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A autoridade policial e a atipicidade material da conduta face ao princípio da insignificância

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Estuda-se a possibilidade de o Delegado de Polícia reconhecer a atipicidade material da conduta, diante da insignificância da lesão ao bem jurídico penalmente tutelado.

SUMÁRIO: Introdução; 1 O Crime: Aspectos Conceituais; 1.1 O Crime sob o aspecto formal; 1.2 O Crime no aspecto analítico; 1.3 O Crime no aspecto material; 2 Finalidade Precípua do Direito Penal; 3 A Tipicidade Material como Critério Sustentador da Tipicidade Penal; 4 Autoridade Policial, Discricionariedade e Princípio da Insignificância; Considerações finais; Referência das fontes citadas.

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre a possibilidade do Delegado de Polícia reconhecer a atipicidade material da conduta, diante da insignificância da lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. A maciça maioria das infrações penais passa, inicialmente, por investigação promovida pela polícia judiciária, ou iniciada por Auto de Prisão em Flagrante, ou mesmo, por Inquérito Policial ou Termo Circunstanciado. Em todos os casos, cabe à autoridade policial aferir a tipicidade do comportamento do agente, critério primeiro para instauração ou lavratura do procedimento. Por outro lado, a tipicidade penal, hoje, não é mais avaliada no campo puramente formal, mas também, no âmbito material, de forma que lesões insignificantes não devem ser objeto de repressão penal. Inicia-se a pesquisa com o estudo da Teoria do Delito. Após, investiga-se as finalidades do Direito Penal Moderno, especialmente, sob a ótica do Princípio da Intervenção Mínima. Finalmente, analisa-se a Autoridade Policial e seu poder discricionário na aferição da tipicidade penal e a (im) possibilidade do reconhecimento da insignificância da lesão para desconstituir a infração penal no caso concreto. Quanto à metodologia empregada destacam-se duas fases distintas. A fase de investigação, na qual o método Indutivo foi utilizado, e as considerações finais, nessa fase ressalta-se o emprego da base lógica indutiva.

Palavras-chave: Tipicidade material. Princípio da insignificância. Bem jurídico. Autoridade policial.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objeto o estudo da (im) possibilidade do reconhecimento da atipicidade material da conduta pela Autoridade Policial, face à ínfima lesão ao bem jurídico penalmente tutelado.

A pesquisa se justifica em razão do fortalecimento que o princípio da insignificância recebe pela doutrina e tribunais nas últimas décadas, especialmente, a partir da análise finalística de Direito Penal como instrumento de proteção aos bens jurídicos mais importantes para a vida em sociedade.

Tem-se como objetivo geral investigar os critérios de aferição do princípio da insignificância, seus efeitos e se esse reconhecimento pode ser realizado pela Autoridade Policial, por ocasião de um procedimento atribuído à polícia judiciária.

Iniciar-se-á com o estudo dos conceitos de crime sob os aspectos “formal”, “analítico” e “material”. Na sequência, procurar-se-á demonstrar as finalidades do Direito Penal sob o âmbito da Intervenção Mínima, contemporaneamente difundido como princípio norteador de intervenção penal. Neste caso, a análise será realizada por meio dos estudos dos princípios da fragmentariedade e subsidiariedade.

Mais adiante, será verificado que o emprego de tais princípios tem sido contínuo pelo Poder Judiciário, que se utiliza de alguns critérios para sua devida aferição. No entanto, em sede de Polícia Judiciária, a aplicação do princípio da insignificância é de aceitação bastante restrita no meio jurídico nacional. 

Por fim, o suporte teórico da pesquisa se mostrará consubstanciado a partir de preceitos constitucionais, da doutrina e, ainda, tendo em vista o que tem sido reconhecido pelos os Tribunais Superiores (STJ e STF) acerca da matéria.

Destacam-se duas fases distintas quanto à metodologia empregada na construção da pesquisa: na fase de investigação será utilizado o método Indutivo; nas considerações finais, ressaltar-se-á o emprego da base lógica indutiva.


1. O CRIME: ASPECTOS CONCEITUAIS

A legislação brasileira não apresenta, como ocorria nos códigos anteriores (1830[3] e 1890[4]), um conceito de crime. Neste caso, à doutrina cabe a construção conceitual dessa categoria. A doutrina entende, inclusive, que o critério contido no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei nº 3.914/41) serve apenas para distinguir “crime” de “contravenção penal”, encontrando-se defasado em razão da superveniência da Lei de Drogas[5].

A Teoria do Delito é a parte do Direito Penal que trata, então, por meio da doutrina, da definição de “crime”. Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli[6] dizem que a Teoria do Delito é “a parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o delito em geral, quer dizer, quais são as características que devem ter qualquer delito”.

Assim, nesta incumbência, apresentam-se uma série de conceitos, ora enfatizando o aspecto puramente legislativo (conceito formal); ora procurando investigar a essência do instituto (conceito material); ora verificando os elementos constitutivos do crime (conceito analítico).[7]

Para fins do estudo proposto, analisar-se-á o crime nos três aspectos: inicialmente formal, na sequência, no aspecto analítico e, por último, no campo material.

1.1 O Crime sob o aspecto formal

No campo puramente formal, afirma-se que “crime”, inicialmente, é uma conduta humana. Assim, dentre a infinita quantidade de condutas possíveis, somente algumas delas podem ser consideradas “crime”.

Neste contexto, para distinguir-se as condutas que são delitos das que não o são, recorre-se à legislação penal (parte especial do Código Penal ou legislação esparsa). Nesses diplomas, há dispositivos legais que descrevem as condutas proibidas a que se associa uma pena como consequência.[8] A essas condutas abstratamente previstas, dá-se o nome de “tipo penal”. Toda vez que o comportamento humano, no caso concreto, se encaixar perfeitamente a algum tipo penal, se está diante de um delito. Zaffaroni e Pierangeli[9] explicam:

Tecnicamente, chamamos tipos a estes elementos da lei penal que servem para individualizar a conduta que se proíbe com relevância penal. Assim, por exemplo, “matar alguém” (tipo de homicídio – art. 121, caput); “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (tipo de furto – art. 155, caput); [...]

Dessa forma, quando a conduta se ajusta a algum dos tipos penais, diz-se que se trata de uma conduta típica e, formalmente, se está diante de um delito, razão pela qual, Luiz Regis Prado[10] registra que, formalmente, o delito versa sobre a relação de contrariedade entre o fato e a lei penal.

1.2 O crime no aspecto analítico

Analiticamente, procura-se estabelecer um conceito estratificado de “crime”. Tem-se, então, a definição de crime como conduta típica, antijurídica e culpável[11]. Esclarece-se, com isso, que a doutrina chama a conduta típica e antijurídica de “injusto penal”. Reconhece-se, com isso, que para ser “crime” é necessário que seja o “injusto”, também, reprovável, isto é, que o autor seja culpável. [12]

Esse conceito de delito como conduta típica, antijurídica e culpável é elaborada conforme um critério sistemático que corresponde ao critério analítico que primeiro observa a conduta e depois o seu autor:

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Delito é uma conduta humana individual mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária à ordem jurídica (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que agisse de maneira diversa diante das circunstâncias, é reprovável (culpável).[13]

Esse conceito analítico de crime foi construído a partir da evolução dos estudos do Direito Penal enquanto ciência, que pode ser dividida em três etapas: conceito clássico, conceito neoclássico e finalmente, conceito finalista[14].

Dentro dessas premissas, Bitencourt[15] afirma que a estrutura clássica de delito criada por Von Liszt e Beling, foi composta por quatro elementos estruturais divididos entre: Ação trata-se de conceito puramente descritivo, naturalista e casual, o qual foi definido por Von Liszt como “a inervação muscular produzida por energias de um impulso cerebral, que comandadas pela lei da natureza, provoca uma transformação no mundo exterior”; Tipicidade, a qual representava o caráter externo da ação envolvendo exclusivamente as perspectivas objetivas do fato elencado na legislação; Antijuricidade, sendo considerado elemento objetivo, valorativo e formal e, por fim, a Culpabilidade, com caráter totalmente descritivo, limitando-se a comprovar a existência da ligação subjetiva entre o fato e o autor deste comportamento.

Já o conceito neoclássico de delito, introduziu a influência do campo jurídico da filosofia neokantiana[16], a qual reformulou o conceito clássico de ação, deu nova atribuição à função dada anteriormente ao tipo, bem como redefiniu a culpabilidade, sem, no entanto, modificar o conceito de crime, que nada mais é do que ação típica, antijurídica e culpável [17].

Com efeito, Bitencourt[18] explica que após esta reforma, o tipo, que até então possuía caráter meramente descritivo, transformou-se em tipo de injusto, e passa a ter elementos normativos ou ainda subjetivos.

Mais tarde, surge a teoria finalista, na qual Welzel desenvolveu um dos mais importantes limites para a teoria do delito, sendo retirados todos os aspectos subjetivos da culpabilidade, o que fez surgir uma concepção puramente normativa ao tema. O finalismo retirou o dolo e a culpa da culpabilidade e os deslocou para o injusto, sendo assim elencadas apenas as circunstâncias de reprovabilidade da conduta contrária ao direito na culpabilidade.[19]

Neste contexto, Welzel sustentou que o crime só estaria completo com a presença da culpabilidade. Dessa forma, o crime permaneceu sendo definido como ação típica, antijurídica e culpável[20] .

Veja-se, como anteriormente registrado, que a Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro traz um conceito de crime em seu art. 1º [21]. Ocorre que referido texto legal somente se preocupou em caracterizar e diferenciar crime de contravenção penal, sem, no entanto, defini-lo, incumbindo à doutrina sua elaboração definitiva.

Assim, analiticamente, a estrutura do conceito de crime comporta três substratos: conduta típica, antijurídica e culpável[22].

1.3 O crime no aspecto material

Sob o aspecto material, preocupa-se com a essência de um comportamento penalmente relevante [23]. Luiz Regis Prado[24] lembra que, enquanto formalmente se avalia a relação de contrariedade entre o fato e a lei penal, do ponto de vista material:

[...] são socialmente danosas as condutas que afetam de forma intolerável a estabilidade e o desenvolvimento da vida em comunidade, só sendo admissível o emprego da lei penal quando haja necessidade essencial de proteção da coletividade ou de bens vitais do indivíduo.

Tem-se, a partir disso, que no campo material o perigo de grave lesão a algum bem jurídico-penal, ou ainda, a lesão propriamente dita ao bem penalmente tutelado é o que se chama de delito [25]. Portanto, pode-se registrar que o delito se caracteriza como atentado a valores estabelecidos pela sociedade como basilares e fundamentais para o bom convívio de todos [26].


2. FINALIDADE PRECÍPUA DO DIREITO PENAL

De acordo com os ensinamentos de Roxin[27], o Direito Penal possui a função de garantir a convivência em sociedade, de forma pacífica, livre e segura. Dessa forma, a intervenção jurídico-penal deve ocorrer apenas quando os bens jurídicos mais importantes forem afetados e ainda, quando os outros ramos do direito não consigam atingi-las.

Neste contexto, indispensável se faz trazer a baila o conceito de bem jurídico. Para Roxin[28]:

[...] podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.

Esta definição mostra ao legislador que a punição deve ser legítima, na medida em que busca o benefício de todos e não apenas demonstrar o bem jurídico unicamente como a ratio legis, ou seja, o fim das leis[29].

Conclui-se, deste modo, que o bom convívio da sociedade é critério fundamental para a organização do Estado[30], dessa forma, necessário se faz que somente os bens jurídicos classificados como essenciais sejam defendidos e protegidos pelo Direito Penal.

Sobre a base das reflexões feitas anteriormente, entende-se que é necessário um equilíbrio entre a intervenção do Estado, bem como a liberdade civil.[31] O legislador, no modelo de Estado Democrático e Liberal, ao verificar que os outros ramos do direito não conseguem oferecer a devida proteção aos bens essenciais para o bom convívio de seus cidadãos, define as normas penais traçando este objetivo.[32]

Para selecionar o que deve ou não merecer a proteção da lei penal, Prado[33] afirma que o legislador ordinário deve necessariamente levar em conta os princípios penais que são as vigas mestras – fundantes e regentes – de todo o ordenamento penal. Tais preceitos, os quais se encontram muitas vezes de forma implícita ou explicita na Constituição Federal, formam o que se pode chamar de núcleo gravitacional, ou ser constitutivo do Direito Penal[34]. Deste modo, a ideia de princípio não deve ser subtendida como um fim a ser alcançado, mas como fundamento para o Direito Penal, delineando seus limites[35].

No tocante aos bens jurídicos e os princípios que o norteiam, percebe-se a incidência do Princípio da Intervenção Mínima, ou ultima ratio, o qual se divide no Princípio da Subsidiariedade, no qual somente os bens jurídicos mais relevantes devem ser protegidos pelo direito penal e ainda, no Princípio da Fragmentariedade, que dispõe que somente os ataques intoleráveis é que devem sofrer sansão penal.

Neste sentido, observa-se a lição de Munõs Conde[36]:

O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quer dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito.

Assim, constata-se que o princípio da intervenção mínima deve ser analisado sob dois enfoques distintos, conforme é a lição de Greco[37], veja-se: a) ab inítio, devendo ser entendido como um princípio de análise abstrata, que serve de orientação ao legislador quando da criação ou da revogação das figuras típicas; b) evidencia a chamada natureza subsidiária do Direito Penal, devendo ser encarado como a última ratio de intervenção do Estado.

Para que haja entendimento de como este princípio serve de orientação ao legislador, necessário se faz analisar seu ponto de partida. A sua finalidade muitas vezes se confunde com a finalidade do Direito Penal, que, conforme já salientado, é a proteção dos bens considerados mais importantes a fim de garantir o convívio em sociedade. Partindo dessas premissas, percebe-se que a primeira vertente do princípio da intervenção mínima gira em torno da teoria do bem jurídico[38].

Em segundo plano, o preceito em tela vislumbra a necessidade de o Direito Penal ser aplicado de maneira subsidiária, vindo a permitir que os outros ramos do direito também façam a proteção dos bens jurídicos primordiais, para que a intervenção deste ocorra somente nos casos mais extremos, quando se mostre a real ineficácia dos demais campos. Na visão de Munõs Conde[39] verifica-se que o Direito Penal assume um aspecto subsidiário e sua intervenção somente se justifica quando “fracassam as demais formas protetoras do bem jurídico previstas em outros ramos do direito”.

Dessa forma, em relação ao aspecto subsidiário do Princípio da Intervenção Mínima, vale narrar que este se caracteriza no momento em que se reconhece que o Direito Penal somente deve atuar em defesa dos cidadãos, no momento em que outros ramos do direito sejam insuficientes a fim de tutelarem algum bem.

Já, no que tange à fragmentariedade, Prado[40] disserta demonstrando que esta é “uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensividade da ofensa.” Isto significa dizer, que o Direito Penal deve sancionar apenas as condutas classificadas como perigosas e mais graves para o convívio em sociedade. Faze-se assim uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa. Dessa forma, verifica-se que a fragmentariedade não quer dizer a ocorrência de deliberada lacunosidade na tutela jurisdicional de determinados bens, mas, além disso, limite necessário a fim de assegurar uma totalidade de tutelas[41].

Segundo Bitencourt[42], nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, assim como nem todos os bens jurídicos também são protegidos. Decorre, daí, seu caráter fragmentário, haja vista que o Direito Penal se limita apenas a sancionar as condutas mais graves e atacadas em desfavor dos bens jurídicos mais importantes.

Destarte, uma vez ultrapassada a barreira do princípio da intervenção mínima, ao legislador confere-se a oportunidade de criar os tipos penais incriminadores. No entanto, identificar com precisão as condutas que devem ser proibidas ou impostas pelo Direito Penal não é tarefa fácil e requer do legislador e ao interprete, após sua a devida identificação, ajustá-las ao raciocínio minimalista do Direito.

Partindo desses pressupostos, vem-se uma questão, toda e qualquer figura típica merece proteção do Direito Penal?[43] A seguir, analisar-se-á que a resposta para este questionamento é negativa.

Primeiramente, se a finalidade do Direito Penal - como bem se observou anteriormente - no plano abstrato, é a proteção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade[44], não se deve fazer uma análise contraditória a esse, já que, segundo Greco[45] “seria um raciocínio absurdo concluir que no art. 155 do Código Penal, por exemplo, todos os patrimônios possíveis e imagináveis estariam protegidos, v.g, em virtude da criação do delito de furto”. Logo, constata-se a necessidade de se adotar o Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que este exprime o raciocínio minimalista e equilibrado que o Direito Penal deve adotar, a fim de interpretar corretamente os textos da legislação vigente [46].

Em que pese haver divergência na doutrina no tocante à origem do princípio da insignificância, foi por meio dessa construção doutrinária e da maciça aceitação de seus pressupostos pelos Tribunais, que o referido princípio tomou notoriedade no ordenamento jurídico.

O princípio da insignificância se destacou, especialmente, através dos estudos de Claus Roxin em 1964, sendo que na década de 1970 o autor reproduziu-o em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal[47].

Segundo esse principio, defendido por Klaus Tiedemann[48] como princípio da bagatela[49], deve haver proporcionalidade entre o modo de o Estado intervir frente à gravidade da conduta praticada, haja vista que os comportamentos que se amoldarem ao tipo penal somente de maneira formal, não apresentam qualquer relevância, já que não há lesão ao bem jurídico. Em outros termos, o princípio em questão trata-se de uma excludente de tipicidade, a qual inibe a ocorrência de algum injusto penal.

Assim, ao observar que determinada conduta é atípica, ou seja, carece de tipicidade material, esta se torna indiferente ao Direito Penal, podendo ser alcançada apenas pelos outros ramos do Direito[50].

Partindo-se dessas premissas, chega-se a uma indagação, o que pode ser definido como insignificante pelo Direito brasileiro?

Em síntese, apresentam-se ao estudo em tela as palavras de Prado[51], o qual assevera que: “O princípio da insignificância postula que devem ser tidas como atípicas as ações ou omissões que afetem infimamente um bem jurídico-penal”.

No mesmo sentido, é a lição conferida por Toledo[52]:

Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.

De tal modo, entendeu o Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, do Superior Tribunal de Justiça, em julgado onde menciona que para a aplicação do princípio da insignificância deve ser observada sob o prisma da tipicidade material, além da formal e ainda, os princípios da intervenção mínima (fragmentariedade):

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima. 2. O furto de uma bicicleta, no valor de R$ 120,00, embora se amolde à definição jurídica do crime de furto, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a ofensividade da conduta foi mínima, tendo a coisa sido restituída à vítima. 3. Agravo regimental improvido[53]. Destacou-se.

Dessa maneira, constata-se que a ofensa entendida como insignificante afasta a tipicidade penal, pois ausente a tipicidade material[54], descriminalizando as condutas formalmente típicas, conforme também vem suscitado no Agravo Regimental no Recurso Especial, sob o nº 1.043.525, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça[55].

Veja-se que os Tribunais Superiores também reconhecem o princípio da insignificância para o delito de porte de drogas para consumo pessoal, desde que a quantidade seja ínfima:

Entorpecentes. Princípio da insignificância. Sendo ínfima a pequena quantidade de droga encontrada em poder do réu, o fato não tem repercussão na seara penal, à míngua de efetiva lesão do bem jurídico tutelado, enquadrando-se a hipótese no princípio da insignificância - habeas corpus concedido.[56]

De acordo com o que foram extraídos dos acórdãos supra referidos, percebe-se que é imprescindível uma concepção material da norma, a qual seja adequada ao tipo penal, e não apenas a simples adequação formal em abstrato.

Insta aduzir que ao se aplicar o princípio da insignificância em um caso concreto, não ocorre carência alguma sob a proteção das leis. Neste caso, porém, devem cuidar da conduta outros ramos do direito, não o Direito Penal, pois este deve se preocupar apenas com as lesões efetivas ao bem jurídico (princípio da fragmentariedade). 

No ano de 2008, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça consolidaram alguns critérios para aplicação do princípio da insignificância[57]. O julgamento do HC nº 104530, de Relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski enfatiza bem esses critérios:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. RÁDIO COMUNITÁRIA. OPERAÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO. IMPUTAÇÃO AOS PACIENTES DA PRÁTICA DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 183 DA LEI 9.472/1997. BEM JURÍDICO TUTELADO. LESÃO. INEXPRESSIVIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. CRITÉRIOS OBJETIVOS. EXCEPCIONALIDADE. PRESENÇA. APURAÇÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. I – Consta dos autos que o serviço de radiodifusão utilizado pela emissora é considerado de baixa potência, não tendo, deste modo, capacidade de causar interferência relevante nos demais meios de comunicação. II – Rádio comunitária localizada em pequeno município do interior gaúcho, distante de outras emissoras de rádio e televisão, bem como de aeroportos, o que demonstra que o bem jurídico tutelado pela norma – segurança dos meios de telecomunicações – permaneceu incólume. III - A aplicação do princípio da insignificância deve observar alguns vetores objetivos: (i) conduta minimamente ofensiva do agente; (ii) ausência de risco social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (IV) inexpressividade da lesão jurídica. IV – Critérios que se fazem presentes, excepcionalmente, na espécie, levando ao reconhecimento do denominado crime de bagatela. V – Ordem concedida, sem prejuízo da possível apuração dos fatos atribuídos aos pacientes na esfera administrativa[58]. Destacou-se.

Note-se, a partir disso, que o Supremo delimitou os seguintes requisitos a fim de se reconhecer o princípio da insignificância, a) conduta minimamente ofensiva do agente; b) ausência de risco social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica[59]. De outra parte, os critérios estabelecidos pelo Supremo são sólidos, de forma que não comportam aplicação descomedida ou desnecessária. Apesar disso, é o caso concreto que vai ditar o encaixe ou não de ditos critérios. A necessidade da utilização do Direito Penal pra proteção do bem jurídico é feita a partir da verificação invertida desses critérios. Faltando qualquer deles, em regra, deve o Direito Penal atuar.

Dessa forma, prevalece que é imperiosa aplicação dos requisitos cumulados para que seja possível o reconhecimento da insignificância da lesão. Novamente, fazendo referência ao Supremo:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO CONSUMADO E TENTADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa, cautelosa e casuística. Devem estar presentes em cada caso, cumulativamente, requisitos de ordem objetiva: ofensividade mínima da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente e inexpressividade da lesão ao bem juridicamente tutelado. 2. A conduta reiterada do paciente não pode ser considerada como expressiva de mínima ofensividade. Seu comportamento também não pode ser tido como de reduzida reprovabilidade. Recurso não provido. [60] Destacou-se.

Assim, tem-se que o Princípio da Insignificância tem plena aceitação na doutrina e jurisprudência penal, figurando como norteador da tipicidade penal. A presença ou não da lesão ao bem jurídico deve ser avaliada no caso concreto diante de critérios definidos, hoje, pelo Supremo Tribunal Federal. Ausente ou ínfima a lesão, não se pode falar em crime, pois ausente a tipicidade material e, por consequência, afastada a tipicidade penal.

Sobre os autores
Airto Chaves Junior

Mestrando do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica-CMCJ, do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI -Área de Concentração em Fundamentos do Direito Positivo- O Mestrando está vinculado à Linha de Pesquisa Produção e Aplicação do Direito; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

Priscila Portella Coutinho

Advogada do escritório David&Benzion Advogados; Pós-graduanda de direito penal e processo penal no Complexo Educacional Damásio de Jesus. <br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES JUNIOR, Airto; COUTINHO, Priscila Portella. A autoridade policial e a atipicidade material da conduta face ao princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4165, 26 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30537. Acesso em: 23 dez. 2024.

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