Introdução
O presente artigo se propõe a analisar a particular experiência segregadora vivenciada pela mulher apenada. A ênfase principal está em revelar o abismo existente entre a utopia legal, que assegura um amplo rol de direitos e garantias fundamentais à existência digna destas mulheres no ambiente carcerário, daquele observado na realidade prisional brasileira, caracterizada como “depósitos de pessoas”. Para tal, analisar-se-á o histórico do tratamento legal no que concerne o encarceramento das mulheres, o amplo rol de direitos e garantias individuais assegurados pela Constituição Federal e legislações infraconstitucionais e, por fim, as violações perpetradas a estes direitos.
1. Histórico do encarceramento feminino
Os primórdios da humanidade desconheciam a privação de liberdade enquanto sanção penal. O encarceramento de transgressores é tão antigo quanto à própria humanidade, no entanto, a prisão destina-se a outros propósitos. Segundo Cezar Roberto Bittencourt:
“Até fins do século XVIII a prisão serviu somente à contenção e guarda de réus para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados. Recorria-se, durante esse período longo período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais [...] e às infamantes.” (BITTENCOURT, 2003)[3].
Somente em meados do século XVI tem-se, na Inglaterra, a efetiva consolidação da ideia de pena privativa de liberdade, com a criação e construção de prisões organizadas para a correção dos apenados. Em 1956, cria-se em Amsterdã casas de correção para homens, as Rasphuis; e as Spinhis, para mulheres, destinadas ao tratamento da pequena delinquência.
No âmbito nacional, até o ano de 1940, o encarceramento de mulheres em espaços físicos separadas dos homens era realizado de acordo com a definição das autoridades responsáveis no ato da prisão. Embora fosse esta uma prática recorrente, não havia qualquer ordem legal que a exigisse ou regulamentasse, nem existiam instituições para tal finalidade específica.
Somente na década de 40 foram tomadas as primeiras deliberações efetivas, por parte do Estado, com vistas à acomodação legal de mulheres que cometeram crimes. A separação dos presídios femininos e masculinos deu-se com a finalidade de criar um ambiente próprio para atender as necessidades inerentes às mulheres e pôr fim ao ambiente de promiscuidade gerado no convívio de homens e mulheres no mesmo espaço físico.
A primeira diretriz legal que se refere às mulheres encarceradas foi determinada pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal, ambos de 1940, e pela Lei das Contravenções Penais, de 1941. Assim, no 2º parágrafo, do Art. 29º, do Código Penal de 1940, determinou-se que “as mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno”. Nesse turno, a Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, incisos XLVIII e o Código Penal (art. 37) determinam que as mulheres presas devem cumprir pena em estabelecimento próprio, e que seja adequado às necessidades inerentes ao gênero feminino.
2. As garantias legais das mulheres presas
O ordenamento jurídico brasileiro garante que devem ser respeitados todos os direitos que não são atingidos pela privação da liberdade, resguardando, deste modo, a integridade física e moral dos condenados. De modo a assegurar esses direitos, a Lei de execução penal estabelece um rol de assistências que devem ser garantidas aos presos, incluindo-se a assistência médica, jurídica, educacional, social, religiosa e material. Além disso, a referida lei dispõe que a execução penal busca proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou internado. O reconhecimento da necessidade de separação dos encarcerados por gênero fez com que fossem incluídos na legislação direitos específicos das mulheres presas, e algumas especificidades no período de execução da sua pena.
A mulher no período gestacional e de amamentação encontra-se em uma situação singular, ocupa posição diferenciada e deve receber condições especiais de tratamento, como estabelecem normas internas e internacionais. A exigência de uma atenção diferenciada às mulheres nessas situações específicas decorre, portanto, das condições inerentes à gestação e lactância, e deve ser observada nos estabelecimentos carcerários. A Constituição também assegura o direito de os filhos permanecerem com as mães durante o período da amamentação (art. 5º, inc. L). Nesse turno, a Lei de Execução Penal introduziu no cenário jurídico a obrigatoriedade de dotar as unidades prisionais femininas de berçário onde as condenadas possam amamentar seus filhos, condição reafirmada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelas Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil (Ministério da Justiça, 1995), e facultou a destinação de alojamento para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado, cuja responsável esteja presa.
A Resolução nº 01, de 27 de março de 2000, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, trata da revista nos visitantes e/ou nos presos e define os procedimentos. Esta assegura o direito à visita íntima aos presos de ambos os sexos, recolhidos aos estabelecimentos prisionais. Assim, a visita íntima do marido, mulher, companheiro ou companheira, deverá estar sempre condicionada ao comportamento do preso, à segurança do presídio e às condições da unidade prisional sem perder de vista a preservação da saúde das pessoas envolvidas e a defesa da família.
A 65ª Assembleia Geral da ONU aprovou, em dezembro de 2010, as “Regras Mínimas para Mulheres Presas”, norma internacional de grande importância, devido ao reconhecimento das necessidades específicas desta parcela da população carcerária, e do déficit existente com relação ao sistema prisional feminino vigente. Além disso, o documento em comento sugere a adoção de medidas alternativas ao aprisionamento feminino, considerando questões como a gravidez e o cuidado com a prole.
3. Violações dos direitos da mulher presa na estrutura carcerária brasileira
Segundo Espinoza, “o cárcere é uma instituição totalizante e despersonalizadora”, este foi idealizado pelos homens e para os homens. Constituindo apenas 5% da população carcerária brasileira, as mulheres são subjugadas a uma situação de invisibilidade que legitima e acentua o estigma da desigualdade de gênero à qual as mulheres estão sujeitas na sociedade brasileira, especialmente aquelas que compõem as classes sociais mais vulneráveis.
Sobre as mulheres recaem os efeitos de uma dupla moralidade social. A primeira delas trata-se da questão de gênero. Historicamente estigmatizadas, as mulheres são até hoje idealizadas como seres frágeis e dóceis, destinadas a cuidar dos afazeres domésticos, e zelar pelo bem-estar de seus esposos e filhos. Ao adotarem uma conduta delitiva e ingressarem no ambiente prisional, as mulheres recebem a cicatriz de delinquente, que se perpetua mesmo após alcançarem a liberdade. O encarceramento feminino visa reforçar os valores de passividade e submissão, e sua ressocialização está voltada à “restituição” do papel esperado pela sociedade, de esposas e mães exemplares, devotadas às suas famílias.
As mulheres encarceradas enfrentam diversos problemas relacionados à estrutura deficitária do cárcere, além dos problemas relacionados ao desrespeito ao tratamento diferenciado que deveriam receber devido ao seu gênero. O problema da superlotação é agravado pelo fato de que, como as mulheres sempre ocuparam uma pequena fração da população carcerária, a maioria dos Estados possui poucas unidades prisionais femininas[4]. No entanto, a quantidade de mulheres presas tem aumentado significativamente nos últimos anos, e não tem havido esforços do governo no intuito de ampliar as vagas do sistema prisional.
A falta de assistência médica adequada às gestantes presas é um fato ultrajante. Segundo relatório[5] apresentado em conjunto pelas instituições Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz, se constatou que o atendimento pré-natal é precário, fazendo com que muitas das presidiárias se recusem a comparecer; muitas vezes o atendimento é prestado pela própria enfermeira do presídio, sem que maiores cuidados sejam tomados; e diversas mulheres não são levadas a tempo ao hospital, dando à luz na própria prisão, sem condições adequadas para tal. Tal situação demonstra profundo desrespeito a um momento singular da vida da mulher e até mesmo da dignidade humana da presidiária e seu bebê.
Através de uma pesquisa[6] realizada pelo Ministério da Justiça em 2008, constatou-se que apenas 27,45% dos estabelecimentos prisionais femininos possuem estrutura específica para a custódia das mulheres grávidas. Somente 19,61% das prisões femininas possuem berçário, e com relação à presença de creches a estrutura se revela ainda pior, pois apenas 16,13% dos estabelecimentos femininos possuem este tipo de estrutura. Essa realidade traz à luz a percepção de um flagrante desrespeito quanto à possibilidade de a presa permanecer com seu filho após o parto e do direito da criança ao leite materno. Devido a esse déficit estrutural, muitas vezes os bebês são retirados das mães logo após o parto. Além disso, à falta de estrutura de berçário, acaba se acomodando a mãe e bebês na própria cela prisional. A pesquisa citada aponta que 47,24% das crianças são acomodadas em celas, o que nos faz questionar o princípio da intranscendentalidade da pena, pois a criança, que nada cometeu, é submetida às condições do cárcere devido à falta de estrutura adequada que deveria ser proporcionada pelo Estado.
Embora esteja assegurado o direito à visita íntima aos presos recolhidos nas unidades prisionais, independentemente do gênero, as políticas de visitação conjugal de muitos estados discriminam as mulheres presas. A visita íntima, totalmente vedada em algumas unidades prisionais, quando existe está subordinada a exigências como comprovação de vínculo de parentesco e uso obrigatório de contraceptivos. Quando concedida, ocorre em condições inadequadas e sem a privacidade devida. Numa análise comparativa com as condições de encarceramento masculina, pode-se depreender que há grande diferença, disparidade e discriminação na concessão do direito a visita íntima às detentas[7].
Enquanto os detentos tendem a receber livremente essas visitas, com pouco ou nenhum controle exercido pelas autoridades estatais, a lógica se inverte com relação às mulheres, nas quais não são vislumbradas, por uma sociedade essencialmente patriarcal e sexista, as mesmas necessidades sexuais dos homens. Por outro lado, chega-se deturpar a previsão constitucional do planejamento familiar, pretendendo-se evitar gravidez decorrente dos relacionamentos sexuais, durante as visitas íntimas[8]. Os fatos elucidados evidenciam o desrespeito à sexualidade das mulheres presas, e a limitação do desenvolvimento e manutenção da afetividade que resta frente ao significativo abandono que suportam, tanto por parte do Estado, quanto de seus familiares.
Considerações finais
Diante do exposto, percebe-se que o encarceramento deficitário feminino é falho. A estrutura carcerária brasileira foi construída voltada para o uso por homens e ainda não está pronta para atender as necessidades específicas do gênero feminino. A falta de atendimento a essas necessidades constitui um flagrante desrespeito ao princípio da individualização da pena, uma vez que a pena só é adequada ao seu destinatário formalmente, enquanto na realidade o sistema punitivo se vale de uma lógica uniformizadora, que desrespeita as particularidades do indivíduo. Além disso, é perceptível que o encarceramento constitui uma situação degradante para a mulher, que recebe um estigma social muito mais forte do que o homem. Com isso, conclui-se que é demasiado forçoso acreditar que a exposição da mulher que tenha infringido a lei a esse sistema aviltante possa contribuir para a sua ressocialização. Deste modo, se reforça a ideia de que a prisão é uma estrutura falida que avilta, embrutece e estigmatiza o indivíduo, incapaz de recuperar e ressocializar aquele que outrora transgrediu.
Notas
[3] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral. Volume I. 8ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.
[4] WIRTH, Maria Fernanda Pinheiro. A mulher atrás das grades. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4977>. Acesso em 15 de Julho de 2013
[5] Penitenciárias são feitas por homens e para homens. Relatório disponível em <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/relatorio-mulherese-presas_versaofinal1.pdf>
[6] GENRO, Tarso; KUEHNE, Maurício. Mulheres Encarceradas: Diagnóstico Nacional. Ministério da Justiça. Distrito Federal: 2008.
[7] Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Disponível em: <http://www.asbrad.com.br/conte%C3%BAdo/relat%C3%B3rio_oea.pdf>. Acesso em: em 13 de Julho de 2013.
[8] COLOMBAROLI, Ana Carolina de Morais. Violação da dignidade da mulher no cárcere: restrições à visita íntima nas penitenciárias femininas. São Paulo.