RESUMO:O presente artigo busca provocar reflexão sobre a ética no serviço público. Partindo do raciocínio do senso comum, percorre os conceitos gestados nos agrupamentos sociais, o relativismo e subjetivismo das moralidades, como germe na composição de um padrão ético, originário na manifestação do ser humano e de suas experiências em comunitárias
Palavras-chave: ética, serviço público, padrão.
1. INTRODUÇÃO.
Diversos autores têm dedicado especial enfoque à ética, como sustentáculo do comportamento humano enquanto ser social. Seja como ciência do comportamento moral (VAZQUEZ, 1980), seja como conhecimento que capta os fundamentos das tomadas de decisão (SROUR, 1988), indubitavelmente ética e moral são conceitos indissociáveis, onde esta deriva daquela: a ética e a moral são como a teoria e a prática (GAARDER, 2001). A ética estabelece princípios que regem (ou ao menos, devem reger) o comportamento humano, este que nada mais é do que “ser” no “tempo”: estar presente e atuante, influenciando e sendo influenciado, estar aberto ao novo sem renunciar ao que de fato é.
Por certo que tais conceitos, aplicados ao escopo deste trabalho ---o servidor e o serviço público--- navegam e embatem contra as vagas do senso comum e do relativismo. Aquele, sempre toma o estereótipo do servidor (e, via reflexa, do serviço) inerte e corrompido. Este, parte de conceitos sofísticos onde o agente crê que “o certo é o que acho certo, e o errado é o que não acho certo”. Tudo deve ser conjugado para uma nova —ou, até melhor, uma renovada— forma de ver o servidor e o serviço: critérios objetivos devem nortear as tomadas de decisões. Não pode haver subjetivismo nem relativismo: o certo e o errado, o legal e o ilegal.
2. PRÉ-CONCEITOS
2.1. O senso comum
Temos observado —e isso nos motivou ao presente trabalho— visão carregada contra o serviço público. Via de regra, as opiniões circulam livremente, tachando o servidor de incompetente, de apadrinhado, de corrompido.
[...]a opinião pública corrente afirma quotidianamente: o desabono do comportamento ético no serviço público. A crítica feita pela sociedade, decerto, como todo senso comum, é imediatista, e baseada numa visão superficial da realidade, [...] (PASSOS, 2004)
É um problema seriíssimo, que afeta todos no serviço público, do menor ao maior, do mais simples ao mais graduado. Todos passam a integrar uma triste vala comum, onde todos são forçadamente nivelados por baixo, pelo que há de menos produtivo, menos diligente. Bem a propósito, presenciamos certa vez a indignação de um cidadão. Ao buscar a solução para um problema que dizia crônico em sua rua, recebeu do servidor interpelado a promessa que iria tomar providências. O cidadão, furioso e dedo em riste, disse: “Providências? Já sei que não vão fazer nada!”
Mesma autora e obra aduz que o mau conceito formado na sociedade sobre o serviço (e o servidor) público decorre da morosidade, do descaso com o público, da espera em longas filas. O serviço público é tido como “terra de ninguém”, seja por causa dos “fantasmas”, seja por causa de disseminada impunidade. Esta, invariavelmente, decorrente da burocracia, da má gestão de recursos (humanos, materiais etc.)
O que queremos com estas considerações não é fazer um discurso laudatório sobre o funcionalismo nem esconder que nele existem problemas morais sérios, mas chamar a atenção para a complexidade da situação e procurar desmistificar supostas verdades [...](PASSOS, 2004).
O senso comum influencia o servidor, também, passa ver-se como “não-demissível”, como quem pode fazer o que bem entender sem padecer reprimenda, como aquele que trata como sua a coisa pública, não por zelo, mas por apropriação. Cremos, pois, de suma importância conjugar todos os esforços no sentido de propiciar condições objetivas que possibilitem uma mudança de ótica: seja do público sobre o serviço e sobre o servidor, seja do próprio servidor sobre si e seu trabalho.
Tais considerações levaram a edição de norma federal, o Decreto Federal nº 1.001, de 6.12.1993, donde restou determinada a criação de uma Comissão Especial com o fim específico de elaborar proposta de um Código de Ética Profissional do Servidor Civil do Poder Executivo Federal. A Presidência de Tal Comissão recaiu sobre o ilustre Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Administração Federal da Presidência da República, Romildo Canhim.
Do trabalho de tal Comissão de Notáveis, sobreveio a edição do Decreto nº 1.171, em 22.6.1994, que trouxe ao mundo jurídico o Código de Ética do Servidor Público Federal. Estabelece precioso balizamento para o serviço público, e todos aqueles que o personificam. Da exposição de motivos, de lavra do Presidente da Comissão Especial, podemos destacar:
Com efeito, os atos de desrespeito ao ser humano às vezes chegam a requintes de perversidade, havendo casos em que o próprio servidor público assume a postura de inimigo ou de adversário frente ao usuário, não lhe prestando sequer uma informação de que necessita, dando-lhe as costas como resposta.
Isto, infelizmente, é verdade. Esta é a maneira como são, de regra, operados muitos dos serviços públicos no Brasil, num retrato, sem paralelo nos Países industrializados, da opressão social, da humilhação, da disfunção social, do dano moral.
E as pessoas - de tanto sofrerem danos morais, de tanto contemplarem a esperteza alheia, de tanto serem maltratadas no aguardo da solução de seus problemas, uma doença, um processo à espera do atendimento de um direito seu pela Administração Pública, às vezes aguardando apenas um carimbo ou uma rubrica de um servidor público, o que, muitas vezes, somente acontece depois da morte - por tudo isso, vão perdendo sua fé nas instituições; as pessoas, mesmo aquelas mais cultas, quase sempre não têm consciência de seus direitos e até supõem serem normais os maus tratos recebidos da parte de certos setores do serviço, pensando que os servidores lotados ali estejam no exercício regular de um direito de não serem incomodados pelos problemas que supõem alheios, o que, de resto, conduz a um verdadeiro estado que poderíamos denominar de alienação social ou de inconsciência coletiva.
2.2. O relativismo.
Os servidores públicos, em qualquer seja o orbe (federal, estadual, municipal, autárquico etc.), tem garantido em diploma legal um estatuto e um plano de carreira. Nota-se, em esmagadora maioria, que os servidores não os conhecem. Os princípios que regem a Administração Pública, insertos na Carta Constitucional, apontam cenário que chama atenção. Absolutamente, não temos a pretensão de aduzir longas definições acadêmicas acerca da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, eis que não é nosso objetivo.
Há, novamente, no ar uma condição de relativismo. As pessoas têm extremadamente se considerado medida primeira-e-última das coisas, ou seja, as coisas (e as pessoas) são-como-penso-ser. Nada mais acontece se não “tornado legítimo” pelo subjetivismo do agente: é a materialização do “faço-porque-julgo-certo”, ainda que objetivamente (à vista de qualquer forma de normativa: lei, decreto, portaria, instrução etc.).
Cada um de nós isoladamente tem o sentimento e a crença sincera de estar muito acima de tudo isso que aí está. Ninguém aceita, ninguém agüenta mais: nenhum de nós pactua com o mar de lama, o deboche e a vergonha da nossa vida pública e comunitária. O problema é que, ao mesmo tempo, o resultado final de todos nós juntos é precisamente tudo isso que aí está! A auto-imagem de cada uma das partes – a idéia que cada brasileiro gosta de nutrir de si mesmo – não bate com a realidade do todo melancólico e exasperador chamado Brasil. Aos seus próprios olhos, cada indivíduo é bom, progressista e até gostaria de poder “dar um jeito” no país. Mas enquanto clamamos pela justiça e eficiência, enquanto sonhamos, cada um em sua ilha, com um lugar no Primeiro Mundo, vamos tropeçando coletivamente, como sonâmbulos embriagados, rumo ao Haiti. Do jeito que a coisa vai, em breve a sociedade brasileira estará reduzida a apenas duas classes fundamentais: a dos que não comem e a dos que não dormem. O todo é menor que a soma das partes. O brasileiro é sempre o outro, não eu. (FONSECA, 1993, 12 p)
Observadas conveniências muito pessoais, o agente deixa de considerar irregular determinada ação, ou omissão. Manifesta-se o que SROUR (1988, 340p) chama de “moral do oportunismo”.
[...]assume um caráter interesseiro e repousa na complacência ou na leniência ante transgressões às normas morais oficiais. Tem por base oegoísmo ético que, na ânsia de obter vantagens e saciar caprichos, despe-se de quaisquer escrúpulos. É eticamente marginal porque reduzida ao mais estreito interesse pessoal.
(...)a moral do oportunismo funciona com base em procedimentos cínicos como o jeitinho, o calote, a falta de escrúpulo, o desprezo irresponsável pelas conseqüências dos atos praticados, o vale -tudo, o engodo, a trapaça, a exaltação da malandragem (ao gosto de Macunaíma, o ‘herói sem caráter’), o fisiologismo e a bajulice. Esta moral valoriza o enriquecimento rápido e o egotismo, consagra a esperteza e acredita que o proveito pessoal move o mundo. Assim, desde que a finalidade seja alcançada, a ação se justifica, não importam os meios (lícitos ou não).
É nesse contexto que qualquer normativa fenece, face à subjetividade, àquele servidor que não quer servir, e por isso mesmo não serve; mesmo porque servir ao público é o caminho natural do servidor público. Tal pensamento, tal comportamento, põe em xeque conceitos objetivos. O que é certo ou errado, o que é lícito ou ilícito, o que é justo ou injusto, depende exclusivamente do ponto de vista daquele que se vê e se insere. Isso é suficientemente delicado, senão grave, se a pessoa considerada é um servidor público, executor do serviço público.
Ora, este necessariamente submete-se a regramentos visíveis: enquanto ao cidadão comum é dado fazer o que é permitido ou não seja proibido, ao serviço público só é permitido agir nos estritos limites fixados em lei. Assim deve o agente ver-se inserido: agir nos estritos limites fixados em lei.
Nesse ponto, necessário reportarmo-nos à previsão da Carta Constitucional, quem incorporou elementos que refletem questões morais, alçadas à condição legal. Podemos observar a dignidade humana como fundamento da República (inc.III do art.1º), a promoção do bem comum, sem preconceitos (inc.IV do art.3º), a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo (inc.II e VII do art.4º), sem deixar de garantir que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade (art.5º), dentre outros.
Assim, com tais observações, podemos afirmar sem qualquer assomo de dúvida que qualquer forma de relativismo moral é flagrantemente ilegal, e por tal deve ser repudiada e combatida.
2.3. A inversão de valores.
MIETH (2007) lança discussão curiosa, quase em tom de ameaça: por que mentir é tão bom e ainda assim tão condenável? Partindo da figura dos contadores de [sic] histórias e oradores, os quais mentem pois é mais bonito e refinado que dizer a verdade, descreve diversos “tipos” de comportamento mentiroso. Basicamente, divide entre a “mentira perversa”, aquela que de alguma forma importa em benefício para o mentiroso; e a “mentira piedosa”, aquela que de alguma forma importa em benefício para o ouvinte. Esse último caso, lembrando o dilema de contar o real quadro a um paciente moribundo que quer saber sobre suas expectativas, assevera: “Não tenho eu o direito ou até o dever de mentir por amor ao meu semelhante, por exemplo, para proteger um amigo que está sendo perseguido?”.
Em mesma linha da “justificação”, usa outro exemplo, a mentira “na hora do aperto”, aquela proferida em beneficio próprio, a separar o momento em que a pergunta não tem razão de ser, ou a resposta é necessária. Como a invocar trecho da poesia clássica do Beato José de Anchieta, “eloquar, an silean?” Falar ou calar? Ate que ponto somos culpados pela mentira dita, quando a pergunta refere-se a assunto que nos interessa apena por curiosidade? A “singeleza” da “refinada” “arte” de mentir, acaba gerando uma aura de tolerância, de compreensão, de permissão. Um mecanismo de defesa do oprimido ante o opressor, posto que contar sempre toda a verdade pode ser algo melindroso.
Há longo caminho trilhado desde (e entre) o conceito aristotélico, segundo o qual as atividades humanas aspiram a algum bem, dentre os quais a felicidade é o bem maior, e o anticlímax proposto por Nietzsche, segundo o qual é imperioso a modificação de todos os valores e a superação da moral comum do homem comum e da mediocridade das virtudes estabelecidas.
A modernidade e suas exigências cobram e provocam mudanças, e a necessária rediscussão de paradigmas e normativos. Uma dessas mudanças foi a que McLUHAN (1969) descreveu como “aldeia global”: o progresso tecnológico está reduzindo todo o planeta à mesma situação que ocorre numa aldeia, um mundo cada vez mais interligado e interdependente, com estreitas relações econômicas, políticas e sociais. Nessa aldeia, as os encontros (e desencontros) são claros e inevitáveis.
Nesses embates, percebemos que os novos conceitos, as novas “matrizes”, exsurgem em uma “experiência comunitária”. O ser humano não “é-para-si”: é manifestação, “é-para-fora-de-si”. Suas ações - aqui inclusive entendidas suas omissões - se põem em verdadeira reação encadenada e em “perpetuum mobile” de “desconstrução e reconstrução”, mudando o homem e o ambiente. O ser humano, no conceito helênico, não é algo findo, concluído, mas em movimento, em constante manifestação. Não se concebe mudança silenciosa, nem tampouco que ela não ocorra.
E nessa linha, no inicio da década de 1960, sobrevém a chamada “teoria do caos”, pelas mãos do meteorologista americano Edward LORENZ. Ao testar um programa de computador que simulava o movimento de massas de ar, inseriu valores com algumas casas decimais a menos, esperando que o resultado mudasse pouco. Mas a alteração insignificante, transformou completamente o padrão das massas de ar. Com isso, consagrou-se a teoria - demonstrada pela prática - onde fatos aparentemente simples, ligados entre si ou não, submissos a variações de ordem ou intensidade, podem resultar em consequências absolutamente desconhecidas.
Pois bem, o agir humano –e sua manifestação- funda-se em uma raiz moral de empatia, emersa e cultivada a partir da experiência comunitária de sua aldeia global. O “homo medius”, ao estabelecer ou não relação empática com um seu semelhante, dentro ou fora de sua aldeia, toma posição sobre determinado fato ou acontecimento. Assim é nas comoções populares ante calamidades (enchentes etc.)
2.4. Um novo substrato.
Não há um só agrupamento humano que exista sem regras de conduta, de comportamento. Esse comportamento, individual e em coletividade, dado no tempo e no espaço, materializa-se na moral –ou nas “moralidades”, assim entendidas os conceitos individuais, mas coletivamente exercitados. Ainda citando SROUR (1988, 270p),
Enquanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética é teórico, corresponde a uma generalidade abstrata e formal. A ética estuda as morais e as moralidades, analisa as escolhas que os agentes fazem em situações concretas. (...)
Como disciplina teórica, a ética sempre fez parte da filosofia e sempre definiu seu objeto de estudo como sendo a moral, o dever-fazer, a qualificação do bem e do mal, a melhor forma de agir coletivamente. A ética avalia então os costumes, aceita-os ou reprova-os, dia quais as ações sociais são moralmente validas e quais não são.
Poder-se-ia afirmar, sem qualquer assomo de dúvida, que toda pessoa possui moral. “Uma” moral, ou “sua” moral. Objetiva, ou subjetiva. Cada indivíduo trilha seu caminho em direção ao norte por ele escolhido, dentre tantos. Cada é responsável pela sua própria vida. Emprestaríamos aqui o conceito lavrado originariamente pelo poeta Somônides, e evoluída pelos juristas romanos, exponenciado por Domicio Ulpiano na notável Digesta: viver honestamente, não lesar o próximo, dar a cada um o que é seu. Mas, pontue-se: a construção da “moral individual” passa necessariamente pela experiência comunitária, como já asseveramos.
As experiências não são “em-si”, mas entrelaçadas, interdependentes. As impressões – experiência - acerca de um fato são diferentes para cada indivíduo. Da mesma forma podemos dizer que a palavra pensada reflete sobre quem apenas a pensou. Mas a palavra pronunciada, é como nau lançada ao mar: o que um diz, não é o que o outro ouve, e tampouco entende. A experiência é prática que orienta a razão, dando-lhe norte.
Antes do conceito elaborado de “certo-e-errado” incutido através do processo educativo-escolar, voltemos o olhar ao processo educativo imediatamente anterior: o familiar. Àquela “celula mater” está “incumbida” a tarefa de “composição” do indivíduo: não mais a composição “física” da gestação, mas externa, “ambiental”, materializando o belo texto inserto no art.227 da Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Os primeiros passos dessa composição “exógena” são dados na família, primeira-unidade da sociedade. Compõem o “caldo” que vai nutrir o novo-cidadão todas as experiências dos genitores, e de seus antecedentes. As culturas ocidentais são fortemente influenciadas pela cultura e estrutura religiosa judaico-cristã, e igualmente o que foi inculturado nos processos de colonização, predominando nessas sociedades –desde os grupos familiares- as concepções de moralidade dessas religiões. Incorpora-se o jargão religioso “seja bom com os outros, e serão bons com você”. Cada “corpo religioso”, cada conjunto “catequético”, incorpora percepção e experiência de fatos. Nesse sentido, ainda citando MIETH (2007, 29-31pp):
A experiência é a fonte de vida moral. Mas a experiência necessita de reflexão constante; uma experiência sem reflexão, sem racionalidade, não poderia descerrar e testemunhar a si mesma; ela seria, em ultima analise, muda. Se a experiência é a fonte da noção moral, então a razão é a instância do moralmente correto. Para reconhecer o moralmente correto, faz-se necessário ponderar as consequências, que podem resultar de diversas condições e fatos. A essa ponderação das consequências, tendo em vista determinadas noções de sentido, dá-se o nome de responsabilidade. Necessitamos das noções de sentido, senão não saberíamos em função de que ponderar algo; (...)
As noções compromissivas de sentido são denominadas de bens ou valores. Quando digo sim a um sentido, então ele representa para mim também um bem ou um valor. (...)
O ser humano não pode viver sem valores; ele não pode ; ele não pode viver se perguntar se seu agir está concretamente correto. Mas, ao dar respostas a essas perguntas, ele chega às normas morais. (...) A competência moral é competência simultaneamente para orientação e decisão. É por isso que ela reside, em última análise, na consciência.
Ante tantas experiências religiosos, ante tantos rótulos e confissões, observamos conceito religioso, extraído da Bíblia, do Livro do Profeta Miqueias, que bem se adequa ao caso: “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, gostar do amor, e caminhar humildemente com o teu Deus”.
Ah, dir-se-ia, que discurso duro...! Mas, nesse mesmo sentido, interessante o texto de SILVA (2000, 225p)
Imagina-se que a ética fosse uma cebola. Suponha-se que a cebola seja colocada, como forma de tempero em uma grande sopa de um restaurante universitário. Suponha-se que a maioria dos estudantes, que fazem refeição neste restaurante universitário, gostem de sopa e que experimentem a mesma. A cebola está presente na sopa sem que possa ser percebida por uma pessoa leiga ou desatenta.
Talvez se a sopa fosse denominada de “sopa de cebola” as pessoas não a aprovassem ou mesmo experimentassem, porque nem todos gostam de cebola. Em outras palavras, ao tirar quem não gosta de sopa e quem não gosta de cebola, poucas seriam as pessoas que provariam a sopa de cebola de bom grado.(...)
A proposição da comparação entre a ética e a cebola aparenta, em uma primeira análise, ser de cunho bastante evidente, pois nem todos gostam de cebola e nem todos seguem a ética.
Fosse somente cebola, ou somente sopa, seria o necessário alimento intragável a alguns. “Virtus in medio", sopa de cebola.
2.5. Por uma (feito) nova moral profissional.
Cremos, confiantemente, na subsistência da ética ante as moralidades, ante a subjetividade trazida historicamente por cada pessoa a seu ambiente de trabalho. Cremos, igualmente na prevalência do respeito mútuo (servidor-público, e servidor-servidor), na noção-e-prática-objetiva da justiça e da solidariedade (generosa e desinteressada, não corporativista e sectária), e efetividade do diálogo.
O diálogo é peça chave: cada pessoa vê o mundo que o cerca sob sua própria (e personalíssima) ótica. É vital perceber e respeitar os multifacetários pontos de vista no convívio de trabalho, que é nosso enfoque. Sem desprezar o histórico de vida (pessoal e profissional) de cada servidor, e mesmo para suprir qualquer lacuna de objetividade, cremos também na necessidade de uma normatização de procedimentos, um Código de Ética do Servidor Público Municipal, assim entendido como o necessário conjunto de princípios norteadores assumidos publicamente (legalmente, objetivamente), de modo a orientar as pessoas e moldar as atividades a que se aplica o código.
O Código não pode ser uma normativa externa, imposta, não assumida pelo servidor. Deve situar-se no exato ponto onde a lei (fator externo) encontra-se com a moralidade (fator interno). Deve ser a resposta natural, para a solução de conflitos, quer seja entre o servidor e o público, quer entre servidores, quer entre o servidor e a Administração.
Sem negligenciar os princípios que regem a Administração e o Serviço, balizados pela Carta Constitucional e aqui já mencionados, também deve estar suficientemente clara a finalidade (ou a missão) do órgão ao qual o servidor esteja vinculado, bem como o escopo do Código. Não há resposta satisfatória sem o envolvimento com este projeto, desde a sua fase embrionária. O servidor deve ver no Código um guia claro e coerente, do qual tenha participado de sua criação (ofertando seus princípios e valores pessoais; apresentando os problemas que enfrenta; sugerindo soluções), e ao qual tenha aderido.
Não podemos crer não precisar de tal normatização: isso não dístico de “terceiro-mundismo” ou subdesenvolvimento, ou de organização corrompida. Por melhores que sejam os fins, os meios para alcançá-los tem de guardar coerência, sendo igualmente bons. A dúvida, a incerteza, o subjetivismo, o senso comum, o relativismo, são um perigoso conjunto que desestabiliza qualquer organização, principalmente aquela constituída para o público, e que neste encontra sua razão de existência. Nesse sentido, assim fixa MARCONDES (2005)
[...] “Ademais, toda excelência moral é produzida e destruída pelas mesmas causas e pelos mesmo meios, (...) na prática de atos em que temos de engajar-nos dentro de nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; (...) Em uma palavra, nossas disposições morais resultam das atividades correspondentes às mesmas”.
Nesse ponto, entendemos de preciosa oportunidade as luzes lançadas pelo Governo da República, ao definir –nos parâmetros curriculares nacionais (BRASIL, 2001)- os objetivos gerais de Ética para o Ensino Fundamental, pontos que podem ser admitidos por qualquer cidadão: compreender o conceito de justiça baseado na equidade e sensibilizar-se pela necessidade de construção de uma sociedade justa; adotar atitudes de respeito pelas diferenças entre as pessoas, respeito esse necessário ao convívio numa sociedade democrática e pluralista; adotar, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças e discriminações; valorizar e empregar o diálogo como forma de esclarecer conflitos e tomar decisões coletivas.
Assim, é imprescindível estabelecer um padrão ético do serviço público, o que inegavelmente decorre de sua própria natureza. Deve pois honrar a confiança do público a quem serve. O padrão legalmente previsto para a administração pública é traçado sobre os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, e eficiência. Para além desse padrão legal, importa o “para-além”: a qualidade, o “fazer-certo-na-primeira-vez”.
O público que é servido reclama confiança. Crê nas instituições, e naqueles que a impulsionam. Crê também que esse impulso tem origem, percurso, e destino legítimos. Crê que seus anseios serão atendidos, da melhor forma possível.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O tempo passa, e as pessoas posicionam-se no cotidiano, nele impondo suas marcas. As experiências comunitárias, resultantes dessa manifestação humana, também recebem reflexos. Tais reflexos chocam-se com “pré-conceitos” estabelecidos. De um lado, o senso comum deturpado por ações contrárias aos princípios que regem a administração pública. De outro, o pernicioso relativismo, que “alça” o ser humano ao “centro do universo”, que julga tudo e todos de acordo com sua conveniência. Acresça-se a isso as “inverdades” pronunciadas, mesmo que sob “bom pretexto”, justificando ausência de posição sobre as experiências. Tudo isso forma o “caldo nutritivo” onde se manifesta o ser humano, e onde empaticamente multiplica experiências interdependentes. As moralidades subjetivas devem convergir para um determinado “padrão ético”, norteado pelo “fazer-certo-da-primeira-vez”. Esse padrão não é nem pode ser algo externo, imposto; mas algo que nasce no ser humano, a partir de sua manifestação e de suas experiências. Dessa forma, a resposta natural –assim entendida pelo agente de sua própria história- é aquela tida como “a melhor”, mais vantajosa para si próprio, e mais frutuosa para sua coletividade.
Então, inegável que a composição e o estabelecimento de normativo, como um padrão codificado de condutas, deve ser o necessário fruto das incontáveis experiências, que estabeleçam um norte para o ser humano investido no serviço público, que lhe permitam concluir sobre a razão do mesmo.
REFERENCIAS
VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
SROUR, Robert Henry. Poder, cultura e ética nas organizações. 8.ed. Rio de Janeiro, Campus, 1988
GAARDER, Jostein et al. O livro das religiões. São Paulo, Companhia das Letras, 2001
PASSOS, Elizete. Ética nas organizações. São Paulo : Atlas, 2004
CANHIM, Romildo. Exposição de motivos nº 01/94 CE, de 09.5.1994, referente ao Decreto Federal nº 1.171. Disponível na Internet. <http://www.cgu.gov.br/>. Acesso em 13 fev. 2013.
FONSECA, Eduardo Gianetti. Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
MIETH, Dietmar. Pequeno estudo de ética. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007
McLUHAN, Marshall. O meio é a mensagem. Rio de Janeiro, Record,1969, apud <http://pt.wikipedia.org/wiki/Aldeia_global>, acesso em 13 fev. 13.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 13 fev. 2013
BIBLIA. A.T. Miquéias. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulinas, 1985, Cap. 6, Vers. 8.
SILVA, Daniel Cavalcanti da. A ética, o ensino jurídico e a alegoria da cebola. In. FERRAZ, Sergio et al. (Coord). Ètica da advocacia: estudos diversos. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p.225ss.
MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia : dos pré-socráticos a Wittgenstain. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2005)
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais: ética. Brasília, MEC/SEF, 2001