Intensificou-se, nos últimos anos, o debate doutrinário e jurisprudencial sobre a imutabilidade da decisão judicial irrecorrível quando em xeque a própria supremacia da Constituição[1].
Por se tratar de tema polêmico, atual e ainda não pacificado pelo STF[2], cumpre externar nosso singelo posicionamento.
Em prol da perenização dos efeitos da coisa julgada, invoca-se a necessidade de pacificação social a desaconselhar o prolongamento de contendas que só levam a um estado de incertezas e beligerâncias sem fim.
Por outro vértice, recorre-se ao primado da justiça, à supremacia e à força normativa da Constituição, para justificar o reexame de decisões irrecorríveis, mesmo após o decurso do prazo de dois anos para propositura de ação rescisória.
Nesse domínio temático, Cândido Rangel Dinamarco adverte que “a doutrina e os tribunais começam a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização das incertezas”[3].
Mais comum do que se imagina, é fácil cogitar hipótese de coisa julgada contaminada pelo vício supremo quando ela se basear nos fundamentos de uma lei então vigente e posteriormente declarada inconstitucional pelo STF, com eficácia erga omnes e ex tunc, em sede de controle concentrado de constitucionalidade[4], o que, a nosso ver, reclama um redimensionamento crítico de direitos e garantias constitucionais em aparente colisão.
O princípio da segurança jurídica não pode ser visto sob perspectiva privatista como um dogma absoluto, a ponto de eternizar decisões incompatíveis com os preceitos constitucionais.
Como bem retratou Carlos Valder do Nascimento, se as sentenças “configuram atos jurídicos estatais posto reproduzir a manifestação da vontade do Estado, sua validade pressupõe estejam elas em consonância com os ditames constitucionais”. Por isso, “não se pode convalidar sua inconstitucionalidade, visto ser improvável abrir mão de mecanismos susceptíveis de permitir a efetivação de modificações imprescindíveis ao seu ajustamento aos cânones do direito constitucional”[5].
O princípio da segurança jurídica, inspirador da coisa julgada, não sofre nenhum atentado pelo só fato de se admitir virtual impugnação de decisão irrecorrível que desgarre dos postulados constitucionais, máxime porque os valores da segurança, de um lado, e da supremacia constitucional e da justiça, de outro, demonstram clara propensão à harmonização, relativização e integração.
Nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, “o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é, portanto, a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciárias, constitucionalmente prometido mediante a garantia do acesso à justiça”[6].
Pode-se afirmar, portanto, que a relativização da segurança jurídica busca equilibrar-se entre dois vetores aparentemente divergentes, mas que, no fundo, interagem e nutrem diálogo constante, mostrando-se, a nosso ver, retrógrado o enfoque da coisa julgada como uma garantia inquestionável e capaz de legitimar injustiças, transformando o preto em branco e o quadrado em redondo.
Fixada a possibilidade de relativização da coisa julgada, cumpre analisar os prazos, formas e meios a serem utilizados na desconstituição da sentença inconstitucional.
Advertindo que a decisão irrecorrível contrária à Constituição padece de nulidade absoluta, cuja impugnação independe de forma e não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais, parcela expressiva da doutrina sustenta o cabimento, a qualquer tempo, da ação declaratória de nulidade de ato jurídico (querela nullitatis), afastando a ação rescisória[7].
Embora seja efetivamente a querela nullitatis o meio apto a questionar a coisa julgada inconstitucional, de nossa parte, em homenagem ao princípio da economia processual, já que as nulidades absolutas podem ser reconhecidas de ofício e impugnadas a qualquer tempo, não vemos óbice à admissão de outros meios de impugnação desde que respeitados os requisitos legais.
Além da ação rescisória e da ação de nulidade, outra hipótese viável é a desconstituição da sentença passada em julgado por meio de embargos à execução baseados na inexigibilidade do título judicial, por ser este eivado de nulidade absoluta, segundo o parágrafo único do art. 741, do CPC, assim redigido: “Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”.
Como se nota, a utilização dos embargos rescisórios não tem caráter universal, restringindo-se às sentenças fundadas em norma declarada inconstitucional pelo STF, assim consideradas as decisões que aplicaram norma inconstitucional, fizeram-na aplicar em situação tida por inconstitucional ou interpretaram-na em sentido inconstitucional.
Em remate, defende-se a relativização da coisa julgada inconstitucional, a ser desconstituída por distintos meios, entre os quais a ação autônoma declaratória de nulidade (querela nullitatis), os embargos à execução de título judicial fundado em lei declarada inconstitucional e, também, por meio da ação rescisória, por constituir a inconstitucionalidade típico caso de nulidade absoluta passível de arguição a qualquer tempo e independentemente de forma.
[1] Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro enfatizam: “Dúvida não mais pode subsistir que a coisa julgada inconstitucional não se convalida, sendo nula e, portanto, o seu reconhecimento independe de ação rescisória e pode se verificar a qualquer tempo e em qualquer processo, inclusive na ação incidental de embargos à execução” (THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. Coisa julgada inconstitucional: a coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. São Paulo: Ed. América, 2002, p. 126). No mesmo sentido: 1) DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Revista Virtual do Centro de Estudos Victor Nunes Leal da AGU; 2) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v. III; 3) OTERO, Paulo Manuel Cunha da Costa. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993; 4) NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa julgada inconstitucional, na qualidade de coordenador e doutrinador. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002; 5) SILVA, Juary C. Responsabilidade civil do estado por atos jurisdicionais. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 20, 1972, p. 170; 6) WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 38-42.
[2] No STJ, entretanto, a matéria já foi analisada em acórdão relatado pelo Min. José Delgado, que se inclinou pela flexibilização da coisa julgada: “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. HONORÁRIOS E CUSTAS PROCESSUAIS. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. NORMA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CARACTERIZADO. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE OS JULGADOS CONFRONTADOS. CORREÇÃO MONETÁRIA. TÍTULO EXEQUENDO. APLICAÇÃO CUMULATIVA DA TAXA SELIC E UFIR. IMPOSSIBILIDADE. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. (...) 7. Não se pode consagrar, sob o amparo do absolutismo da coisa julgada, uma flagrante violação do ordenamento jurídico que seria conceber a aplicação da correção monetária da UFIR e da Taxa SELIC de forma cumulada. 8. No âmbito doutrinário, assentei: ‘a carga imperativa da coisa julgada pode ser revista, em qualquer tempo, quando eivada de vícios graves e produza consequências que alterem o estado natural das coisas, que estipule obrigações para o Estado ou para o cidadão ou para pessoas jurídicas que não sejam amparadas pelo direito’ (In: Coisa Julgada Inconstitucional, Editora América Jurídica, 4ª Edição, fls. 60/61). 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido” (STJ, 1ª Turma, REsp 770979/RS, Rel. Min. José Augusto Delgado, j. 15-8-2006, DJ, 5-10-2006, p. 257).
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada. In: Coisa julgada inconstitucional. Carlos Valder do Nascimento (Coord.). São Paulo: América Jurídica, 2002, p. 39.
[4] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 39-40.
[5] NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa julgada inconstitucional. São Paulo: América Jurídica, 2002, p. 3-4.
[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada. In: Coisa julgada inconstitucional. Carlos Valder do Nascimento (Coord.). São Paulo: América Jurídica, 2002, p. 39.
[7] Para Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Medina, “seria rigorosamente desnecessária a propositura da ação rescisória, já que a decisão que seria alvo de impugnação seria unicamente inexistente, pois que baseada em ‘lei’ que não é lei (‘lei’ inexistente). Portanto, em nosso entender, a parte interessada deveria, sem necessidade de se submeter ao prazo do art. 495 do CPC, intentar ação de natureza declaratória, com o único objetivo de gerar maior grau de segurança jurídica à sua situação. O interesse de agir, em casos como esse, nasceria, não da necessidade, mas da utilidade da obtenção de uma decisão neste sentido, que tornaria indiscutível o assunto, sobre o qual passaria a pesar a autoridade de coisa julgada. O fundamento para a ação declaratória de inexistência seria a ausência de uma das condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Para nós, a possibilidade de impugnação de sentenças de mérito proferidas apesar de ausentes as condições da ação não fica adstrita ao prazo do artigo 495 do CPC” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 43).