Agentes do Estado podem ingressar na casa de uma pessoa, desde que presentes os pressupostos exigidos na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional.
A Constituição Republicana de 1988 trouxe a previsão de direitos fundamentais e garantias para que eles fossem respeitados pelo Estado e pelos demais membros da sociedade.
Piovesan[1] ensina:
A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil. A Carta de 1988, como marco jurídico da transição ao regime democrático, alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, estando dentre as Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à matéria.
Dentre os direitos fundamentais, há o de inviolabilidade da residência, o qual está previsto no art. 5º, XI da Constituição da República. Este direito foi consagrado como clausula pétrea constitucional, a fim de resguardar a intimidade do lar das pessoas.
Cretella Júnior[2] leciona:
Ao lado da segurança, que lhe permite agir de maneira tranquila e de caminhar para onde queira, o individuo usufrui ainda de outra liberdade pública fundamental, que a doutrina chama de e liberdade de intimidade, traduzida, na prática, de um lado, pela proteção ao domicilio, de outro lado, pelo sigilo da correspondência e, de outro, por fim, no direito ao resguardo à intimidade e à própria imagem.
Os direitos fundamentais não são absolutos e admitem flexibilização. No caso da inviolabilidade da residência, a própria Carta Magna prevê as exceções em que se pode entrar em casa alheia sem autorização expressa ou tácita do morador.
O art. 5º, XI, da Constituição da República, prescreve: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Silva Neto[3] doutrina:
Contudo, o direito individual sob exame não é absoluto, pois o art. 5º, XI indica as hipóteses em que poderá alguém penetrar em residência ou local equivalente à “casa”: a) flagrante delito ou desastre; b) para prestar socorro; c) durante o dia, por determinação judicial.
A residência das pessoas está protegida pelo texto constitucional, e a entrada nela fora das hipóteses excepcionais e sem consentimento do morador configura a prática de crime. No direito brasileiro, a conduta típica está prevista no art. 150 do Código Penal.
Mirabete[4] ministra:
Em consonância com essa regra constitucional, no art. 150, do CP, prevê-se o crime de violação de domicílio: “Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena: detenção, de um a três meses, ou multa. O nomem juris é impróprio porque não trata o artigo da proteção apenas ao domicilio, no seu conceito de direito civil, mas a todo lugar de habitação.
Uma das exceções à inviolabilidade da residência é o cumprimento de ordem judicial. A legislação processual penal, que é de interesse deste estudo, institui a busca e a apreensão domiciliar, nos arts. 240 e seguintes do Código de Processo Penal, a fim de que o Estado possa ingressar na casa de alguém para arrecadação de provas.
Capez[5] preleciona:
A prova não é eterna: se for pessoal (CPP, art. 240, § 2º), a pessoa pode falecer ou tornar-se desconhecido seu paradeiro; se for real, o tempo poderá alterá-la ou destruí-la. Logo, a medida cautelar de busca e apreensão é destinada a evitar o desaparecimento das provas.
A diligência para a arrecadação de provas, para localização de criminosos e para as demais finalidades previstas na Lei poderá ser cumprida pela Autoridade Policial ou pelos demais agentes da segurança pública, que deverão estar munidos do mandado de busca e apreensão e somente poderão cumpri-lo durante o dia.
Silva e Neto[6] disciplina:
A quarta e ultima circunstância autorizativa à violação do domicilio se refere ao cumprimento de ordem judicial, durante o dia. Com tal previsão, impediu o legislador constituinte originário que autoridades administrativas, a título de exercício do poder de polícia, por mais ponderosos que possam ser os motivos articulados, ingressem em residência ou em qualquer local fechado. A partir da Constituição de 1988, exceção feita às situações de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro, o poder público só poderá entrar em tais locais durante o dia e, mesmo assim, munido do imprescindível mandado judicial.
Por ocasião do cumprimento do mandado de busca e apreensão ou da prisão em flagrante delito no interior de casas, os policiais arrecadam bens ilícitos, drogas e armas. Entretanto, comumente, os agentes apreendem outros bens móveis que estavam na residência, como aparelhos de telefone celular, televisores, aparelhos de DVD, entre outros, sob o fundamento “de serem de origem duvidosa ou possivelmente provenientes de troca por entorpecentes”.
Esta prática configura abuso do direito, por não possuir respaldo no ordenamento jurídico e afrontar institutos protegidos pela legislação civil.
A conduta dos agentes policiais não enseja cometimento do crime de abuso de autoridade, já que aquela não está prevista na lei 4.898/65. Haveria a realização de crime por parte dos policiais caso houvesse previsão expressa na legislação, por conseguinte, a conduta é atípica.
Prado[7] determina:
De seu turno, a tipicidade é a subsunção ou adequação do fato ao modelo previsto no tipo legal. É um predicado, um atributo da ação, que a considera típica (juízo de tipicidade positivo) ou atípica (juízo de tipicidade negativo). Daí ser a ação típica um substantivo, isto é, ação já qualificada ou predicada como típica (subsumida ao tipo legal). A tipicidade é a base do injusto penal.
Todavia a mencionada ação contraria a legislação, pois há transposição do limite do exercício regular do direito pelos agentes da segurança pública, portanto aquela pode receber a adjetivação de abusiva.
Donizetti e Quintella[8] prescrevem:
O artigo 187 cuida ainda de outra espécie de ato contrário a direito, que bem se pode subsumir do art. 186, mas que o legislador, prudente, preferiu disciplinar separadamente: trata-se do caso de abuso de direito. O sujeito que, ao exercer seu direito, nos termos do Código Civil, " excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", e causa dano a outrem, comete ato contrário a direito.
A transferência propriedade de bens móveis ocorre pela tradição, que é a efetiva entrega do bem pelo alienante ao adquirente. Para a modificação da propriedade pela tradição exige-se que o transmitente seja o legitimo proprietário.
Gonçalves[9] preleciona:
A aquisição do domínio de bem móvel só ocorrerá se lhe seguir a tradição. Esta consiste, portanto, na entrega da coisa do alienante ao adquirente, com a intenção de lhe transferir o domínio, em complementação ao contrato. Com essa entrega, torna-se pública a transferência.
Entretanto, mesmo que não haja comprovante de propriedade do bem móvel, a pessoa que está com ele adquiriu a posse pela tradição, logo recebe proteção possessória e somente pode ser despojada mediante ordem judicial. Deste modo, estando os bens móveis em poder de alguém, eles somente poderão ser retirados da pessoa pelos agentes cumpridores do mandado de busca e apreensão se efetivamente estiver comprovada a origem ilícita.
Venosa[10] ensina:
A tradição é, pois, modo derivado de apossamento da coisa. A tradição efetiva ocorre quando materialmente a coisa é deslocada para a posse de outrem. Tem, portanto, conteúdo real. Tradição significa entrega. Há tradição quando uma pessoa voluntariamente entrega uma coisa a outra que voluntariamente a recebe.
Frisa-se que, ainda que os bens móveis sejam provenientes de crime, a propriedade estará consolidada em face do possuidor se tiver ocorrido o transcurso do prazo da usucapião extraordinária, prevista no art. 1261 do Código Civil, a qual convalesce todos os vícios de origem na aquisição da posse.
Diniz [11]prescreve:
Quando se tiver posse ininterrupta e pacifica, pelo decurso do prazo de 5 anos, sem que haja necessidade de provar justo título e boa-fé, o possuidor adquirirá o domínio do bem móvel por meio da usucapião extraordinária ( CC, art. 1261; Ciência Jurídica, 37:131; STF, Súmula 445). P.ex., posse incontestada de veículo furtado por mais de 5 anos pode levar a sua aquisição por usucapião extraordinária.
Destaca-se que a usucapião não necessita de declaração judicial de reconhecimento para que produza a transferência da propriedade. A aquisição do domínio ocorre com o transcurso do período de posse com a presença dos requisitos legais.
Venosa[12] explica:
O direito é obtido pelos requisitos de tempo e posse mais boa-fé e justo título. Independe de sentença, O juiz limita-se a declarar situação jurídica preexistente. Fosse a sentença necessária para completar o direito, teria efeito constitutivo.Não é o que ocorre. Completado o prazo com os demais requisitos, o usucapiente já é proprietário. A sentença é decreto judicial que reconhece direito preestabelecido.
A ação policial que haverá de acontecer no interior de uma residência deverá pautar-se, previamente, em ditames constitucionais e legais para que ocorra.
Não é apenas a entrada na casa alheia que deverá observar o ordenamento jurídico, mas dentro da casa deverão ser respeitados institutos consagrados no ordenamento jurídico.
Diante do exposto neste estudo, conclui-se que os policiais, no cumprimento da ordem de busca e apreensão ou por ocasião da prisão em flagrante delito de autores dentro de uma casa, não podem arrecadar bens móveis sem que estes estejam previamente definidos como de origem criminosa ou que a posse deles seja vedada pela legislação, sob pena de ofensa ao direito de propriedade ou à posse.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e O Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 52/53
[2] CRETELLA JUNIOR, José. Liberdades Públicas. São Paulo: Bushatsky, 1974, p.77/78
[3] SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.526/527.
[4] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, v. II, 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.197.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p.232
[6] SILVA NETO, Op. Cit., p.527.
[7] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 1, 7ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2007, p.352.
[8] DONIZETTI, Elpidio. QUINTELLA, Felipe. Curso Didático de Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2012, p.169
[9] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 5, 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, 303.
[10] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo. Atlas. 2014.p.87.
[11] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 4, 24° ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.325.
[12] VENOSA, Op. Cit., p.212/214