4 A TÉCNICA E A ÉTICA NA LEI BRASILEIRA DE INOVAÇÃO
A história da humanidade demonstra que a liberdade técnica, ou seja, sem a determinação de limites éticos, pode levar a extremos que são capazes de comprometer o ser humano e o seu meio. A determinação de fronteiras éticas nos liames da técnica é indispensável diante do atual progresso científico do homem.
No atual estágio do desenvolvimento tecnológico, a liberdade humana alcançou tamanhas proporções que passou a atingir a liberdade dos organismos e a colocar em risco o dinamismo da vida e a existência de toda natureza. A presença desta ameaça fica obscurecida por um niilismo que trata a matéria exterior como um mecanismo disponível ao domínio do ser humano, sem qualquer valor e sem finalidade. Nesta concepção niilista do mundo, o homem compreende que possui legitimidade para violentar a natureza e dela se apoderar segundo seu interesse (BARRETTO, 2013).
Conforme refere SIQUEIRA (1998), a sociedade está acostumada a conviver com problemas de limites definidos que pouco servem para atender as complexas indagações éticas que ora se apresentam. A falta de sintonia entre o extraordinário progresso da tecnociência e os tímidos avanços dos mandamentos éticos podem gerar resultados desastrosos para o homem. A tecnociência somente enxerga o preto e o branco, onde a ética percebe o cinza e suas diferentes tonalidades.
Trabalhar com perspectivas como, por exemplo, a prudência – definida no Catecismo da Igreja Católica como a virtude que dispõe a razão prática a discernir em qualquer circunstância nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados a realizá-lo, ou por Aristóteles, em Ética Nicômaco, como recta ratio agibilium (a reta razão do agir), a virtude da razão prática ordenada à direção das ações humanas –, que difere, porém, da arte em sentido próprio, que visa à perfeição de coisas exteriores, no sentido que tende à perfeição do próprio agente: visa a tornar boa, honesta, a própria vontade (NEDEL, 2000), não é suficiente para inibir a ganância da atual sociedade, que explora a ciência para atingir objetivos específicos, sem medir consequências em relação aos riscos. Apesar de filósofos, como Kant, afirmarem que em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples. Que não é necessária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para se ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. A inteligência comum pode ambicionar alcançar o bem tão bem quanto qualquer filósofo pretenda para si. O autor refere ainda que mesmo inexperiente na compreensão do percurso do mundo, incapaz de preparar-me para os incidentes sucessivos do mesmo, ainda assim posso saber como devo agir em conformidade com a lei moral (JONAS, 2006).
Na realidade, os cientistas, que habitualmente preferem dedicar-se a seus microscópios e desprezam as reflexões filosóficas, permanecem distantes da realidade humana e social do homem, conforme o próprio Einstein chegou a dizer, que avaliados pela ética de filósofos e epistemológicos sistemáticos, os cientistas não passariam de “uns oportunistas sem escrúpulos”. A verdade é que, do ponto de vista sociológico, o discurso científico é hoje, para o cidadão comum, um discurso obscuro no seu conjunto (SIQUEIRA, 1998).
Para frear a liberdade e a imprudência humana na sociedade científica a imposição de limites éticos faz-se necessária. O modo de impor estes limites é amplamente discutido pela sociedade internacional. A transferência do discurso ético para o universo jurídico é a solução desejada pelos filósofos contemporâneos, especialmente pela eficácia que o direito é capaz de determinar para os princípios éticos.
Existe uma interdependência necessária entre ética e direito. São dois âmbitos do conhecimento sobre o agir humano. O enfoque e a metodologia divergem, mas o objetivo é o mesmo. Um vê a ação humana referida à intencionalidade da consciência moral e o outro toma em consideração os resultados externos de uma ação avaliados por um ordenamento legal. Tendo o mesmo objeto de análise, as duas ordens do conhecimento prático exigem-se mutuamente. A ordem jurídica remete à ordem moral para fundamentar a validade e a vigência das normas e dos processos jurídicos e justificar os valores que sustentam a ordem constitucional. Ordenações jurídicas que não têm base ética não conseguem impor-se. A ordem moral remete à ordem jurídica para ter força jurídica e eficácia prática no sentido de possibilitar a convivência social e educar para as exigências éticas de uma ordem democrática. Princípios éticos que não recebem uma configuração jurídica são inócuos na incidência sobre a realidade (JUNGES, 1999, p.123).
Neste sentido, surge o questionamento se é legítimo legislar sobre a prática científica. Provavelmente, os cientistas oportunistas e inescrupulosos referidos por Einstein teceriam longas considerações sobre a premissa de que a pesquisa científica deveria ser inteiramente livre, não se devendo opor qualquer barreira ao desejo de conhecimento. No entanto, na ótica das responsabilidades do bem e do melhor, referidas por Hans Jonas, há a necessidade de norteadores comuns para a sociedade tecnocientífica, que necessariamente devem ter como base a ética, e parâmetros que assegurem a proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente.
Diante da necessidade destes norteadores comuns, o presente artigo propõe um exercício inverso, verificando-se, na Lei de Inovação Brasileira (Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004), considerada como o marco da inovação no Brasil, a existência de parâmetros éticos que determinem e assegurem a proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente.
A Lei Federal de Inovação, conforme refere o seu art. 1º, estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação e ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do País, nos termos dos arts. 218 e 219 da Constituição.
No atendimento aos preceitos da Constituição Federal de 1988, a Lei de Inovação, atende os propósitos do desenvolvimento científico, de um lado, e os propósitos da pesquisa e capacitação tecnológica, de outro lado.
A CF/88 reconhece e identifica duas formas de pesquisa: a pesquisa científica básica, art. 218, parágrafo primeiro, recebendo tratamento prioritário do Estado, não dirigida à solução de questões técnicas específicas vinculadas à atividade econômica e tendo como objetivo o bem público e o progresso das ciências; e a pesquisa tecnológica, art. 218, parágrafo segundo, voltada preferencialmente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. Com este fito o Estado apoiará a formação e a capacitação dos necessários recursos humanos – art. 218, parágrafo terceiro (VEGA GARCIA, 2008, p. 110).
Assim, enquanto que a pesquisa científica é direcionada para toda a humanidade e para o progresso científico, a pesquisa tecnológica é um instrumento de desenvolvimento social, atendendo à população na medida em que resolva, prioritariamente, os problemas brasileiros, voltando-se para o desenvolvimento econômico nacional e regional.
Neste sentido, deve-se ressaltar que o enfoque principal da Constituição Federal é o interesse e a solução dos problemas brasileiros, assim como o efetivo desenvolvimento nacional e a diminuição das diferentes e enormes desigualdades e contrastes sociais e espaciais, além da defesa intransigente da soberania política (VEGA GARCIA, 2008).
Neste contexto, o conteúdo da Lei Federal de Inovação destaca alguns objetivos específicos, como: a) constituição de um ambiente propício às parcerias estratégicas entre as universidades, institutos tecnológicos e empresas, b) estimulo à participação de instituições de ciência e tecnologia no processo de inovação, c) normas de incentivo ao pesquisador-criador, d) incentivo à inovação na empresa e e) apropriação de tecnologias.
Além dos objetivos acima, BARBOSA (2006) apresenta outros, denominados de extrajurídicos, e com o propósito de incentivar a inovação, visando o aumento da competitividade empresarial nos mercados nacionais e internacionais:
a) Possibilitar o uso do potencial de criação das instituições públicas, especialmente universidades e centros de pesquisa, pelo setor econômico, numa via de mão dupla;
b) Facilitar a mobilidade dos servidores públicos, professores e pesquisadores, da Administração para a iniciativa privada e para outros órgãos de pesquisa; e
c) Para tais fins, alterar a legislação de pessoal, a de licitações, e prever certos subsídios e incentivos fiscais.
A estrutura da Lei de Inovação, segundo FEKETE (apud ABRÃO, 2006), parece adequada para atingir os propósitos de criar um ambiente favorável à inovação e à cooperação, possuindo poder educativo de difundir uma nova cultura com relação à propriedade intelectual, tanto na proteção quanto na sua implementação no mercado produtivo.
A edição da Lei de Inovação repercutiu de forma positiva em todas as esferas econômicas nacionais, trazendo consigo o objetivo principal de mudar o rumo do desenvolvimento nacional, tentando incutir na mentalidade dos agentes econômicos brasileiros a necessidade do desenvolvimento tecnológico.
No entanto, não há como focar ou vincular a inovação tecnológica somente ao aspecto econômico. Conforme refere BOCCHINO (2010), a pesquisa e o desenvolvimento devem ser direcionados para atender às necessidades humanas e desta forma cumprir um importante papel no desenvolvimento social e tecnológico do país. Assim, a inovação, necessariamente, deve ter como base e princípio a necessidade e manutenção do ser humano, há necessidade de observar o aspecto econômico e o aspecto social.
Neste contexto, a Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004, em seu art. 2º, IV, define a inovação como a introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços. Importante salientar a lição de BARBOSA (2011), que refere que a inovação será um passo no procedimento que desde a criação até o uso social desta; representa o estágio em que essa criação chega ao ambiente produtivo ou social ou, também, a chegada de uma utilidade no ambiente social, com ou sem efeitos no sistema produtivo. Salienta ainda BARBOSA (2011, p. 41), que, ainda “que imprecisa, a definição é crucial para definir o alcance, limites e interpretação da Lei. O fim de suas normas é propiciar esse processo que leva as criações tecnológicas ao estágio de utilidade social”.
Outrossim, conforme ressalta GRIZENDI (2011), a definição de inovação na Lei de Inovação federal é genérica, e, ao citar também o ambiente social e serviços, a lei federal tenta estender a lei à inovação não necessariamente tecnológica, porém, sem explorar tal viés ao longo dos seus artigos.
Considerando o conceito de inovação extraído da Lei Federal de Inovação percebe-se claramente que o foco está integralmente voltado ao aspecto industrial e, consequentemente, econômico. A Lei não contempla qualquer referência ao ser humano ou ao meio ambiente no seu conceito de inovação e, mais preocupante, não menciona, igualmente, nenhum aspecto relacionado com a proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente em todo o seu teor.
A omissão da Lei Federal de Inovação, não prevendo qualquer preocupação com a promoção e proteção do ser humano e do meio ambiente, expõe claramente as preocupações apontadas nos capítulos anteriores, quais sejam: 1) a possibilidade de inovação sem limites; 2) a ausência de limites éticos para a inovação.
Entretanto, a omissão da Lei também não quer dizer que não existam parâmetros éticos para o processo de inovação brasileiro, pois há direitos fundamentais constitucionalizados que nos condicionam este suporte ético. O que é necessário apontar, é que a Lei Federal de Inovação poderia ou, talvez, deveria ser o norteador comum, referido no capítulo anterior, que com base na ética determinaria os parâmetros de proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente.
Neste sentido, conforme refere NEDEL (2000), a humanidade tem de reinventar, a cada passo, o seu caminho, redirecionar o seu agir, agora inclusive por uma questão de sobrevivência, ante as múltiplas perspectivas, nem todas promissoras, que o avanço do saber teórico e prático lhe propicia, sendo que não há tempo a perder, as discussões éticas necessitam tomar o centro das discussões no universo jurídico da sociedade tecnocientífica. Além disso, ENGELMANN (2011) sustenta, com razão, que o ser humano e o meio ambiente são dois elementos inegociáveis na criação dos marcos regulatórios e na gestão da inovação. Conforme exposto anteriormente, o processo de inovação, em diversos aspectos, pode direcionar riscos para o ser humano e o meio ambiente, motivo da preocupação necessária com a proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente.
O momento de se estabelecer a relação entre o presente e o futuro, para que se possa estabelecer um sistema de deveres e direitos, é agora. As políticas públicas, conforme refere BARRETTO (2013) com base no imperativo de Hans Jonas, devem ser trabalhadas, tendo em vista o longo prazo, mas que ao mesmo tempo sejam aplicáveis no presente, tempo real para decidir o futuro. Deste modo, e para que assim possa ser feito, não somente os governantes, mas principalmente os legisladores tem papel fundamental no estabelecimento desta nova ética. O legislador deverá aspirar ao estabelecimento duma forma política viável que tenha duração, se possível inalterada, promovendo e zelando o melhor para o futuro.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução tecnológica do século XX não teve precedentes na história da humanidade. Num período curto, a técnica teve um desenvolvimento ímpar, gerando inúmeros benefícios à sociedade internacional. No entanto, junto com os resultados positivos, a evolução tecnológica também expôs diversos riscos, sendo que alguns representam uma grande preocupação para a manutenção do ser humano no planeta.
No atual estágio da técnica, concedendo superpoderes ao homem, os riscos gerados na sociedade tecnocientífica tem o potencial de comprometer a existência do ser humano. A pretensão e ganância do homem, explorando a técnica ao máximo para atingir o desenvolvimento econômico e o poder, deixaram em alerta a humanidade sobre a necessidade de uma reflexão ética na nova sociedade tecnocientífica. A técnica sem limites trouxe graves problemas e riscos evidentes ao ser humano e ao seu meio, gerando uma preocupação com os atuais parâmetros éticos (não) utilizados no processo de inovação científica e tecnológica.
Os atuais limites éticos estão sendo ultrapassados diante do veloz progresso científico e tecnológico. Uma nova reflexão é necessária, o homem precisa de limites para a sua técnica, aparentemente, sem limites. Neste contexto, alguns autores como Hans Jonas e Vicente P. Barretto, afirmam que há necessidade de parametrizar o risco no extremo, gerando o que chamam de heurística do temor ou do medo. Ou seja, há necessidade de a sociedade tecnocientífica temer os riscos que gera através de seu processo de inovação.
No atual estágio, não há mais espaço para discussões sobre a liberdade da pesquisa científica ou tecnológica, no sentido de a estipulação de limites éticos inibir o desenvolvimento da técnica. A sociedade tecnocientífica transformou-se efetivamente na sociedade do risco, referida por Ulrich Beck, não tendo mais espaço e tempo há perder com discussões supérfluas, pois, agora, é o futuro do ser humano que está em jogo.
No entanto, a construção de um limite ético para a sociedade tecnocientífico não é uma tarefa simples, mas exige uma profunda reflexão, que, necessariamente, deve consagrar, além do conteúdo ético, a posição da própria técnica. A determinação de parâmetros éticos, além de não inibir a técnica, deve ter como base a real necessidade do ser humano no presente conjugada com a dosimetria dos riscos para as gerações futuras. Ou seja, tudo que o homem necessita não deve prejudicar as gerações futuras.
Nesta lógica, há de se concordar com a maioria dos filósofos, que definem o próprio ser humano e o seu meio ambiente como os parâmetros de proteção e promoção que devem nortear o novo discurso ético. Além disso, também defendem a positivação desta nova realidade ética da técnica na era da sociedade tecnocientífica.
Diante destas constatações, o presente artigo propôs um exercício de avaliação da atual Lei Federal de Inovação - Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004. Nosso marco legal da inovação no Brasil, infelizmente, não contempla qualquer menção em relação à proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente. Na realidade, a Lei apresenta um conteúdo totalmente técnico e direcionado exclusivamente para o aspecto econômico da inovação, destoando do discurso dominante, que direciona a necessidade dos legisladores observarem, os limites éticos da técnica, justamente para conseguir fixar norteadores necessários para os processos de inovação vinculados à alçada do instrumento legal.
Apesar de ser difícil compreender a posição e opção do legislador, omitindo-se em relação à qualquer limite ético à técnica, também é compreensível, haja vista que a legislação é complementar e recepciona os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal do Brasil. No entanto, perdeu-se uma ótima oportunidade de expor reflexões éticas, no âmbito jurídico, como limites à inovação, pois, conforme refere Wilson Engelmann, o ser humano e o meio ambiente são condições inegociáveis.
REFERÊNCIAS
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nota
[1] Na sua concepção, JONAS (2006, p. 35) afirmava que todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era – à exceção da medicina – eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a techne, como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engajam-se o máximo de esforço e a participação humanos.