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Stare decisis e teoria do precedente judicial no sistema anglo-saxônico

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Agenda 23/09/2014 às 15:22

7. Conclusão

Stare decisis é uma fórmula reduzida do adágio latino stare decisis et non quieta movere, que, literalmente, significa “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido”. Na Inglaterra, é utilizada como sinônimo da doctrine of precedent (ou rule of precedent), definitivamente reconhecida em 1898, no caso London Trainways Company v. London County Council, em que a House of Lords reiterou a obrigatoriedade de nortear-se por suas próprias decisões, em efeito autovinculante (vinculação horizontal), além de declarar a eficácia externa de seus julgados a todas as cortes de grau inferior (vinculação vertical).

Na teoria do common law, nem todo provimento judicial é reputado como precedente, entendendo-se como tal apenas a decisão sobre matéria de direito, indispensável à resolução de um caso concreto, que, por enfrentar todos os principais argumentos relativos a determinada questão, torna-se apta a servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. Como elementos fundamentais do precedente, a par da descrição precisa dos fatos que ensejaram a demanda, costuma a doutrina reconhecer a ratio decidendi (essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto) e o obiter dictum (argumentos expostos apenas de passagem na motivação do julgado, que consubstanciam juízos acessórios e secundários, sem influência relevante e substancial para a decisão). Na sistemática do stare decisis, o que vincula o tribunal e as instâncias inferiores nos julgamentos futuros é, tão somente, a proposição jurídica reputada essencial à solução da demanda-paradigma, a saber, a ratio decidendi do julgado, pelo que sua identificação e diferenciação dos argumentos considerados como mero obiter dicta constitui tarefa das mais relevantes na técnica jurídica dos países de common law.

O exame das técnicas de interpretação, aplicação e superação de precedentes nos países de common law revela o quanto a teoria se empenhou para formular um sistema que conferisse às cortes judiciárias maleabilidade no trato das demandas particulares sem que fosse negada a regra do precedente vinculativo. Há um nítido esforço em justificar teoricamente qualquer mudança de entendimento adotada pelos tribunais, os quais, com o fito de satisfazerem a justiça no caso concreto, necessitam, por vezes, de afastar a aplicação do precedente, sem, contudo, negar-lhe vigência – havendo, até mesmo, hipóteses em que a solução mais razoável para o caso parece ser a arguição de uma distinção nitidamente inconsistente com os valores que se encontram na base do paradigma.

A formação histórica do sistema da common law, que foi construído a partir de provimentos majoritariamente jurisprudenciais, explica o evidente receio da sociedade e da comunidade jurídica em outorgar ampla liberdade de atuação aos tribunais, os quais, a bem da previsibilidade e da igualdade jurídicas, devem se pautar pelas normas editadas por seus precursores. Grande parte dos mais importantes temas dos direitos norte-americano e inglês encontra-se disciplinada por acórdãos dos tribunais superiores, consolidados em obras de doutrina que compilam e interpretam os precedentes. Em um sistema de tal sorte, deixar de aplicar um pré-julgado, além de afastar a segurança jurídica, importa em inequívoca assunção de poder político por parte dos tribunais, o que não é desejado pela sociedade e tampouco pelos próprios magistrados, cientes dos limites de sua atividade jurisdicional. Como resultado, elaboram-se alternativas que buscam viabilizar o afastamento do precedente – com fundamento, por vezes, em distinção factual ou axiológica meramente artificial – sem, contudo, assumir formalmente a revogação do paradigma – estratégia que enfraquece o poder normativo do julgado e prepara a sociedade para a futura exclusão formal do precedente do sistema de direito, amenizando o impacto político da decisão revocatória da corte.

Não obstante a artificialidade no uso de determinadas técnicas, verifica-se, nos sistemas de precedentes vinculantes, a preocupação legítima com a tutela do princípio da isonomia, a coerência da ordem jurídica e a manutenção da confiança da sociedade no Poder Judiciário, na forma da previsibilidade dos julgamentos e da estabilidade das regras de direito. A utilização dos instrumentos centrais do distinguishing e do overruling, e, por questões de conveniência política, de suas variantes não derrogatórias do paradigma, revelam a viabilidade da sistemática do precedente vinculativo, a qual, longe de prejudicar o corpo social por um eventual engessamento um Direito, outorga à comunidade uma jurisdição eficiente, corente e potencialmente justa, porquanto isonômica, íntegra na perspectiva sistêmica, e aberta à superação dos valores sociais.

A tabela seguinte resume as principais técnicas de aplicação do precedente nos países de common law, conceituando em linhas gerais os institutos e descrevendo os efeitos de cada um deles quanto à manutenção ou exclusão formal da ratio decidendi na ordem jurídica.

Tabela 1 – Técnicas de aplicação e superação do precedente no common law

Distinguishing

Overruling

Sinaling

Transformation

Overriding

Inconsistent distinctions

Não revoga formalmente o precedente.

Revoga o precedente, no todo ou em parte.

Não revoga formal ou materialmente o precedente.

Não revoga formalmente o precedente.

Não revoga formalmente o precedente.

Não revoga formalmente o precedente.

Afasta a aplicação do precedente com base em distinções factuais entre o paradigma e o caso sob julgamento.

Admite o equívoco das decisões anteriores fundadas no precedente revogado. Exclui o precedente do sistema.

Sinaliza para uma futura revogação do paradigma.

Atribui nova configuração a fatos considerados apenas de passagem no julgado anterior. Não admite o equívoco das decisões anteriores.

Afasta a aplicação de parte do precedente com base em novas condicionantes sociais. Não admite o equívoco das decisões anteriores.

Afasta a aplicação de parte do precedente independente-mente de novas condicionantes sociais (elabora distinção inconsistente).

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Fonte: Elaborada pelo autor


NOTAS

[1] A eficácia “vertical” do efeito vinculante diz respeito à obrigatoriedade de cumprimento do precedente somente pelas instâncias inferiores, sem vinculação da corte que emanou o julgado.

[2] Considera-se “horizontal” a eficácia atribuída ao precedente que vincula tanto a jurisdição de grau inferior quanto o tribunal de origem da decisão obrigatória. Cf. BUSTAMANTE, 2012, p. 75-84.

[3] Jus commune ou é a expressão utilizada para designar o “direito comum” do continente europeu a partir do ano 1100, quando, com a redescoberta do Corpus Iuris Civilis pelo Ocidente, o direito romano, associado a elementos do direito canônico, passou a ser a base da ciência jurídica em toda a Europa. A Inglaterra, por uma opção histórica, manteve-se formalmente à parte desse processo, sendo regulada pelo seu próprio “common law” de base jurisprudencial, o qual, como já visto, sofreu, contudo, pela via da equity, grande influência dos princípios do jus commune, sem contudo transmudar-se em um sistema de direito de origem doutrinal e legislativa. Cf. DAVID, 1972, p. 65.

[4] Em palavras do autor: “O que esse excurso histórico sobre os séculos XVI a XVIII até agora revela é que não apenas na Inglaterra, mas em toda a Europa, os tribunais desempenharam um papel importante na unificação do Direito, o que era um requisito imprescindível para o fortalecimento do Estado Moderno. A fidelidade ao precedente, enquanto exigência natural dos princípios da igualdade (entendida como justiça formal) e da segurança jurídica, não era, mesmo, de causar surpresa. Não há sistema jurídico que possa desconsiderar por completo os precedentes judiciais na aplicação do Direito, qualquer que seja o momento histórico, sob pena de o direito positivo entrar em contradição com a própria ideia de sistema, a qual pressupõe a aplicação do Direito como algo racional e coerente. Qualquer sistema jurídico que se desenvolva até um patamar mínimo de racionalidade necessita de certo grau de aderência ao precedente judicial, sob pena de se frustrarem as próprias pressuposições formais implícitas na ideia de Estado de Direito.” (BUSTAMANTE, 2012, p. 82)

[5] Em uma tradução livre: “um caso sentenciado ou decisão da corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido, ou para uma questão similar de direito.” Cf. SOUZA, 2013, p. 41.

[6] A distinção entre ratio decidendi e obiter dictum será detalhada adiante.

[7] O constitucionalismo moderno, identificado como o movimento do início da Idade Contemporânea caracterizado pela imposição de constituições escritas como instrumento de limitação do poder político, elaboradas por um modo de produção mais dificultoso que o da legislação infraconstitucional, que situa a Constituição no ápice do sistema normativo (rigidez constitucional), tem como marcos formais a promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, e a Constituição francesa, de 1791, cujo preâmbulo foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ano da Revolução. Desenvolveu-se durante o Iluminismo, em contraposição ao absolutismo reinante, e manifestou-se, inicialmente, pelo acentuado liberalismo (direitos de primeira geração, marcados pela valorização do indivíduo e pelo absenteísmo estatal). A insuficiência do Estado liberal para a pacificação das sociedades pós-Revolução Industrial resultou no predomínio da doutrina do Welfare State, (Estado-providência ou “Estado do bem-estar social”), caracterizado por direitos ditos de segunda geração, que implicam maior participação estatal na economia e no trato dos problemas sociais, de que são exemplos a Constituição do México, de 1917, e a de Weimar, de 1919, que influenciaram a brasileira de 1934 (LENZA, 2008, p. 6). A partir do constitucionalismo moderno, surgiu a noção hodierna de controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo estatal.

[8] Registre-se que a aceitação da teoria declaratória da decisão judicial não é incompatível com a adoção da regra do precedente vinculante. De fato, por muitos anos, os juízes do common law entenderam que romper com os precedentes significaria legislar e, por isso, permaneceram adstritos aos julgados anteriores, demonstrando historicamente que a concepção ortodoxa do precedente não é inconciliável à ideia do stare decisis (MARINONI, 2013, p. 29).  

[9] Sobre os conceitos de jurisdicização, teoria do ciclo vital do Direito e processualística sistêmica, vide ROCHA, 2008, p. 31-32.

[10] Nos Estados Unidos da América, overruling e overriding são institutos distintos. O overriding estadunidense será examinado adiante.

[11] Na Inglaterra, statute é um dos nomes conferidos ao ato normativo emanado do Poder Legislativo.

[12] Shpard’s Citations é um serviço de armazenamento de decisões, leis ou quaisquer outros atos com autoridade normativa de elevada reputação nos Estados Unidos, “a ponto de ser considerada uma fonte segura de informação acerca dos precedentes que foram superados ou reafirmados.” Cf. NOGUEIRA, 2013, p. 198.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Caroline Sampaio de. A relevância dos precedentes judiciais como mecanismo de efetividade processual. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 101, vol. 922, ago. 2012.

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvares de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1993.

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad. Hermínio A. Carvalho. 2. ed. Lisboa: Meridiano, 1972.

DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 4. ed. Salvador: JusPodium, 2009.

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LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.

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MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MIRANDA, Tássia Baia. Stare decisis e a aplicação do precedente no sistema norte-americano. 2006. 54 ff. Monografia (Conclusão do curso) – Universidade Federal do Pará, Centro de Ciências Jurídicas, Belém.

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RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2002.

ROCHA, Elias Dubard de Moura. Crise cognitiva do processo judicial. Recife: Nossa livraria, 2008.

SANTOS, Záira Bomfante dos. A concepção de texto e discurso para semiótica social e o desdobramento de uma leitura multimodal. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistagatilho/files/2011/10/Santos.pdf> Acesso em: 12 abr. 2013.

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. 1. ed. (2006). 2. reimpr. Curitiba: Juruá, 2013.

TUCCI, José Rogério Cruz e (coord.). Direito processual civil europeu contemporâneo. São Paulo: Lex, 2010. 

Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Stare decisis e teoria do precedente judicial no sistema anglo-saxônico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4101, 23 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30051. Acesso em: 22 dez. 2024.

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