INTRODUÇÃO
A discussão sobre a redução ou a manutenção da maioridade penal no Brasil entra em evidência a cada crime bárbaro e por motivo torpe que é praticado por menores de dezoito anos nas grandes e pequenas cidades do país. A brutalidade do crime e a sensação de impunidade deixam grande parte da população, com o apoio da mídia, desejosos por uma possível redução na idade mínima para imputabilidade penal.
O Brasil, porém, ao contrário do que muitos pensam, tem a idade mínima para punição por um ato antijurídico fixada em doze anos, embora o tratamento dispensado a esses infratores seja mais destinado à ressocialização e efetiva reeducação que simplesmente a punição por vulgar vingança e castigo.
A Carta Magna da República define a idade mínima para imputabilidade penal no Brasil em seu artigo 228, verbis: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas de legislação especial” (BRASIL, 1988). A legislação especial à qual a norma constitucional se refere é, basicamente, a Lei 8.069, de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, e mais recentemente a Lei 12.594, de 2012, que institui o SINASE e entra no ordenamento jurídico para dar real efetividade às medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto.
A infância e a juventude são eternos fatores de preocupação em termos psicológicos, pedagógicos e sociológicos para qualquer sistema de governo. Afinal, os jovens representam a esperança em uma nova e melhor sociedade. É, portanto, natural que no presente esse grupo seja tratado com especial atenção, para que os esforços produzam seus efetivos frutos no futuro.
A Resolução nº 40/33, das Nações Unidas de 1985, da qual o Brasil é signatário, estabelece nesse sentido, na regra 5.1, que o sistema de justiça juvenil precisa realçar o bem-estar da juventude e assegurar que qualquer reação aos jovens delinquentes deva ser sempre na proporção das circunstâncias tanto do ofensor quanto do ofendido (1985, traduzi).
O MENOR
O dicionarista Deocleciano Guimarães define menor como sendo “pessoa que (...) não alcançou, em virtude de idade, a capacidade jurídica plena” (2012, p.173). O Estatuto da Criança e do Adolescente classifica, ainda, dentre os menores, a criança como pessoa com até doze anos de idade incompletos; e o adolescente, com idade entre doze e dezoito anos (1990). Ambos os grupos são revestidos da chamada inimputabilidade penal.
A Organização das Nações Unidas, por sua vez, em sua Resolução 40/33, de 29 de Novembro de 1985, que apresenta regras mínimas para a administração da justiça de menores, define o menor como “qualquer criança ou jovem que, em relação ao sistema jurídico considerado, pode ser punido por um delito, de forma diferente de um adulto” (UN, 1985, traduzi).
A título de curiosidade, o Decreto nº 17.943-A, de 1927, intitulado Código Mello Mattos, que regia o tratamento dispensado aos menores àquela época, classificava em seu 26º artigo os menores de dezoito como: “expostos”, menores de sete anos encontrados em estado de abandono; os “vadios”, que são os atuais meninos de rua; os “mendigos”, que pediam esmolas; e os “libertinos”, que eram aqueles que frequentavam os prostíbulos (BRASIL, 1927).
IMPUTABILIDADE PENAL
O renomado penalista Cleber Masson ensina que a culpabilidade é composta por três elementos: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa (MASSON, 2010). A imputabilidade aparece, portanto, como um dos elementos da culpabilidade, ou juízo de censura que constitui pressuposto de aplicação da pena.
O autor penalista define, ainda, a imputabilidade como sendo “a capacidade mental, inerente ao ser humano de, ao tempo da ação ou da omissão, entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento” (idem, p. 434), ou seja, o agente maior de dezoito anos, que, ao tempo do fato típico, gozava de plena capacidade biopsíquica e tinha completo controle sobre sua vontade e seus impulsos, é penalmente imputável.
Rogério Greco complementa que “a imputabilidade é a possibilidade de se atribuir, imputar o fato típico e ilícito ao agente. A imputabilidade é a regra; a inimputabilidade, a exceção.” (GRECO, 2007, p. 396)
A matéria está versada no Título III do Código Penal de 1940, cujo artigo inaugural estabelece que:
Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter lícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (BRASIL, 1940)
Todavia, o Direito Penal brasileiro adotou, além do critério biopsicológico mencionado supra, um critério cronológico, que estabelece presunção absoluta (juris et de jure) de imaturidade natural a toda pessoa até a véspera do dia em que completa dezoito anos, acobertando-a com o manto da inimputabilidade, conforme impõe o artigo 27 do Código Penal. In verbis: “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial” (BRASIL, 1940).
O penalista Rogério Greco complementa ainda:
A inimputabilidade por imaturidade natural ocorre em virtude de uma presunção legal, onde, por questões de política criminal, entendeu o legislador brasileiro que os menores de 18 anos não gozam de plena capacidade de entendimento que lhes permita imputar a prática de um fato típico e ilícito. (GRECO, 2007, p. 399)
Quanto à prática do ato delituoso no dia de seu décimo oitavo aniversário, a jurisprudência tem se firmado no sentido de que se cessa a inimputabilidade do agente no início do dia, independente da hora do nascimento, tornando-o passível de ser punido com as sanções estabelecidas no Código Penal[2].
É importante lembrar que a situação de inimputabilidade penal da qual o menor tem direito não exclui a necessidade de uma atuação reflexiva por parte do Estado em face da prática de um ato antijurídico por esse agente. De fato, a lei arrola tipos de medidas socioeducativas, que variam conforme o ato infracional cometido, e que, além do objetivo puro do castigo, têm um caráter mais ressocializador e protetivo da dignidade e do potencial futuro do menor, sem os estigmas da vida pregressa criminosa. Inimputabilidade, portanto, não é sinônimo de impunidade.
Como consequência da inimputabilidade, é importante destacar que o ato praticado pelo agente inimputável, por critério de maturidade natural, que tenha tipificação como crime ou contravenção penal, juridicamente, não é denominado crime, mas sim ato infracional. O artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente conceitua-o: “Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.” (BRASIL, 1990)
Há uma discussão acerca da possibilidade jurídica de se reduzir a idade mínima para imputabilidade penal para dezesseis anos, haja vista muitos renomados juristas consideram o artigo 228 da Constituição Federal como abarcado pela proteção do artigo 60, § 4º, IV, as chamadas cláusulas pétreas, que estabelece o seguinte: “§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV – os direitos e garantias individuais.” (BRASIL, 1988) Entre eles, pode-se apresentar como exemplo René Ariel Dotti, segundo o qual a inimputabilidade:
[...] constitui uma das garantias fundamentais da pessoa humana, embora topograficamente não esteja incluída no respectivo Título da Constituição que regula a matéria [Título II]. Trata-se de um dos direitos individuais inerentes à relação do art. 5º caracterizando, assim, uma cláusula pétrea. (DOTTI, 2001, p. 412-413)
Porém, há renomados defensores da via contrária que sustentam que há sim a possibilidade de alteração do artigo em comento. Rogério Greco, entre eles, argumenta:
Apesar da inserção no texto de nossa Constituição Federal referente à maioridade penal, tal fato não impede, caso haja vontade política para tanto, de ser levada a efeito tal redução, uma vez que o mencionado art. 228 não se encontra entre aqueles considerados irreformáveis, pois que não se amolda ao rol das cláusulas pétreas elencadas nos incisos I a IV, do § 4º, do art. 60 da Carta Magna. (GRECO, 2007, p. 400)
O tema imputabilidade por maturidade natural é, ex positis, ainda muito controverso quanto ao estabelecido pela legislação pátria. A crescente sensação de impunidade, muitas das vezes causadas pelo excesso de eufemismo com que os documentos legais e doutrina tratam a matéria penal aplicada aos inimputáveis, leva a sociedade a clamar pela redução da chamada maioridade penal, como medida que resolveria, ou aliviaria, problemas sociais de segurança pública. Entretanto, data venia aos defensores dessa linha de raciocínio, a resolução da lamentável situação de segurança pública em que o Brasil se encontra envolve questões diversas e principalmente vontade política de implantação de medidas efetivas, tanto de caráter preventivo quanto repressivo, inclusive as que já estão prescritas em lei.
HISTÓRICO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL
A maioridade penal, ao contrário do que muitas pessoas pensam, sempre foi tema em voga em diversas ocasiões no Brasil. Desde a época colonial, a idade mínima para imputabilidade do jovem delinquente passou por quatorze e até nove, para mais tarde, finalmente, chegar aos dezoito anos atuais.
Esse aumento deve-se, primordialmente, ao desejo das sociedades atuais, em sua perquirição pela plenitude da justiça, de tratarem juridicamente seus jovens de maneira que ele alcance a maturidade. A criança é patrimônio da humanidade, é o seu futuro, e o nível de civilização de um povo pode ser aferido pelo tratamento que dispensa à criança. (TAVARES, 2004)
Maurício Azevedo lembra que, em 1808, ano da chegada da família real em território brasileiro, vigorava no país as Ordenações Filipinas de 1603, que tinham um caráter penal bastante severo e indiscriminado. Dentre as sanções previstas, a pena de morte, o açoite, corte de membros, etc.; somente à pena de morte o menor de dezessete anos era privado (2007).
O Código Criminal de 1830, outorgado na vigência da monarquia no Brasil, abrandou, por sua vez, o tratamento com relação aos jovens infratores, fixando em seu artigo 10, parágrafo 1º, os menores de quatorze anos como inimputáveis, estabelecendo, porém, uma ressalva em seu artigo 13, in verbis:
Art. 13. Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos às casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos. (BRASIL, 1830)
Com a proclamação da República brasileira, em 1889, manifestou-se vontade e urgência na reformulação das leis penais vigentes no país. Nesse sentido, em 1890, Marechal Deodoro da Fonseca, então chefe do governo provisório do país, expede o Decreto nº 847, que institui o novo código penal.
Com relação à inimputabilidade, o código do novíssimo Estado republicano estabelecia o seguinte:
Art. 27. Não são criminosos:
§1º Os menores de 9 annos completos;
§2º Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento; (BRASIL, 1890)
Encontram-se claras, então, algumas diferenças, embora pequenas, entre o código do Marechal Deodoro e o código de Dom Pedro no que concerne ao tratamento dispensado ao jovem delinquente. Entre elas, o fato de que o artigo 27 do código de 1890 estipulava uma idade mínima para imputabilidade, mesmo que o menor infrator tivesse discernimento das suas ações antijurídicas. De acordo com o código de 1830, entretanto, o ônus da prova de discernimento cabia ao Estado-acusador, enquanto que o Decreto nº 487, de 1890, deixou a encargo do defensor a prova da incapacidade de o menor entre nove e quatorze anos ser responsabilizado.
Quanto ao destino do jovem delinquente que, maior de nove e menor de quatorze anos, tivesse consciência de suas ações, o código de 1890 manteve o entendimento de recolhê-lo a estabelecimentos disciplinares, conforme esclarece em seu artigo 30, assim transcrito:
Art. 30. Os maiores de 9 annos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz parecer, comtanto que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos. (BRASIL, 1890)
O advento do primeiro Código de Menores, Decreto nº 17.943-A de 1927, conhecido como Código Mello Mattos, primeiro documento normativo especializado na proteção da infância e adolescência, voltou a estabelecer em seu artigo 68 a idade mínima para imputabilidade penal aos quatorze anos, estipulando o seguinte:
Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cúmplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de, espécie alguma; a autoridade competente tomará somente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punível e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e econômica dos paes ou tutor ou pessoa em cuja guarda viva. (BRASIL, 1927)
No seu artigo 69, o histórico código regulou ainda o processo atribuído aos jovens que, embora fossem maiores de quatorze anos, não tivessem completado dezoito anos de idade, estabelecendo que: “O menor indigitado autor ou cúmplice de facto qualificado crime ou contravenção, que contar mais de 14 annos e menos de 18, será submettido a processo especial [...]” (BRASIL, 1927)
O Decreto foi ab-rogado em 1979, com o surgimento da Lei nº 6.697, sancionada pelo então presidente militar João Figueiredo. É estipulado na lei, especificamente em seu artigo 1º, inciso I, que a abrangência das normas protetivas e sancionadoras prescritas no documento legal passa a ser para os menores de dezoito anos, o que foi ratificado em 1988, na Constituição vigente da República Federativa do Brasil, em seu artigo 228. Verbis: “Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” (BRASIL, 1988)
COMO É VIGENTE NO BRASIL
Conforme já exaustivamente exposto, a Carta Magna e a legislação infraconstitucional estabelecem dezoito anos como base etária para imputabilidade penal, aplicando as normas da legislação especial aos adolescentes que praticam atos infracionais. Essa legislação é, basicamente, a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, intitulada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e, mais recente, a Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
O ECA, documento legal sancionado pelo ex-presidente Fernando Collor em 1990, nasce a partir de reivindicações sociais para uma tutela mais efetiva dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros quanto a diversos aspectos, como vida, saúde, dignidade, esporte, convivência familiar, profissionalização e proteção no trabalho, além de outros direitos. Ele vem regular, também, o tratamento dispensado aos adolescentes que praticam atos infracionais. O artigo 3º prescreve:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (BRASIL, 1990, grifei)
Anteriormente ao advento do ECA, havia, com relação à criança e ao adolescente, a chamada Doutrina da Situação Irregular, apresentada no antigo Código de Menores, Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979, de acordo com a qual a criança e o adolescente somente eram percebidos quando estavam em situação irregular, ou seja, não estavam inseridos em uma família ou quando tivessem atentado contra o ordenamento jurídico (VILLAS-BOAS, 2011).
O Estatuto contrapõe-se à exclusão social histórica que o precedeu assentando-se na chamada Doutrina de Proteção Integral, que exige uma atuação integral por parte do Estado, desde a convivência em família até respostas às práticas infracionais. A referida doutrina teve seu marco na edição do artigo 227 da Carta Magna de 1988. In verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, grifei)
O parágrafo único do art. 52 da Lei do SINASE reforça a necessidade da participação da família no processo de ressocialização do adolescente:
O PIA deverá contemplar a participação dos pais ou responsáveis, os quais têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente, sendo esses passíveis de responsabilização administrativa, nos termos do art. 249 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), civil e criminal. (BRASIL, 2012, grifei)
Objetivando dar concretização aos direitos declarados no ECA para os adolescentes em conflito com a lei, em 2004, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Governo Federal e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) elaboraram e sistematizaram a proposta do SINASE.
O SINASE, conforme o § 1º artigo 1º da lei que o institui, é
[...] o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescentes em conflito com a lei. (BRASIL, 2012)
Igualmente, segundo a Secretaria Especial dos Direitos Humanos:
A implantação do SINASE objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos princípios dos direitos humanos. Defende, ainda, a ideia dos alinhamentos conceitual, estratégico e operacional, estruturada, principalmente, em bases éticas e pedagógicas. (2006, p. 16)
Uma das inovações que a Lei 12.594 de 2012 introduziu na execução da medida socioeducativa foi o Plano Individual de Atendimento (PIA), conforme artigo 52, verbis:
Art. 52. O cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, dependerá de Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente. (BRASIL, 2012, grifei)
Esse plano, importante ferramenta para a execução da medida socioeducativa, elaborado, em regra, em até 45 dias da data do ingresso do adolescente no programa de atendimento, tem como objetivo o estabelecimento de metas bem definidas e moldadas conforme a necessidade de cada medida a ser aplicada, e o perfil de cada adolescente que irá cumpri-la, de forma individual, permitindo, assim, um acompanhamento da evolução do adolescente durante a execução da sanção.
Portanto, as normas contidas, tanto na Lei 8.069, de 1990, quanto na Lei 12.594, de 2012, visam claramente, entre outras necessidades, dar uma resposta proporcional por parte do Estado à prática do ato infracional, levando sempre em conta a necessidade do menor infrator e o fim ao qual a sanção se propõe.
Os princípios para a execução das medidas socioeducativas encontram-se elencados, numerus apertus, no artigo 35 da Lei do SINASE, quais sejam: (a) legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido a um adulto; (b) excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; (c) prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atenda às necessidades da vítima; (d) proporcionalidade em relação à ofensa cometida; (e) brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial com relação à medida de internação; (f) individualização, considerando a idade, capacidade e circunstâncias pessoais do adolescente; (g) mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida; (h) não discriminação do adolescente notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e (i) fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo educativo. O § 3º, V, do artigo 227 da Carta Magna apresenta, ainda, o princípio do respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento.
Fica clara, portanto, a preocupação dos legisladores na preservação da condição do jovem, criança ou adolescente, buscando corrigir sua conduta sem prejudicar-lhe o futuro. Os diplomas legais apresentados visam, pois, a máxima proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes, tanto para remediar um desvio de conduta, quanto protegê-lo desde dentro do núcleo familiar como medida profilática. Para o primeiro caso, o Título III, do Livro II, do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece uma série de medidas a serem adotadas de modo a garantir a integridade dos direitos da criança e adolescente em conflito com a lei.
O ECA estabelece uma diferença entre a medida socioeducativa aplicada à criança (pessoa de até doze anos de idade) e ao adolescente (pessoa com idade entre doze e dezoito anos), conforme exposto no art. 105, verbis: “Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101.” (BRASIL, 1990)
O referido artigo 101 elenca de forma não exaustiva as seguintes medidas possíveis de serem aplicadas às crianças que praticam o ato infracional:
I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII – acolhimento institucional;
VIII – inclusão em programa de acolhimento familiar;
IX – colocação em família substituta. (BRASIL, 1990)
Para os adolescentes, pessoas entre doze e dezoito anos, o Estatuto, em seu artigo 112, arrola uma série de medidas que poderão ser tomadas, levando em consideração sempre a condição do menor, a gravidade da infração e as circunstâncias, sempre tendo como fim a real recuperação do jovem sob a tutela do Estado, podendo o juízo responsável, inclusive, alternar entre as medidas a qualquer tempo, conforme a necessidade. In verbis:
Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I – advertência;
II – obrigação de reparar o dano;
III – prestação de serviços à comunidade;
IV – liberdade assistida;
V – inserção em regime de semi-liberdade;
VI – internação em estabelecimento educacional[3];
VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a IV. (BRASIL, 1990)
O artigo 42 da Lei do SINASE, tendo em vista o caráter interventivo das medidas de liberdade assistida, semiliberdade e internação, impõe que sejam reavaliadas periodicamente, no prazo máximo de seis meses, podendo a autoridade judicial determinar, caso fique constatada a desnecessidade da ação mais interventiva, a substituição por medidas menos gravosas.
A gravidade das medidas de internação e semiliberdade estão, inclusive, positivadas no § 3º do referido artigo 42, in verbis: “Considera-se mais grave a internação, em relação a todas as demais medidas, e mais grave a semiliberdade, em relação às medidas de meio aberto.” (BRASIL, 2012)
No caso de substituição por medida mais gravosa, a lei a reserva apenas para caso de excepcionalidade fundamentada em parecer técnico, após o devido processo legal e audiência, cientes o defensor, o Ministério Público, a direção do programa de atendimento, o adolescente e seus pais ou responsável.
Uma nova proteção que a Lei do SINASE lançou aos menores infratores foi a impossibilidade de aplicação de nova medida socioeducativa por fato anterior à aplicação de medida já cumprida ou em cumprimento, conforme prescreve o § 2º, do artigo 45, in verbis:
É vedado à autoridade judiciária aplicar nova medida de internação, por atos infracionais praticados anteriormente, a adolescente que já tenha concluído cumprimento de medida socioeducativa dessa natureza ou que tenha sido transferido para cumprimento de medida menos rigorosa, sendo tais atos absorvidos por aqueles aos quais se impôs a medida socioeducativa extrema. (BRASIL, 2012)
Quanto ao prazo da internação, em respeito aos princípios, já apresentados supra, da brevidade, da excepcionalidade e da condição peculiar do menor, a lei 8.069, de 1990, é categórica ao afirmar em art. 121, § 3º que “em nenhuma hipótese, o período máximo de internação excederá a três anos” (BRASIL, 1990), complementando em seguida que, findo o prazo, o adolescente deverá ser liberado ou posto em regime de semi-liberdade ou liberdade assistida.
Importante ressaltar que, embora não seja possível, como já foi dito, a aplicação de nova medida socioeducativa de internação por fato anterior a outro que ensejou a medida já cumprida ou em cumprimento, é possível a aplicação de nova medida, caso o adolescente pratique ato infracional durante o cumprimento de outra.
O artigo 45 da Lei 12.594, de 2012, regula a matéria, in verbis:
Art. 45. Se, no transcurso da execução, sobrevier sentença de aplicação de nova medida, a autoridade judiciária procederá à unificação, ouvidos, previamente, o Ministério Público e o defensor, no prazo de 3 (três) dias sucessivos, decidindo-se em igual prazo. (BRASIL, 2012)
Outrossim, a legislação determina que aos vinte e um anos de idade, independentemente de ainda restar tempo a ser cumprido em medida socioeducativa, ainda que de internação, após autorização judicial e ouvido o parquet, o adolescente será compulsoriamente liberado.
COMO É VIGENTE EM PORTUGAL
O artigo 19 do Código Penal português define a idade mínima para a imputabilidade penal: “Os menores de 16 anos são inimputáveis” (PORTUGAL, 2007). Os jovens que ainda não completaram os dezesseis anos são, portanto, regido por legislação especial, qual seja a Lei nº 166, de 14 de setembro de 1999.
O art. 1º do aludido documento legal esclarece quais são os tutelados por seu texto. Verbis: “A prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com as disposições da presente lei” (PORTUGAL, 1999, grifei).
As medidas tutelares previstas pela Lei, por sua vez, que, por força do artigo 7º, nº 1, não podem durar mais tempo que o limite máximo da pena prevista para o crime correspondente ao fato, estão no seu artigo 4º. Verbis:
1 – São medidas tutelares:
a) A admoestação;
b) A privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter permissão para conduzir ciclomotores;
c) A reparação ao ofendido;
d) A realização de prestações econômicas ou de tarefas a favor da comunidade;
e) A imposição de regras de conduta;
f) A imposição de obrigações;
g) A frequência de programas formativos;
h) O acompanhamento educativo;
i) O internamento em centro educativo. (PORTUGAL, 1999)
O seu artigo 5º limita ainda a idade para cumprimento das medidas supracitadas: “A execução das medidas tutelares pode prolongar-se até o jovem completar 21 anos, momento em que cessa obrigatoriamente” (PORTUGAL, 1999).
A medida prevista na alínea i é a única, dentre as arroladas no artigo, que é considerada institucional. A Jurisprudência portuguesa, porém, tem posicionamento no sentido de que é preferível, a priori, a escolha por medida não institucional. Para fins de exemplo, segue Acórdão proferido no processo 11250/2008-5, do Tribunal da Relação de Lisboa, de relatoria de Ricardo Cardoso:
INTERNAMENTO[PREFERÊNCIA POR MEDIDA NÃO INSTITUCIONAL]
1- A escolha da medida é sempre orientada pelo interesse do menor nos termos do art.º 6º nº 3 da LTE.
2- O tribunal deve de entre o leque de medidas possíveis escolher a que realize de forma adequada, e suficiente as finalidades visadas com a aplicação, ou seja, a socialização do menor.
3- A lei atribui uma preferência pela medida não institucional, face à institucional, pois na verdade, a medida de internamento é a que acaba sempre por representar maior intervenção na autonomia de decisão, e condução de vida do menor.
Proc. 11250/2008-5[4]
Relator: Ricardo Cardoso (grifei)
Há, portanto, um sistema normativo de proteção ao jovem que está em delicado estado de desenvolvimento, para garantir, assim, sua maturação sadia e sua reinserção efetiva e duradoura no seio da sociedade.
Porém, apesar de voltado para imputabilidade, em Portugal, o sistema penal para jovens entre 16 e 21 anos é tratado também de forma diferenciada, visando sempre o objetivo de reinserção social do jovem infrator. Nesse sentido, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 401, de 1982:
3. O direito penal dos jovens imputáveis deve, tanto quanto possível, aproximar-se dos princípios e regras do direito reeducador de menores. [...]
4. O princípio geral imanente em todo texto legal é o da maior flexibilidade na aplicação das medidas de correcção que vem permitir que a um jovem imputável até aos 21 anos possa ser aplicada tão-só uma medida corretiva. Trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador. (PORTUGAL, 1982, grifei)
No mesmo preâmbulo, em seu segundo item, o aludido diploma legal define a justificativa de um direito penal para jovens com caráter mais pedagógico que meramente punitivo. Verbis:
2. Tal interesse e importância não resultam tão-só da ideia de que o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado, mas vão também ao encontro das mais recentes pesquisas no domínio das ciências humanas e da política criminal, como, finalmente, entroncam num pensamento vasto e profundo, no qual a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando este se encontra ainda no limiar da sua maturidade. (PORTUGAL, 1982)
Naquele país, o jovem de 16 aos 21 anos de idade é, portanto, imputável, porém recebe um tratamento diferenciado em relação aos adultos. O próprio artigo 19 do código penal português identifica a idade limite de imputabilidade: “Os menores de 16 anos são inimputáveis”, ao mesmo em tempo que resguarda os jovens imputáveis em seu artigo 9º: “Aos maiores de 16 e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial” (PORTUGAL, 2007).
Ao longo do texto legal português, fica evidenciado o desejo do legislador em preservar o jovem. O preâmbulo destaca algumas observações, dentre as quais: “5. A inconveniência dos efeitos estigmatizantes das penas aconselha a que se pense na adopção preferencial de medidas correctivas para os delinquentes a que o diploma se destina” (PORTUGAL, 1982, p. 3006-(64)).
PROBLEMAS DA ADOÇÃO DO DIREITO PENAL COMUM AOS JOVENS INFRATORES
Já é bem sabido, conforme exposto, que o tratamento dispensado ao jovem que comete algum ato antijurídico é um assunto que merece especial atenção tanto no Brasil, onde se optou pela inimputabilidade penal dos adolescentes menores de dezoito anos, quanto em Portugal, onde se estabelece a imputabilidade a partir dos dezesseis anos de idade, mas que é, entretanto, relativa, porquanto naquele país é adotada uma legislação especial em matéria penal para os jovens menores de vinte e um anos.
Essa preocupação, que não é exclusiva dos dois países que figuram como objeto deste artigo, mas sim de toda a sociedade global, tem fundamento na característica bastante peculiar do jovem cujo caráter e personalidade ainda estão em processo de formação.
Os conceitos eufêmicos que a lei pátria traz, por questões técnico-jurídicas, causa no cidadão leigo uma sensação de impunidade com relação aos delitos praticados por menores. Esse efeito aumenta com a omissão no cumprimento dos preceitos dessa lei por parte das autoridades governativas, que deixam de aplicar seus esforços na construção de uma infraestrutura bem preparada para acolher esse grupo de infratores, não só no aspecto físico, com criação efetiva de estabelecimentos adequados para aplicação das medidas socioeducativas em regime fechado, mas também com preparação adequada de recursos humanos capazes de lidar com esses adolescentes e lhes proporcionar uma efetiva ressocialização.
A Lei nº 8.069, de 1990, porém, apresenta nas medidas socioeducativas efetiva resposta à prática do ato infracional por adolescente. Medidas que invadem e restringem a liberdade do infrator, a fim não só de uma reparação da sua índole, mas também como real castigo por suas ações.
O efeito violento que uma sanção penal pode infligir ao jovem infrator, estigmatizando-o por toda a sua vida e prejudicando-o em seu desenvolvimento e interação social, leva o Estado, provedor da garantia de manutenção da dignidade humana, à adoção de sistemas diferenciados para punição pelo ato infracional e para a efetiva reeducação daquele partícipe social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como demonstrado supra, a legislação brasileira é extremamente evoluída na perquirição do objetivo a qual ela se propõe. É uma legislação que visa menos à punição, como execução da vingança social, que a uma abordagem restauradora e remediadora contra a patologia social da qual o jovem e toda sociedade são vítimas.
A complexidade da realidade social, na qual o menor de dezoito anos em conflito com a lei está inserto, alerta para a necessidade de uma análise também complexa. Uma discussão acerca de uma eventual mudança na maioridade penal, por si só, é uma abordagem extremamente simplista para um problema que exige uma ação executiva, legislativa, judiciária e de toda a sociedade para sua resolução ou minimização.
Torna-se clara a importância do pensamento diferenciado com relação ao tratamento dispensado aos jovens infratores, tanto em Portugal como no Brasil. Sua peculiar condição de amadurecimento, não somente fisiológico, mas no seu âmbito ético e social, exige que se tenha, não só um sistema jurídico que tutele as necessidades básicas desse jovem, mas também uma infraestrutura de centros de acompanhamento e de internação.
É preciso, portanto, que toda a estrutura estatal, manifestada nos três poderes que a mantém harmônica, juntamente com a população em geral, somem forças para implantação de medidas primeiramente profiláticas, oferecendo ao jovem alternativas à criminalidade, para que não seja necessário que se utilize o violento braço estatal na aplicação das medidas corretivas, mas, se estas forem necessárias, que sejam aplicadas com inteligência, voltadas para a reinserção social e uma efetiva reeducação, ou mesmo uma educação, já que muitos ainda não tiveram nem essa primeira oportunidade.
Igualmente, faz-se necessário que se olhe para os jovens, mesmo aqueles que cometeram atos reprováveis socialmente, como seres humanos em processo de amadurecimento, e como tal, não podem estar fadados a uma política penal excludente. Precisam, no entanto, da atenção por parte dos seus concidadãos e do Estado, no sentido pedagógico, familiar e que os incluam naquela coletividade que nunca realmente os acolheu.