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Crime sem pena

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

4. Crime sem pena: análise das alíneas "a", "b", "c", "f", "g", "h" e "i" do revogado art. 95, da Lei 8.212/91

Outra questão interessante, que me anima comentar, foi a opção do legislador em tipificar várias condutas sem, no entanto, fixar respectivamente a pena para elas, na Lei 8212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui o Plano de Custeio e dá outras providências.

Sem maiores delongas, podemos observar que o antigo art. 95, da referida Lei, dizia "constituir crime" todas as condutas previstas nas suas alíneas, mas, ao prever a pena, acabou por fixá-la fazendo remissão à Lei 7492/86 (crimes contra o sistema financeiro), art. 5º, cuja pena é de reclusão, de 2 a 5 anos, e multa. Porém, no §1º, o legislador fez questão de dizer que somente as condutas tipificadas nas alíneas "d", "e" e "f" é que terão a pena prevista no art. 5º, da Lei 7492/86, esquecendo-se, intencionalmente ou não, da pena para os crimes previstos nas demais alíneas.

Nosso intrépido legislador, então, criou vários crimes sem pena, dando ensanchas para que este autor entenda que uma nova figura penal apareceu no mercado de normas penais excêntricas (mercado já tão concorrido) a norma penal incriminadora truncada!

Como se sabe, a norma penal incriminadora, para ser completa, deve ter o preceito primário e o preceito secundário, já que o Direito Penal não se coaduna com confecção de qualquer norma que não tenha a mínima chance de prevenir e/ou reprimir condutas ojerizadas pela sociedade. Não há como o Direito Penal fazer as vezes do Poder Público20, se a norma penal cai no imenso vazio da mesquinhez, da absoluta falta de potência para punir determinada pessoa que mutila os sentimentos éticos da sociedade.

Neste sentido, a norma penal que, a despeito de tipificar uma conduta, deixar de puni-la, não ganha status de autoridade estatal, devendo, pois, ser desconsiderada. A sanção penal está tão vinculada ao tipo penal quanto a vida humana está ao útero do ser mulher. Muitas vezes, sabemos, a tecnologia retira do útero a vida humana, colocando-a fora dele. Mutatis mutantis, no Direito Penal, o legislador, por vezes, também retira a sanção penal do tipo, porém o coloca a salvo, através da remissão à outra lei, como aconteceu no §1º do antigo art. 95, da Lei 8212/91.

Aliás, Damásio Evangelista de Jesus, na sua obra Direito Penal, Parte Geral, Saraiva, 1993, 17ª edição, depois de dizer que "em toda norma penal incriminadora há duas partes distintas: o preceito e a sanção" (p. 11), completa o raciocínio, na p. 13, citando Aníbal Bruno, demonstrando inexistir diferença entre lei e norma penal: "(...) Seria difícil admitir, conforme observava Aníbal Bruno, ´que o Direito penal viesse a pôr a mais grave sanção com que o Estado assegura a autoridade de seus preceitos a normas que nem mesmo chegaram à dignidade do Direito. Essas normas sociais ou culturais só se tornam jurídicas, e, portanto, revestidas de autoridade estatal, quando o direito positivo as incorpora ao seu sistema como preceitos seus. Quando a norma jurídico-penal sanciona determinado fato, é que o comando ou proibição que ele transgride foi por ela elevado à categoria de imperativo jurídico e está implícito, como elemento normativo, na sua disposição, e é, assim, um preceito do Direito Punitivo".

No mesmo sentido, lembra Marcelo Fortes Barbosa, in Concurso de Normas Penais, RT, São Paulo, 1976, p. 7, citando Remo Pannain, que "norma jurídica é a regra de comportamento obrigatório, juridicamente sancionada", e completa, na p. 8, dizendo que "na realidade, a lei só é verdadeiramente lei, quando contém uma norma jurídica, já que se outro for seu conteúdo, tratar-se-á de regra meramente formal e em conseqüência, somente de maneira imprópria poderá denominar-se lei".

Por isso, não está incorporado no Direito Punitivo, estando longe do Direito Penal, portanto, qualquer norma penal, salvo as não incriminadoras, que, simplesmente, descreve alguma conduta sem traçar a respectiva pena.

Estas considerações sobre o antigo art. 95, da Lei 8212/91, são necessárias porque, a despeito da sua revogação pela Lei 9983/00, ainda persistem alguns resquícios práticos que por vezes causam celeuma no ordenamento jurídico.

Um bom exemplo da referida celeuma está na absolvição, por vezes percebida21, de pessoas que tinham suas condutas enquadradas nas alíneas do art. 95, da Lei 8212/91, já que a Lei 9983/00 revogou o referido art. 95.

Em uma primeira e superficial análise, poder-se-ia imaginar que nem mesmo justa causa para a ação penal existiria, tendo-se em mente que ninguém poderia sofrer a carga de um processo penal contra si sabendo que a sua conduta não era punida. Certamente, dentro deste parâmetro, faltaria interesse ao Ministério Público de promover qualquer ação penal. No entanto, apesar de se enquadrarem no título deste trabalho (crime sem pena) todas aquelas descrições já revogadas (alíneas do art. 95, salvo "d", "e" e "f", da Lei 8212/91), outras normas penais completas, não truncadas, previam os mesmos comportamentos, porém de modo mais abrangente, por isso que na verdade não poderia se falar em aplicação das alíneas ""a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do art. 95 referido, já que tais normas penais não tinham a autoridade estatal dita alhures por Aníbal Bruno. Elas sempre foram, desde o início, simulacro de norma penal, e em nenhum instante chegaram a entrar na essência punitiva do Direito Penal, não prevenindo ou reprimindo comportamentos.

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Cheguei a verificar alguma procedência no fato de que, face ao princípio da legalidade constitucional (art. 5º, inciso II e, no caso, inciso XXXIX - nulum crimem, nulla poena sine lege), e pelo fato das condutas estarem especificamente tipificadas, seria mais correto declarar a abolição do crime, diante da Lei 9983/00, acabando com a absolvição dos acusados com condutas enquadradas nas alíneas revogadas do art. 95, da Lei 8212/91. Porém, este pensamento, precipitado, não pode vingar, a par de uma visão mais cuidadosa e jurídica sobre o caso.

Como foi dito, uma norma penal incriminadora só pode ser considerada quando ela não é truncada, adquirindo, assim, autoridade estatal. Quando uma conduta é tipificada, mas não é punida, tal conduta não é propriamente atípica, porém não chega a colidir com a repugnância jurídica estabelecida pelo legislador. Por isso, uma conduta abrangida por um tipo, porém sem pena alguma, certamente entra no escárnio público, ofendendo a moral societária, mas nunca chega a tangenciar qualquer castigo jurídico.

Dentro desta visão é que não pode ser absolvido alguém que tem sua conduta especificadamente prevista em um tipo penal (que não tem pena), e concomitantemente em outro, mais abrangente, cuja pena existe. No caso de alguém que tinha sua conduta tipificada nas alíneas "a", "b", "c", "g", "h" e "i" do antigo art. 95, da Lei 8.212/91, a mesma conduta, certamente, estava englobada na Lei 8.137/91, cuja redação típica é muito mais abrangente que aquelas previstas nas alíneas. Em síntese, e buscando um exemplo prático: se "A" anotou na CTPS que pagava R$2.000,00 a seu funcionário, quando na verdade pagava R$ 3.000,00, tal conduta estava definida, especificadamente, na alínea "c" do antigo art. 95, da Lei 8212/9122, mas também estava definida, de forma mais abrangente, no inciso I do art. 1º, da Lei 8137/9023. Porém, sem embargo das duas tipificações, a norma penal incriminadora que ganha autoridade estatal, e, portanto, que deve ser aplicada no caso, é o inciso I do art. 1º, da Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária, e não uma eventual norma penal truncada.

Como se vê, a Lei 9983/00 não procedeu a uma "abollitio criminis" das alíneas citadas (crimes sem pena), impondo uma eventual extinção da punibilidade, e sim promoveu a consciência de que eventuais classificações jurídicas, nas denúncias ou nas alegações finais, nas alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j", foram feitas em uma norma penal truncada, erroneamente eleita para abranger a imputação.

Posso ainda fazer referência ao fato de que os tipos penais da Lei 8137/91 eram soldados de reserva24 dos tipos previstos nas alíneas "d", "e" e "f" do antigo art. 95, já que só poderiam ser utilizados se, por qualquer motivo25, as regras mais específicas destas alíneas não pudessem ser utilizadas, lembrando que a pena para aquelas mesmas alíneas ("d", "e" e "f") era de 2 a 6 anos de reclusão, e multa (remissão à pena do art. 5º, da Lei 7492/86), e a pena dos tipos do art. 1º da Lei 8137/90 era, como continua sendo, de 2 a 5 anos de reclusão, e multa (portanto, menos grave). Estamos diante, por assim dizer, do princípio da subsidiariedade26, que tenta, junto com outros, tornar realmente aparente um eventual conflito de normas, e não efetivo27.

É razoável dizer, no entanto, em relação às alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do antigo art. 95, como não havia previsão da "sanctio juris", que a pena da Lei 8137/90 era maior (evidente, porque qualquer pena seria maior que a falta de pena...). Aqui, então, as alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" sempre foram os soldados de reserva da Lei 8137/90 (diferentemente das alíneas "d", "e" e "f", que eram soldados titulares, diante da pena maior, de 2 a 6 anos de reclusão, e multa). Assim, quando uma conduta se enquadrava perfeitamente nas alíneas citadas, o princípio da subsidiariedade mandava o aplicador desfazer o conflito aparente de normas penais aplicando o soldado titular, que era algum dos tipos previstos na Lei 8137/90, e não poderia, jamais, absolver alguém dizendo que ocorreu a "abolitio criminis" porque a Lei 9983/00 revogou os soldados reservas, e não os titulares.28

Há que se dizer, nesta oportunidade, que existem vários doutrinadores comentando o referido princípio da subsidiariedade, e, nestes comentários, percebo que há referência aos elementos especializantes típicos (preceitos primários) contidos nos soldados de reserva, porém sem menção ao conjunto da norma penal incriminadora (preceito primário e preceito secundário). Peço vênia para ser mais claro: os doutrinadores, ao dizer que o princípio da subsidiariedade deve ser utilizado sempre que a conduta do agente se enquadre em um tipo mais grave, fazem menção também aos elementos especializantes do tipo menos grave (aproximação com o princípio da especialidade), mas, porém, só fazem referência ao tipo descritivo, jamais à norma penal incriminadora (até mesmo porque, se bem analisado, está implícita a menção à norma penal incriminadora, e não só ao preceito primário). Em razão destes comentários, enfocando apenas o preceito primário, existem aqueles que imaginam que não há como utilizar o soldado titular (tipo mais abrangente e mais grave) se a conduta estiver milimetricamente descrita no soldado reserva (quase sempre um tipo mais específico) que foi revogado, mesmo se neste tipo subsidiário não houver previsão da sanctio juris.

Porém, não posso negar que o princípio da subsidiariedade, ontológica e teleologicamente analisado, afasta resquícios de dúvida. Tal princípio tem uma mensagem muito importante, e seu fundamento maior é evitar qualquer tipo de impunidade, seja enquadrando a conduta em um tipo com pena maior, devido a uma maior ofensa ao bem jurídico, seja enquadrando a conduta em um tipo com pena menor, evitando a total impunidade. Este receio em causar impunidade é bem notado quando se sabe que a subsidiariedade, além de expressa, pode ser também implícita, impondo ao intérprete, quando perceber que a conduta não se enquadra em um tipo mais abrangente e com pena mais grave, a procura, em uma norma geral mais específica e com pena mais leve, a tipificação necessária.

Mas não é só. O aplicador do Direito Punitivo deve estar atendo para o fato de que, se a conduta não puder ser abrangida e punida por uma norma penal, obviamente que deve buscar uma norma penal incriminadora completa, que descreva e puna a conduta. A mensagem ecoada pelo princípio da subsidiariedade não pode ser analisada restritamente perante os elementos especializantes do tipo penal (só o preceito primário), e sim diante de uma visão global do Direito Punitivo, isto é, deve ser analisada se determinada conduta pode ser suficientemente reprimida por uma norma penal incriminadora. Ora, se o soldado de reserva (no caso, repita-se, as alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do art. 95, da Lei 8212/91 eram soldados de reserva da Lei 8137/90, já que tinham pena menor: não havia pena!) não é suficiente para abarcar a conduta de alguém, é evidente que o soldado titular deverá ser utilizado na adequação típica.

Aliás, nem o princípio da especialidade põe termo nestas premissas, na medida em que, quando a conduta de alguém se encontra mais peculiarmente descrita em um tipo específico que não tem a devida punição (crime sem pena), na verdade nunca existirá adequação típica perante este eventual tipo (no caso analisado, perante as antigas alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do art. 95, da Lei 8212/91), justamente porque se trata de norma penal truncada, incapaz de ser utilizada como norma de autoridade estatal. Na relação tipo especial com tipo geral, o princípio da especialidade impõe a adequação típica no tipo especial, independentemente da pena do tipo especial ser maior ou menor que a pena do tipo geral, mas desde que exista uma comparação das sanções, isto é, desde que exista punição para o tipo especial. A título de exemplo, se em uma Lei houvesse descrição típica da conduta de matar um doente reconhecidamente incurável, sem dor ou sofrimento, movido pela compaixão (eutanásia), mas olvidando a sanctio juris, obviamente que não haverá enquadramento típico no tipo especial, justamente porque, como foi dito, o tipo especial não ganha status de autoridade estatal, sendo, apenas, um tipo simbólico, sem alcançar a autoridade de uma norma penal incriminadora formada por preceito primário e secundário.

Tem razão, ao meu ver, quem entende pela não abolição dos crimes previstos nas alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do art. 95, da Lei 8212/9129, seja porque nem sequer houve enquadramento típico, seja porque sempre foram soldados de reserva das figuras titulares da Lei 8137/90, não sendo necessário nem mesmo cogitar a jurisprudência formada nos tribunais, no sentido da substituição de algumas alíneas pelo art. 168-A do Código Penal30.

Finalmente, basta dizer que a relação soldado reserva-soldado titular entre a Lei 8.137/90 e o antigo art. 95 da Lei 8212/91 está caracterizada, também, porque a Lei 8212/91 trata das contribuições previdenciárias, e a Lei 8137/90 trata dos tributos (crimes contra a ordem tributária), merecendo destaque que a cabeça do art. 1º desta última Lei fala em reduzir ou suprimir tributo, ou contribuição social. Bem se vê, assim, que o interesse das duas Leis perpassa a mesma objetividade jurídica, visando proteger a máquina estatal que busca incrementar o erário com o produto da tributação, sabendo-se que as contribuições sociais, sem dúvida alguma, nos termos da nossa Constituição de 1988, são espécies tributárias31, aumentando ainda mais a relação de subsidiariedade implícita entre as normas penais citadas.

Sobre o autor
Bruno Cezar da Luz Pontes

analista processual do Ministério Público Federal de Goiás, advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTES, Bruno Cezar Luz. Crime sem pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3044. Acesso em: 25 nov. 2024.

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