarações”.[51]

Além disso, não há qualquer credibilidade numa confissão de um sujeito que está sendo torturado. Qualquer indivíduo, por mais resistente que seja, certamente diria qualquer coisa que lhe fosse exigida mediante tortura, mesmo que não fosse verdade, simplesmente pela esperança de fazer cessar a agressão. Assim não há que se falar em choque com o Princípio da Busca pela Verdade Real.

2.2. A Impossibilidade de Comprovação de Certos Fatos sem Violação à Intimidade

O conflito entre o princípio da vedação das provas ilícitas e o princípio da busca da verdade material adquire contornos ainda mais amplos quando se leva em consideração certos fatos cuja comprovação é dificílima, para não dizer impossível, de ser feita.

Em muitos casos, a violação, por exemplo, do direito à intimidade pode acabar sendo a única forma através da qual seja possível comprovar a ocorrência de um determinado delito. Isso porque a grande maioria dos crimes, até mesmo pela sua própria natureza, tende a ser praticado de maneira sigilosa. Essa é mais uma razão para que se aplique com cautela a inadmissão das provas ilícitas, sob pena de tornar impraticável, em inúmeros casos, a condenação de indivíduos visivelmente culpados. Consoante observa Mendonça Lima:

O juiz não pode abstrair-se de conhecer o fato e julgar conforme possa influir, isoladamente ou no conjunto de provas, porque sua obtenção foi considerada imoral, por transgredir certos postulados ou certas normas que amparam indivíduos e, portanto, somente por isso deixa de ser eficaz para ser o litígio solvido. Se a parte dispuser apenas daquela prova, sem possibilidade de outra, sobre fato que, pela natureza, não enseja, normalmente, outro meio (v.g., corrupção, adultério, chantagem, sempre realizados com recato e sigilo, com a preocupação de ocultar o mais possível), a repulsa pelo juiz poderá determinar uma sentença injusta e imoral, negando razão ao que usou de meio de prova obtido imoralmente e dando razão ao que praticou ato imoral e ilegal, mas cuja prova foi considerada ineficaz por ter sido conseguida fora da moral... É a negação do ideal de justiça.[52]

Outro exemplo interessante, além dos citados por Mendonça Lima, de um delito grave, relativamente comum e de dificílima comprovação sem que haja violação à intimidade é o caso de maus-tratos contra idosos ou crianças, muitas vezes cometidos no ambiente doméstico.

Episódio desse tipo foi objeto de apreciação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Caso no qual os familiares da vítima, pessoa de idade avançada, por estarem desconfiados da conduta das cuidadoras, instalaram, sem o conhecimento delas, câmeras na residência, através das quais as rés foram flagradas agredindo o idoso. Analisando aquele processo, o Relator Desembargador Breno Guimarães assim se posicionou:

...a gravação ambiental encartada aos autos, por envolver interesses e direitos das pessoas que providenciaram a gravação dos sons e imagens, os quais agiram em legítima defesa da vida, integridade física e saúde do pai delas, uma pessoa idosa, com 92 (noventa e dois) anos de idade e acometida da doença de Alzheimer, deve ser admitida como prova lícita, não podendo ser oposta, nesse caso, a inviolabilidade da intimidade das acusadas.[53]

Como visto, não restou alternativa ao Desembargador, senão relativizar o direito à intimidade e, consequentemente, diminuir o alcance do art. 5º, LVI, da Carta Magna. Do contrário, isto é, absolvendo-se as rés mesmo diante das filmagens que não deixavam dúvidas sobre o ocorrido, configurar-se-ia uma flagrante injustiça.

O mesmo também ocorre comumente em casos de extorsão mediante sequestro, onde, por diversas vezes, a gravação de conversas telefônicas entre o extorquido e o sequestrador acaba sendo o único meio pelo qual será possível iniciar uma investigação para identificar os agentes envolvidos.

Deparando-se com caso assim, o Supremo Tribunal Federal também se viu obrigado a reduzir a abrangência do art. 5º, LVI, da CF, e, adotando a teoria da proporcionalidade, admitiu provas que consistiam em gravações telefônicas de diálogos entre a vítima do delito e os criminosos. Vejamos o que argumentou o Ministro Nelson Jobim:

É lícita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com sequestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista.[54]

É interessante perceber, observando-se esse julgado do STF, o do TJSP, bem como o mencionado no tema 1.3 deste trabalho, acerca de gravações clandestinas, que o entendimento dos tribunais é cada vez mais no sentido de se admitir este tipo de prova. Isto ocorre porque se percebe que em muitos casos a gravação clandestina é o único meio que os particulares encontram de levar ao conhecimento das autoridades a ocorrência de delitos e a identidade dos autores.

Assim, observa-se mais uma vez a proximidade com a teoria norte-americana da Exclusionary Rule, que surgiu visando coibir as ações das autoridades e não de particulares. Porém, não há razão para que um ato ilícito praticado por um delegado de polícia, por exemplo, legitime a absolvição de um indivíduo comprovadamente culpado. Pois tal absolvição, na verdade, não atinge a autoridade infratora, mas sim toda a sociedade. Até porque, para punir a conduta deste delegado, já existem as normas de direito material.

Para reforçar este argumento, trazemos à colação importante ensinamento de Camargo Aranha: “...em nome de um exagerado amor ao dogmatismo, grandes crimes e poderosos criminosos podem ficar impunes. Não devemos esquecer que o crime organizado é, quanto à sua execução, quase perfeito, porque planejado cientificamente, o que exige investigações mais apuradas”.[55]

A vedação das provas ilícitas, em especial nesses inúmeros casos onde não há meios lícitos capazes de comprovar o delito, pode acabar premiando os criminosos mais organizados, isto é, aqueles que praticam seus ilícitos com maior astúcia, de maneira a dificultar ao máximo a persecução criminal. Assim, haveria uma verdadeira deturpação da garantia constitucional do art. 5º, LVI, da CF, na medida em que esta se transformaria em ferramenta de salvaguarda de práticas ilícitas, o que é intolerável.

2.3. O Sistema do Livre Convencimento Motivado do Juiz

A legislação processual brasileira é adepta do sistema do Livre Convencimento Motivado do Juiz, também conhecido como sistema da Persuasão Racional, o qual se encontra prescrito nos dois principais diplomas processuais de nosso ordenamento jurídico: no Código de Processo Penal, em seu art. 155[56], e no Código de Processo Civil, em seu art. 131[57].

Depreende-se destas disposições a liberdade que tem o juiz na valoração das provas, de modo que cada tipo de prova não possui um valor legalmente predeterminado, podendo o magistrado apreciá-las e formar sua convicção por meio de seu próprio critério de raciocínio. Por outro lado, fica ele obrigado a fundamentar sua decisão de forma clara, demonstrando a maneira pela qual, a partir da análise das provas disponíveis nos autos, chegou àquela conclusão.

Para melhor entender o princípio da Persuasão Racional, é válido compará-lo com outros sistemas de valoração probatória, conforme ressalta Greco Filho: “...na avaliação das provas, é possível imaginar três sistemas que podem orientar a conclusão do juiz: o sistema da livre apreciação ou da convicção íntima, o sistema da prova legal e o sistema da persuasão racional”.[58]

No sistema da convicção íntima, o magistrado tem plena liberdade na apreciação das provas, podendo, até mesmo, desconsiderá-las, e formar sua conclusão de maneira totalmente discricionária.

Já no sistema da prova legal, ou tarifado, a Lei visa excluir ao máximo do julgador a sua discricionariedade, estabelecendo como cada fato deverá ser provado e qual valor terá cada prova 

O sistema do Livre Convencimento Motivado do Juiz seria uma espécie de intermediário entre os dois supracitados. Consoante conclui Tourinho Filho: “...livre convencimento não quer dizer puro capricho de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não está dispensado de motivar sua sentença”.[59]

Conforme já explicitado acima, nosso ordenamento adotou este sistema. Porém, ao mesmo tempo, abraçou também o princípio da vedação das provas ilícitas, o qual, por sua vez, é uma exceção ao sistema do Livre Convencimento Motivado, já que acaba restringindo para o juiz a sua liberdade de apreciação das provas.

Ressalte-se que o Sistema da Persuasão Racional é atualmente o mais adotado no cenário do direito comparado. Isso se dá por uma questão de lógica, já que, por mais que se busque estabelecer a forma como deverá o magistrado raciocinar, é impossível impedi-lo de formar o seu próprio convencimento. Observou-se ser incongruente obrigar o julgador que, ainda que intimamente, fez suas conclusões num certo sentido a julgar no sentido oposto. É como bem analisaram Álvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero:

Atualmente, no sistema processual pátrio, como também nos principais sistemas alienígenos, o método de valoração do livre convencimento motivado é adotado em razão da necessidade de ser dada certa liberdade ao magistrado (...) para, segundo a sua convicção, escolher as provas que melhor tendem a resolver o caso concreto.[60]

Assim, a inadmissibilidade das provas ilícitas, ainda que não tenha sido esta a intenção dos constituintes de 1988, acaba funcionando como um retrocesso lógico, na medida em que estabelece um modelo de avaliação das provas, assim como fazia o sistema da prova legal. O qual, por sua vez, distancia o processo da realidade do caso concreto, conforme alerta Humberto Theodoro Jr.: “...a finalidade do processo é a justa composição do litígio e esta só pode ser alcançada quando se baseie na verdade real ou material, e não na presumida por prévios padrões de avaliação dos elementos probatórios”.[61]

Ademais, ainda que se insista em reduzir a liberdade na valoração probatória do juiz, é, contudo, impossível controlar o seu pensamento. Razão pela qual, ainda que o juiz exclua dos autos uma prova ilícita, não se pode evitar que ela interfira no seu convencimento e, consequentemente, na prolação da sentença. Nessa fase, mesmo que o julgador fundamente sua decisão de outra forma, nada garante que não tenha sido, na verdade, a prova ilícita determinante na formação de sua convicção.

Yussef Said Cahali, analisando a questão envolvendo provas ilícitas na seara processual civil, percebeu bem este problema:

...não é dado ao juiz da separação judicial autorizar ou determinar a produção da prova através da interceptação das conversas telefônicas de qualquer dos cônjuges com terceiros; mas, obtida aquela prova pela parte interessada, qualquer que tenha sido o meio, e apresentada aquela nos autos, cumpre ao juiz considerá-la na formação de seu convencimento de maneira expressa, sabido que, pelas regras de experiência, tais gravações, ainda que eventualmente desentranhadas dos autos, inevitavelmente deixam resíduo na convicção do julgador.[62]

Além disso, se tal questão já é tão problemática no que concerne aos juízes togados, o que dizer, então, das causas julgadas pelo Tribunal do Júri? Ainda que se considere que o julgador profissional seja dotado de capacidade técnica que o permita deixá-lo imune às influências de material probatório ilegal, não há como dizer o mesmo com relação ao júri popular. Num caso como esse, supondo que uma determinada prova seja apresentada ao júri e, posteriormente, constatando-se a sua ilicitude, seja ela desentranhada dos autos, não há absolutamente nenhuma garantia de que os jurados não irão considerá-la ao fazer seu julgamento.

Diante de todo o exposto no presente tópico, verifica-se a existência de mais uma razão para que se tenha bastante prudência na inadmissão de material probatório em virtude de eventual obtenção ilícita. Isto é, para evitar que o julgador, mesmo absolutamente convicto de algo, seja obrigado a proferir sua decisão de forma distinta.

2.4. A Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa e suas Incongruências

Consoante destacado no item 1.2. deste trabalho, a Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa (“fruits of the poisonous tree”) tem suas origens na Jurisprudência norte-americana, durante a primeira metade do século XX.

Como o próprio nome já sugere, essa Teoria prega a inadmissibilidade não apenas das provas obtidas ilicitamente, mas também de seus frutos, isto é, de eventuais provas que, apesar de terem sido conseguidas de maneira lícita, somente o foram em conseqüência de uma ilícita. Seriam, então, provas ilícitas por derivação.

Nos dizeres de Ada Pellegrini, a expressão prova ilícita por derivação “...diz respeito àquelas provas em si mesmas lícitas, mas a que se chegou por intermédio da informação obtida por prova ilicitamente colhida.”[63]

A título de exemplo, seria o caso de um material probatório obtido através de uma busca e apreensão realizada conforme os ditames legais, mas que somente foi levada a efeito em decorrência de informações obtidas mediante uma escuta clandestina.

O tema, tendo em vista seus aspectos claramente polêmicos, sempre foi alvo de acirrados debates no âmbito doutrinário. De um lado, há ilustres autores que desde 1988 já sustentavam ter o nosso ordenamento jurídico recepcionado a teoria norte-americana, é o caso, por exemplo, de Grinover[64] e Avolio. Analisemos a explicação deste último:

 ... se nos afigura primordial, como pareceu a Trocker, perquirir a ratio das normas violadas pelo comportamento contrário à Constituição. Dessa forma, efetuando o mesmo raciocínio utilizado pelo autor peninsular, se a prova ilícita tomada por referência comprometer a proteção de valores fundamentais, como a vida, a integridade física, a privacidade ou a liberdade, essa ilicitude há de contaminar a prova dele referida, tornando-a ilícita por derivação, e, portanto, igualmente inadmissível no processo.[65]

Por outro lado, deve-se considerar que, até a reforma processual penal de 2008, não havia qualquer previsão legal ou constitucional sobre o assunto, uma vez que o art. 5º, LVI, da CF se refere exclusivamente às “provas obtidas por meios ilícitos” e nada mais, razão pela qual não seria cabível a aplicação da Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa. Era essa a posição de Tornaghi[66].

No cenário jurisprudencial, a controvérsia é também intensa, o que se constatou no supramencionado caso do julgamento do ex-Presidente Fernando Collor[67].

Além disso, no julgamento do HC 69.912-0-RS, mais uma vez ficou demonstrada a grande controvérsia que a questão gera em nosso ordenamento. Enquanto os Ministros Sepúlveda Pertence, Francisco Rezek, Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Celso de Mello posicionaram-se a favor da aplicação da teoria, entendendo que somente através dela é possível dar eficácia à garantia do art. 5º, LVI, da CF; os ministros Carlos Velloso, Paulo Brossard, Sydney Sanches, Néri da Silveira, Moreira Alves e Octavio Gallotti, por sua vez, concluíram não ser cabível ignorar todas as provas disponíveis, mesmo as lícitas, apenas por serem derivadas de uma ilícita. Segundo eles, seria preferível admitir tais provas a manter a impunidade de grandes organizações criminosas. Por seis votos contra cinco, o Habeas corpus foi indeferido. Vejamos a ementa:

CONSTITUCIONAL. PENAL. PROVA ILICITA: "DEGRAVAÇÃO" DE ESCUTAS TELEFONICAS. C.F., ART. 5., XII. LEI N. 4.117, DE 1962, ART. 57, II, "E", "HABEAS CORPUS": EXAME DA PROVA.

I. - O SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFONICAS PODERA SER QUEBRADO, POR ORDEM JUDICIAL, NAS HIPÓTESES E NA FORMA QUE A LEI ESTABELECER PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL OU INSTRUÇÃO PROCESSUAL PENAL (C.F., ART. 5., XII). INEXISTÊNCIA DA LEI QUE TORNARA VIAVEL A QUEBRA DO SIGILO, DADO QUE O INCISO XII DO ART. 5. NÃO RECEPCIONOU O ART. 57, II, "E", DA LEI 4.117, DE 1962, A DIZER QUE NÃO CONSTITUI VIOLAÇÃO DE TELECOMUNICAÇÃO O CONHECIMENTO DADO AO JUIZ COMPETENTE, MEDIANTE REQUISIÇÃO OU INTIMAÇÃO DESTE. E QUE A CONSTITUIÇÃO, NO INCISO XII DO ART. 5., SUBORDINA A RESSALVA A UMA ORDEM JUDICIAL, NAS HIPÓTESES E NA FORMA ESTABELECIDA EM LEI.

II. - NO CASO, A SENTENÇA OU O ACÓRDÃO IMPUGNADO NÃO SE BASEIA APENAS NA "DEGRAVAÇÃO" DAS ESCUTAS TELEFONICAS, NÃO SENDO POSSIVEL, EM SEDE DE "HABEAS CORPUS", DESCER AO EXAME DA PROVA.

III. - H.C. INDEFERIDO.[68]

No Recurso Ordinário em Habeas corpus n° 7.363-RJ, o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também mitigou os efeitos da Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa. É o que se pode verificar pela leitura da ementa:

RHC - QUADRILHA OU BANDO - INEPCIA DA DENUNCIA – PROVA ILICITA - PRISÃO PREVENTIVA - FUGA.

1. PARA A CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DE QUADRILHA, BASTA EXIGIR O PROPOSITO DE ASSOCIAÇÃO, DO AGENTE AO GRUPO CRIADO COM A FINALIDADE DA PRATICA DE CRIMES, SENDO DESNECESSARIO ATRIBUIR-LHE AÇÕES CONCRETAS. LOGO, NÃO E INEPTA DENUNCIA NESSES TERMOS.

2. CARTA ANONIMA, SEQUER REFERIDA NA DENUNCIA E QUE, QUANDO MUITO, PROPICIOU INVESTIGAÇÕES POR PARTE DO ORGANISMO POLICIAL, NÃO SE PODE REPUTAR DE ILICITA. E CERTO QUE, ISOLADAMENTE, NÃO TERA QUALQUER VALOR, MAS TAMBEM NÃO SE PODE TE-LA COMO PREJUDICIAL A TODAS AS OUTRAS VALIDAMENTE OBTIDAS. O PRINCIPIO DO "FRUTO DA ARVORE ENVENENADA" FOI DEVIDAMENTE ABRANDADO NA SUPREMA CORTE (HC NUM. 74.599-7, MIN. ILMAR GALVÃO).

3. PRISÃO PREVENTIVA QUE SE JUSTIFICA EM RELAÇÃO A UMA DAS PACIENTES, QUE EMPREENDEU FUGA DO DISTRITO DA CULPA, NÃO OCORRENDO O MESMO COM RELAÇÃO A OUTRA.

4. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO E, NESSA EXTENSÃO, CONCEDIDA A ORDEM.[69]

Diante do que já foi exposto nos tópicos anteriores, acerca da problemática envolvendo a inadmissibilidade das provas ilícitas e a consequente necessidade de cautela na sua interpretação, a aplicação da Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa nos parece ser um irrazoável exagero. Se a vedação das provas ilícitas, por si só, já constitui uma abdicação da verdade e, consequentemente, da efetiva aplicação do Direito, em prol de garantias individuais que, em alguns casos, poderiam ser relativizadas, a desconsideração das provas ilícitas por derivação pode simplesmente impossibilitar por completo a condenação de indivíduos culpados, em virtude de eventual ilicitude cometida, por exemplo, no início das investigações.

No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Sydney Sanches, ao apreciar a supracitada Ação Penal 307-DF, percebeu este problema e, para explicá-lo, utilizou-se de exemplo bastante pertinente. O Ministro imaginou hipótese na qual um homem entra em contato com a polícia para relatar o suposto desaparecimento de sua esposa. Por sua vez, os agentes da polícia se utilizam de interceptação telefônica sem autorização judicial, e descobrem, por meio desse artifício ilícito, que a mulher, na verdade, havia sido assassinada pelo marido. Após descobrirem este fato, os policiais aprofundam-se nas investigações, promovendo a realização de exames periciais, tais como necropsia e exame de balística. Se for aplicada a Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa em tal caso, todas essas provas periciais obtidas posteriormente serão contaminadas pela ilicitude daquela interceptação ilícita.[70]

Como se percebe, o homicida do exemplo se tornará praticamente impunível graças a uma pequena operação ilícita levada a efeito por alguns agentes policiais. Situação que seria visivelmente absurda.

Além de tudo, é preciso ressaltar que a teoria em questão sequer possui status constitucional, já que o art. 5º, LVI, da Lei Maior não se refere às provas ilícitas por derivação, conforme lembrou bem o Ministro Moreira Alves, na mesma Ação Penal[71].

3. Possíveis Soluções

Nos itens 3.1 e 3.2 deste trabalho, analisaremos os meios jurídicos através dos quais é possível relativizar os efeitos do instituto da inadmissibilidade das provas ilícitas, buscando solucionar, assim, a problemática exposta nos tópicos acima.

3.1. As Exceções no Sistema Norte-americano

A despeito de ter sido um dos principais precursores da ideia da vedação das provas ilícitas[72], o sistema jurídico norte-americano destacou-se igualmente pela elaboração de exceções ao instituto.

A primeira que podemos citar é a chamada exceção da fonte independente (independent source), a qual se verifica quando a prova existe por si só, isto é, mesmo sendo naquele caso ilícito o meio empregado na sua obtenção, ela poderia também ser obtida de maneira lícita.

Bastante similar à da fonte independente, a tese do descobrimento inevitável (inevitable discovery) se aplica às situações nas quais uma informação obtida de forma ilícita seria inevitavelmente descoberta posteriormente, sem qualquer ilicitude.

É como destaca Walter Nunes, citando Maximiliano Hairabendián: Conquanto parecida com a tese da independent source, daquela não se distingue devido à circunstância de não prescindir de produção probatória independente, senão de que o descobrimento inevitável seja hipoteticamente fatível.[73]

Outra importante exceção trazida pelo direito norte-americano é concernente à boa-fé (good faith) das autoridades investigadoras.

Para melhor explicar esta exceção, Hairabendián utiliza-se de exemplo bastante pertinente, ele imagina caso no qual agentes policiais, enquanto realizam ronda de rotina, escutam gritos provenientes de uma casa. Acreditando tratar-se de pedidos de socorro, os policiais ingressam na residência de imediato. Ao entrar no local, verificam que na verdade apenas ocorria uma festa. Porém, antes de se retirarem, constatam a prática de um crime na casa[74].

Há também exceção consubstanciada na doutrina dos vícios sanados (purged taint). Essa tese se aplica quando há um considerável intervalo entre o ato ilícito do qual se originou a prova e a efetiva obtenção desta. Nesses casos, haveria uma espécie de abrandamento da ilicitude.

Danilo Knijnik, discutindo essa tese, cita o que ocorreu no caso Wong Sun. Naquele episódio, policiais, com base em suspeitas da prática de tráfico ilícito de entorpecentes, ingressaram, sem mandado, na residência de “A”. Este, por sua vez, confessa o delito e ao mesmo tempo acusa “B” de coautoria no mesmo. A polícia, então, mais uma vez sem mandado, entra na residência de “B”. O qual também confessa o delito e ainda incrimina “C”. Ao final, os três acabaram sendo ilegalmente presos pelos agentes, com base em tais confissões ilicitamente obtidas. Após alguns dias, “C”, espontaneamente, dirige-se à autoridade policial, e confessa sua participação nos crimes. Por seu turno, “A” e “B”, quando em Juízo, invocam em seu favor a ilicitude de suas próprias confissões, já que obtidas mediante o ingresso ilícito dos agentes policiais em suas residências. O pedido é acolhido e os dois são absolvidos. “C”, então, invocando a teoria dos frutos da árvore venenosa, argumenta que sua confissão espontânea fora também ilícita, já que jamais ocorreria se as ilegalidades praticadas contra “A” e “B” não tivesse ocorrido. Nesse ponto, a Corte entendeu que a manifestação voluntária de “C”, praticada com respeito aos seus direitos fundamentais, atenuou a conexão entre as confissões ilícitas e a sua prisão, de modo a dissipar o veneno.[75]

Podemos ainda citar a exceção referente à prova benéfica em prol do acusado, já pacificamente aplicada no direito brasileiro[76], e a relativa à prova obtida com ilícito praticado por pessoas que não fazem parte do órgão policial, o que mais uma vez denota a já mencionada essência da Exclusionary Rule norte-americana[77], que visa conter as ilegalidades cometidas pelas autoridades.

Parece-nos perfeitamente possível a aplicação de todas estas exceções citadas neste tópico em nosso ordenamento. Em especial no caso da teoria dos frutos da árvore venenosa. Ora, se tal teoria é importada do direito norte-americano, é cabível que sejam também importadas as suas exceções.

A Lei n° 11.690/2008, apesar de ter inserido no Código de Processo Penal a proibição às provas ilícitas por derivação, felizmente fez a ressalva da fonte independente[78].

Já em 1996, o STF, ainda que de maneira implícita, aplicou as teorias da fonte independente e da descoberta inevitável no seguinte julgado:

EMENTA: HABEAS CORPUS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ALEGAÇÃO EXTEMPORÂNEA. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. PROVA ILÍCITA. ESCUTA TELEFÔNICA. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. NÃO ACOLHIMENTO.

A alegação de inépcia da denúncia, por não descrever as condutas individualizadas dos co-partícipes e nem demonstrar, sequer implicitamente, a existência de associação permanente entre os pacientes para o cometimento do tráfico de substância entorpecente, é extemporânea, pois a oportunidade de argüi-la, se antes não fora suscitada, exauriu-se com a prolação da decisão condenatória transitada em julgado. Jurisprudência dominante no STF. Desacolhimento do proposto pela Procuradoria-Geral da República, no sentido da concessão de ofício do habeas corpus para anular-se a decisão condenatória. É que a interceptação telefônica - prova tida por ilícita até a edição da Lei nº 9.296, de 24.07.96, que contamina as demais provas que dela se originam -, não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial. Habeas corpus indeferido.[79] (grifo nosso).

Em outros casos, como frequentemente ocorre nas hipóteses de boa-fé (good faith), é possível também o afastamento da aplicação do princípio insculpido no art. 5º, LVI, da CF pela simples razão de que sequer estará havendo ilícito na produção da prova.

Por fim, pode-se ainda utilizar dessas exceções mediante aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual será mais bem explicado no tópico seguinte.

3.2. O Princípio da Proporcionalidade

Com origem na doutrina e jurisprudência da Alemanha e com forte repercussão nos ordenamentos de tradição romano-germânica, o Princípio da Proporcionalidade nasce da ideia de que nenhum direito fundamental possui caráter absoluto, caso contrário, seria impossível a coexistência pacífica entre eles.

Na Alemanha, onde a vedação das provas ilícitas encontrava-se consubstanciada no sistema das Beweisverbote[80], a teoria da proporcionalidade surgiu visando possibilitar a ponderação de interesses em cada caso concreto, verificando os valores em conflito e qual deve preponderar.

Na lição de Costa Andrade:

A proibição da valoração da prova adquirida de forma ilícita, sob a batuta do princípio da proporcionalidade, deve ser o resultado de apreciação judicial que tem de levar em consideração (1) o interesse concreto da persecução criminal, (2) a gravidade da lesão, (3) o bem jurídico tutelado pela norma constitucional violada e (4) a carência de tutela do interesse lesado.[81]

Ressalte-se que o princípio em questão não se restringe à seara processual, mas permeia todo o ordenamento jurídico, isso porque o choque entre valores jurídicos é fenômeno comum a todas as áreas do direito. No Direito Administrativo, por exemplo, a presença da teoria da proporcionalidade é marcante. Hely Lopes Meirelles, ilustre administrativista, assim avalia o princípio: “(o princípio da proporcionalidade) ...pode ser chamado de princípio da proibição de excesso, que, em última análise, objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da administração pública, com lesão aos direitos fundamentais”.[82]

Quanto à localização constitucional do princípio, observa-se que sobre ele não há previsão explícita. Na verdade, decorre da própria lógica de um Estado Democrático de Direito, onde nenhum preceito constitucional pode ser considerado absoluto, tendo em vista o reconhecimento de outros valores que também podem estar em jogo.

Ainda assim, consoante mencionado na Introdução deste trabalho, entende-se que ele seria uma vertente do devido processo legal, numa acepção substantiva[83].

Sobre isso, André Borges Netto explica:

A Constituição indica a existência de competência a ser exercida pelo Judiciário, no sentido de poder afastar a aplicabilidade das Leis com conteúdo arbitrário e desarrazoado, como forma de limitar a conduta do legislador. Lei que não atinge um fim legítimo é inválida, como tal devendo ser declarada, por força da garantia constitucional em exame. Na atualidade, o texto da Lei ou ato governamental será preservado pela Suprema Corte, até que nenhum posicionamento razoavelmente concebível possa estabelecer uma relação entre a regulamentação contestada e um fim legítimo do governo. Fato é que o entendimento atual do devido processo legal substantivo permite o controle de atos normativos disciplinadores de liberdades individuais até mesmo "não econômicas". Este princípio, em sua concepção substantiva, é fonte inesgotável de criatividade hermenêutica, transformando-se numa mistura entre os princípios da "legalidade" e "razoabilidade" para o controle dos atos editados pelo Executivo e Legislativo.[84]

Independentemente de sua localização, não há dúvida da importância que tem este princípio na apreciação de qualquer material probatório. Camargo Aranha ressalta essa importância:

Em determinadas situações a sociedade, representada pelo Estado, é posta diante de dois interesses relevantes antagônicos e que a ela cabe tutelar: a defesa de um princípio constitucional e a necessidade de perseguir e punir o criminoso. A solução deve consultar o interesse que preponderar e que, como tal, deve ser preservado.

(...)

A única prova obtida contra um sanguinário sequestrador foi a gravação de uma conversa telefônica interceptada: absolve-se, preservando-se um princípio constitucional, ou condena-se, preservando a sociedade?[85]

Avolio, dissertando sobre gravações clandestinas, também destaca à necessidade de aplicação da teoria da proporcionalidade:

...inexistindo na conversa objeto de gravação clandestina o direito à reserva (obrigação de guardar segredo) a outra parte pode utilizá-la validamente em juízo como prova de seu interesse. Ainda que haja ilicitude, esta pode ceder em face de outro interesse jurídico proporcionalmente mais relevante que a intimidade, como, por exemplo, a vida ou a saúde, ou o direito à ampla defesa.[86]

Jurisprudencialmente, a teoria também vem sendo recepcionada, de modo a relativizar a incidência do art. 5º, LVI, da CF. É o que se pode observar nitidamente em decisão do STJ a seguir ementada:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". ESCUTA TELEFONICA COM ORDEM JUDICIAL. REU CONDENADO POR FORMAÇÃO DE QUADRILHA ARMADA, QUE SE ACHA CUMPRINDO PENA EM PENITENCIARIA, NÃO TEM COMO INVOCAR DIREITOS FUNDAMENTAIS PROPRIOS DO HOMEM LIVRE PARA TRANCAR AÇÃO PENAL (CORRUPÇÃO ATIVA) OU DESTRUIR GRAVAÇÃO FEITA PELA POLICIA. O INCISO LVI DO ART. 5. DA CONSTITUIÇÃO, QUE FALA QUE 'SÃO INADMISSIVEIS AS PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILICITO', NÃO TEM CONOTAÇÃO ABSOLUTA. HA SEMPRE UM SUBSTRATO ETICO A ORIENTAR O EXEGETA NA BUSCA DE VALORES MAIORES NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE. A PROPRIA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, QUE E DIRIGENTE E PROGRAMATICA, OFERECE AO JUIZ, ATRAVES DA 'ATUALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL' (VERFASSUNGSAKTUALISIERUNG), BASE PARA O ENTENDIMENTO DE QUE A CLAUSULA CONSTITUCIONAL INVOCADA E RELATIVA. A JURISPRUDENCIA NORTE-AMERICANA, MENCIONADA EM PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, NÃO E TRANQUILA. SEMPRE E INVOCAVEL O PRINCIPIO DA 'RAZOABILIDADE' (REASONABLENESS). O 'PRINCIPIO DA EXCLUSÃO DAS PROVAS ILICITAMENTE OBTIDAS' (EXCLUSIONARY RULE) TAMBEM LA PEDE TEMPERAMENTOS. ORDEM DENEGADA.[87]

Por outro lado, no STF a discussão é mais acirrada. Na supracitada Ação Penal 307-DF[88], o Ministro Celso de Mello, defendendo a aplicação da Teoria dos Frutos da Árvore Venenosa, argumentou que não havia qualquer cabimento para a aplicação de princípio oriundo da cultura jurídica alemã, isto é, o princípio da proporcionalidade, quando a previsão do Art. 5º, LVI, da CF não deixa margens para qualquer restrição de seu alcance.[89]

Em outro caso, porém, o STF, sopesando os valores em conflito, adotou o princípio da proporcionalidade para admitir provas obtidas mediante violação do sigilo de correspondência:

HABEAS CORPUS - ESTRUTURA FORMAL DA SENTENÇA E DO ACÓRDÃO - OBSERVANCIA - ALEGAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO CRIMINOSA DE CARTA MISSIVA REMETIDA POR SENTENCIADO - UTILIZAÇÃO DE COPIAS XEROGRAFICAS NÃO AUTENTICADAS - PRETENDIDA ANALISE DA PROVA - PEDIDO INDEFERIDO.

A estrutura formal da sentença deriva da fiel observancia das regras inscritas no art. 381 do Código de Processo Penal. O ato sentencial que contem a exposição sucinta da acusação e da defesa e que indica os motivos em que se funda a decisão satisfaz, plenamente, as exigencias impostas pela lei.

A eficacia probante das copias xerograficas resulta, em princípio, de sua formal autenticação por agente público competente (CPP, art. 232, paragrafo único). Pecas reprograficas não autenticadas, desde que possivel a aferição de sua legitimidade por outro meio idoneo, podem ser validamente utilizadas em juízo penal.

A administração penitenciaria, com fundamento em razoes de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, paragrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder a interceptação da correspondencia remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de praticas ilicitas.

O reexame da prova produzida no processo penal condenatório não tem lugar na ação sumarissima de habeas corpus.[90] (grifo nosso).

Também favorável à aplicação do princípio da proporcionalidade, Fernando Capez sintetiza bem o problema:

Entendemos não ser razoável a postura inflexível de se desprezar, sempre, toda e qualquer prova ilícita. Em alguns casos, o interesse que se quer defender é muito mais relevante do que a intimidade que se deseja preservar. Assim, surgindo conflito entre princípios fundamentais da Constituição, torna-se necessária a comparação entre eles para verificar qual deva prevalecer. Dependendo da razoabilidade do caso concreto, ditada pelo senso comum, o Juiz poderá admitir uma prova ilícita ou sua derivação, para evitar um mal maior, como, por exemplo, a condenação injusta ou a impunidade de perigosos marginais. Os interesses que se colocam em posição antagônica precisam ser cotejados, para escolha de qual deva ser sacrificado.[91]

A nosso ver, a apreciação de qualquer questão jurídica é imprescindível de proporcionalidade. Do contrário, ou seja, interpretando-se de maneira absoluta uma norma jurídica, surgirão inevitavelmente decisões esdrúxulas, mitigando totalmente um determinado direito em prol de outro.

Conclusão

A questão das provas, sem dúvida alguma, possui importância cardeal no Direito Processual. Sendo, provavelmente, ao menos no cenário prático, o elemento mais importante do processo judicial.

Conforme sustenta Capez, as provas constituem o alicerce sobre o qual se sustenta toda a lógica do processo. Sem elas, qualquer discussão doutrinária na seara processual ficaria sem objeto.[92]

Debruçando-se sobre o tema, Paolo Tonini ressalta que o juiz, num primeiro momento, analisa a reconstrução do fato histórico que lhe é trazido, reconstrução esta que é realizada por meio das provas. Posteriormente, interpretando a norma penal, subsume a ela o fato, e daí toma sua decisão.[93]

O instituto da inadmissibilidade processual das provas obtidas por meios ilícitos, por sua vez, com origens na jurisprudência norte-americana do final do século XIX, surgiu como uma forma de resguardar com maior segurança os direitos civis e políticos que vinham sendo reconhecidos aos cidadãos, especialmente como consequência dos grandiosos movimentos revolucionários do século anterior, sobretudo a Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Revolução Francesa (1789).[94]

Naquele momento, os tribunais norte-americanos desconsideravam as provas ilícitas com base na chamada teoria da Exclusionary Rule, segundo a qual a Constituição proibia implicitamente que atos praticados com violação a seus preceitos produzissem qualquer tipo de efeito.[95]

No Brasil, a questão já suscitava polêmicas antes mesmo da positivação do instituto. Atualmente, apesar de se encontrar consagrada no art. 5º, LVI, da Constituição Federal, a inadmissibilidade das provas ilícitas ainda enseja inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais.[96]

Conforme lecionam Grinover, Scarance Fernandes e Gomes Filho, o referido dispositivo constitucional equipara as provas ilícitas em sentido estrito (materialmente ilícitas) às ilegítimas (processualmente ilícitas), atribuindo àquelas, além da sanção material, a sanção processual de inadmissibilidade.[97]

Assim, por se concretizar numa limitação do direito à prova e, consequentemente, uma renúncia à busca pela verdade real, não se pode negar, do ponto de vista prático, que a aplicação do preceito em alguns momentos pode ocasionar consequências bastante danosas para a sociedade, na medida em que, ainda que acidentalmente, pode acabar gerando obstáculos à concretização da justiça buscada pela lei penal.

Ademais, na medida em que se contrapõe ao sistema do livre convencimento do juiz, o instituto pode ocasionar preocupantes contradições, isso porque, caso as provas que formaram o convencimento do magistrado tenham sido obtidas ilegalmente, ainda que ele esteja materialmente convencido da culpa do réu, estará obrigado a julgar cinicamente no sentido contrário.

E os problemas se agravam quando se quer aplicar a teoria norte-americana dos frutos da árvore venenosa, pela qual seriam inadmissíveis não apenas as provas obtidas ilicitamente, mas também aquelas que, apesar de lícito o método de sua obtenção, foram alcançadas graças a uma informação acessada por meio de prova ilícita.

Conforme se verificou no presente trabalho[98], a aplicação da teoria citada pode acabar servindo como salvaguarda para a prática de delitos, especialmente em favor das organizações criminosas mais poderosas, que em geral se utilizam de ardilosos artifícios para dificultar as investigações das autoridades públicas.

O que se pretendeu neste trabalho não foi propor a ignorância completa ao princípio da vedação às provas ilícitas, mas sim observar que é prudente relativizar a sua aplicação, tendo em vista os diversos valores que estarão em jogo em cada caso.

Por essa razão, ganha relevo a teoria alemã da proporcionalidade, cuja presença no direito brasileiro, apesar de levantar discussões, é inerente à sua própria estrutura de Estado Democrático de Direito, onde nenhuma norma ou princípio pode ser aplicado irrestritamente.

Aos poucos, observa-se que a jurisprudência brasileira, naturalmente mais garantista no início da vigência da Carta de 1988, quando ainda era agudo o trauma gerado pelo regime autoritário vivenciado anteriormente, passa agora a relativizar o princípio da vedação das provas ilícitas, antes tido quase como sagrado.

Enxergamos tal mudança de maneira positiva, tendo em vista que a garantia processual em questão, que era imprescindível no momento histórico em que foi constitucionalizada, em diversos momentos serve mais à manutenção da impunidade do que à preservação das liberdades individuais, já cada vez mais consolidadas graças à evolução paulatina de nossa democracia.

A nosso ver, a apreciação de qualquer questão jurídica é imprescindível de proporcionalidade. Do contrário, ou seja, interpretando-se de maneira absoluta uma norma jurídica, surgirão inevitavelmente decisões esdrúxulas, mitigando totalmente um determinado direito em prol de outro.

     Por fim, trazemos valiosa lição de Marco Antônio de Barros, também reforçando a defesa ao princípio da proporcionalidade na análise das provas ilícitas:

Destarte, a prudência recomendada ao juiz no âmbito do direito material se repete no direito processual. A ele compete, no enfoque do caso concreto examinar o cabimento da aplicação da teoria da proporcionalidade ou razoabilidade para temperar o rigor da inadmissibilidade da prova ilícita, mesmo porque, pelo sistema constitucional vigente, não há falar-se em garantia absoluta, extremada e isenta de restrição decorrente do respeito que se deva a outras garantias de igual ou superior relevância.[99]

São inúmeras as possibilidades de surgirem casos onde a vedação da prova ilícita põe em risco mais valores do que a sua admissão. Não parece razoável, por exemplo, deixar impune um indivíduo praticante de crimes altamente danosos à sociedade em favor de nada mais que a intimidade dele.

Sobre o autor
André Felipe Torquato Leão

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, André Felipe Torquato. A vedação das provas ilícitas e a busca da verdade no processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4147, 8 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29976. Acesso em: 22 dez. 2024.

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