Sumário: 1. Considerações preambulares. 2. As falhas do antigo direito comercial. 3. A teoria da empresa no direito italiano. 4. Relevância jurídica do estabelecimento e sua proteção legal. 6. A posição do empresário na teoria geral da empresa. 5.1. Caracterização do empresário. 5.2. A sociedade empresária.
1. Considerações preambulares
Tem-se afirmado, com boa dose de razão, que inexiste um conceito unitário de empresa. Essa negativa, feita em 1943, ensejou a Alberto Asquini explicar porque o legislador italiano não atribuiu uma definição jurídica à empresa. Hoje sabemos que o legislador brasileiro também não o fez, embora os códigos italiano e brasileiro tenham adotado a teoria da empresa como uma de suas linhas mestras, responsável, dentre outras alterações importantes, a serem vistas no correr deste estudo, pela unificação do direito privado. Na seqüência de sua peroração, Asquini justifica que o conceito de empresa faz parte de um fenômeno econômico poliédrico, que teria, no aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram . (1)
Assim, a falta de definição legislativa deriva da diversidade das definições de empresa, segundo a multiplicidade de perfis do fenômeno econômico. Boa parte da celeuma decorre do aparente desaparecimento do secular direito comercial, que teria perdido o seu caráter especial ante o ordenamento mais abrangente do direito civil, que comportaria, na Itália, até mesmo o desaparecimento do direito trabalhista. Fechava-se a ciência do direito aos usos e costumes que deram vida ao direito comercial.
Mas foi possível abrir espaço para um direito das empresas, mesmo que não se constitua ramo autônomo do sistema jurídico, como se tem apregoado, não sem um certo desapontamento . (2) As empresas seriam, assim, objeto do direito de empresa, sem que se tenha de desprezar, nem de desqualificar cientificamente os diversos ramos da ciência jurídica (o direito constitucional, o direito administrativo, o direito tributário, o direito econômico, o direito societário, o direito ambiental, o direito do consumidor, etc.). O direito de empresa seria, desse modo, um direito interdisciplinar.
Coutinho de Abreu enfrentou esse e outros problemas relacionados ao tema da empresa no Direito, buscando e justificando um caráter de empresarialidade nas relações jurídicas praticadas no âmbito das empresas . (3) Essa discussão remonta à tentativa de atribuir cientificidade ao conceito de ato de comércio . (4) Abreu, no entanto, deixou-se conduzir pela tentativa de separar a empresa em face de seu objeto e de seus sujeitos jurídicos, concluindo que o objeto estudado não se constituiria ramo jurídico autônomo do sistema jurídico, preservando-se a heterogeneidade dos vários ramos do direito envolvidos que, por sua vez, preservariam sua unidade e sua força.
Nós, no entanto, podemos nos jactar da existência do direito de empresa. Como consignado na introdução deste capítulo, o projeto do novo Código Civil brasileiro, na versão modificada pela Câmara dos Deputados, ao final apresentado para a sanção do Presidente da República, abriu espaço para o Livro II, denominado "Do Direito de Empresa".
É bom que se esclareça que, como um dos autores do anteprojeto e coordenador da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, Miguel Reale preferia o título "Da atividade negocial", constante da proposta até sua modificação na Câmara dos Deputados, como sempre deixou claro . (5) Acentua Reale, ainda, justificando o novo Código Civil brasileiro (CCB), "a reconhecida insuficiência de um Código Comercial, de 1850, do qual restam bem poucas normas em vigor", condenando a existência, no final do século XX, de um código imperial:
... outro elemento determinante nas razões da atualização de todo o nosso direito obrigacional, o qual, como bem assinala Sylvio Marcondes, refere-se, hoje em dia, tão-somente pelo que dispõe o Código Civil, com a ajuda da doutrina, da jurisprudência e dos costumes, além de freqüente apelo ao direito comparado, a fim de serem preenchidas as inúmeras lacunas existentes . (6)
Na exposição de motivos do seu anteprojeto, Miguel Reale apressou-se em justificar a inclusão, no Código Civil (CC), da disciplina da atividade negocial, mas não demora em explicações acerca do desaparecimento de um corpo autônomo de leis próprias do comércio. Diz ele, sobre a diretriz de ordem sistemática do anteprojeto, que segue uma unidade lógica, resultado da tentativa de realizar a unidade do direito das obrigações:
Não uma unidade do direito privado, porque esta unidade não foi posta como alvo a ser atingido; o projeto realiza apenas a unidade da parte geral das obrigações, consagrando, no Código, aquilo que é duradouro, inclui na legislação civil aquelas regras dotadas de certa durabilidade .(7)
Hoje, indiscutivelmente se constata o acerto da sistemática adotada: foram necessários 26 anos de tramitação até a aprovação do texto final. Pode-se imaginar a demora para se implementarem alterações, tão necessárias e urgentes no sistema de direito privado para atender a contingências de mercado (v.g., as mudanças periódicas da legislação de locações residenciais, ora para preservar contra abusos do proprietário na retomada do imóvel, ora para adequar-se à realidade do mercado imobiliário). Nesta sua preleção, logo em seguida à aprovação do texto do novo CCB na Câmara dos Deputados pela primeira vez, com emendas aí apresentadas, Miguel Reale justificava que, uma vez unificado o direito das obrigações, a conseqüência imediata era "levar na devida conta a estrutura da atividade empresarial, antes chamada atividade negocial, e que, ao sair da Câmara, passou a ser denominada atividade empresarial: ela não é senão uma especificação do direito obrigacional". Disse ainda que o direito de empresa, na estrutura do código, é uma projeção natural e imediata do direito das obrigações, razão pela qual o livro Do Direito de Empresa surge como conseqüência imediata do direito das obrigações. Entende-se, outrossim, pela palavra empresa, não uma entidade; mas, ao contrário, a atividade empenhada na produção, circulação e distribuição da riqueza. É usada no sentido de atividade, que ao se estruturar, tendo por fim obter um resultado de natureza econômica, dá origem ao direito de empresa, que é, por conseguinte, uma continuação imediata – como que uma parte complementar, no dizer de Reale – do direito das obrigações .(8)
A empresa, assim, entra para o direito positivo no País por força da necessidade de se estruturar a atividade econômica voltada à produção ou à circulação de bens ou serviços, reconhecendo, efetivamente, o que a doutrina de há muito preconiza como uma necessidade para a modernização do direito comercial. Na verdade, de alguma forma, a figura da empresa já se encontra enraizada entre nós, sob o bafejo da doutrina italiana, como se demonstra na seqüência.
2.As falhas do antigo direito comercial
A necessidade de desenvolver uma teoria, como a teoria da empresa, deve-se à vagueza do conceito de atos de comércio, adotado pelo Código Comercial brasileiro (CCom) como elemento qualificador da atividade comercial, que, nessas restritas condições, os submete ao regime de direito comercial. É o que decorre do art. 4º do CCom. Embora houvesse uma constante preocupação dos comercialistas (que durou mais de um século!), em formular uma teoria unitária para os atos de comércio, a tarefa se notabilizou como um martírio para o legislador e um enigma para a jurisprudência.
Cumpre lembrar que Alfredo Rocco, prestes a abandonar a pretensão de formular tal conceito, passou a sustentar que qualquer definição de ato de comércio seria sempre um conceito de direito positivo, sugerindo, enfim, que a lei o fizesse, porque eles, autores, não tinham contribuição própria ou critério científico válido a revelar . (9) Sob o ponto de vista de J. X. Carvalho de Mendonça, mesmo sendo ele próprio um estudioso do problema, as teorias para determinação científica dos atos de comércio, até então conhecidas, eram todas deficientes e inexatas. Disse que "os atos de comércio apresentam consideráveis matizes e prendem-se tão estreitamente às relações da vida civil que é difícil, muitas vezes, caracterizá-los devidamente". E, em arremate, que, "por esse motivo, não vingaram as definições de atos de comércio que tentaram escritores de nota; todos não têm resistido à crítica" . (10)
Mesmo não encontrando na concepção de empresa, no início, conteúdo jurídico bastante para sua apreensão pela ciência jurídica, todos os autores estrangeiros e brasileiros discorreram sobre as dificuldades de se estabelecer as bases da teoria dos atos de comércio, necessária para aplicação das normas ditadas pelo legislador para regular especialmente a atividade comercial . (11) Aos poucos a tentativa foi sendo abandonada, desenvolvendo-se a noção de empresa, senão menos difícil de ser conceituada, prestava-se para enquadramento da atividade econômica organizada, independente de sua qualificação comercial ou civil.
Eunápio Borges, lembrando Escarra, dentre outros autores, parte do princípio de que a empresa é a repetição profissional de atos de comércio, a qual repousa sobre uma organização preestabelecida, destinada à sua prática. Seria uma noção construtiva, de lege ferenda, para orientar a reforma da antiga legislação mercantil e, dessa maneira, abandonar o ato de comércio isolado. Serviria, outrossim, para a caracterização do ato de comércio (e não este para caracterizar a atividade) e identificação da matéria comercial, opinião defendida por Mossa, na Itália, e Garrigues, na Espanha . (12)
Ainda assim, sabe-se que o legislador brasileiro prestigiou, além do ato de comércio em si, a sua prática reiterada e com objetivo de lucro, noções que a doutrina consolidou a partir do Código Comercial francês, de 1807. De fato, no direito brasileiro o ato de comércio apto a caracterizar a sujeição ao CCom nunca foi o ato isolado. Na codificação de 1850 – tanto no CCom quanto no Regulamento n. 737 – valorizou-se sobremaneira o conceito e abrangência do termo mercancia, ou seja, o exercício de profissões consideradas de natureza mercantil, caracterizadas justamente pela reiteração na prática de atos de comércio, no que viria a ser chamado, bem mais tarde, de atos de massa. Isso, notadamente, para justificar a existência de um contrato informal, próprio do dinamismo do comércio, em lugar do formalismo comum aos atos civis e dos praticados entre empresas como meio para consecução de seus fins.
Defensor do abandono da teoria do ato de comércio, Eunápio Borges assim se posicionou a respeito:
Para tornar bem claro que a mercancia, a que se refere o art. 4º do Código e o art. 19 do Regulamento n. 737, não é sinônimo de ato de comércio, mas de profissão mercantil, porque, ao passo que o art. 191 exige, como condição sine qua non para que a compra e venda sejam mercantis, que pelo menos um dos contratantes, comprador ou vendedor, seja comerciante, o art. 19, § 1º, do Regulamento n. 737 considera mercancia `a compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes` destinados à revenda ou à locação, sem fazer a mesma exigência do art. 191 do Código ([14]). (13) (14)
Na mesma esteira, desenvolvendo as bases para atualização do direito comercial em torno da figura da empresa, Ruy de Souza afirma que "a elaboração de um direito comercial fundado na empresa como seu objeto, revoluciona os processos tradicionais e possui o condão de eliminar os antagonismos teóricos e de minimizar as exceções" . (14) Com efeito, da identificação da natureza comercial da atividade nasce a submissão ou não à falência, ou o gozo dos benefícios da concordata, além da proteção específica do comerciante, por disposições do CCom, somente a eles aplicáveis. Essas dificuldades, na verdade, ensejam a busca de novas formas de se encarar o problema, com novas idéias e não interpretações sutis, mediante a reanálise dos conceitos fundamentais – sugestão veemente do grande Ascarelli. No direito estrangeiro, tem-se o resultado do aprendizado dos seus estudiosos, que saíram à frente. E daí a se prestigiar a teoria da empresa foi um passo... que os juristas levaram mais de um século para completar.
Foi somente no século XX que se desenvolveu uma outra noção, apta a definir a matéria comercial. Se as buscas não tivessem sido incessantes (disso dá conta os inúmeros tratados de direito mercantil), não seria necessário, nem teria efeito prático algum, hoje, estar-se deslindando as idas e vindas nesse espinhoso caminho. O passo foi gigantesco, todavia: a teoria da empresa pretende a transposição para o mundo jurídico de um fenômeno que é sócio-econômico: a empresa como centro fomentador do comércio, como sempre foi, mas com um colorido com o qual nunca foi vista.
Salienta Betyna de Almeida a existência de duas grandes correntes em que se dividiu a doutrina sobre a teoria da empresa nos primórdios de seu aparecimento: uma defendendo a simples transposição da noção econômica para o plano jurídico; a outra, uma tradução desta noção em termos jurídicos. E lembra, acertadamente, que o projeto do novo CCB foi elaborado sob inspiração direta do direito italiano, adotando expressamente a teoria da empresa como modelo de disciplina da atividade econômica, inerente, portanto, à primeira grande corrente. A evolução da teoria para a necessidade prática de sua aplicação, todavia, considera a empresa, juridicamente, sob determinados perfis, o que significa a transposição para o direito de algo apenas apreciável na Economia, em conformidade com o afirmado pela segunda grande corrente . (15)
Na sua percuciente análise da teoria da empresa no Brasil, no intermédio entre a publicação do Código Civil italiano (CCit) de 1942 e a apresentação do anteprojeto de Miguel Reale, embrião do recém sancionado CCB, Ruy de Souza não só teve ousadia para posicionar a empresa "econômica" ante o Direito, como para afirmar que seu campo foi e sempre será o da Economia. São suas palavras:
... o Direito deixaria de ser, como a tradição o formou, um direito do comerciante e dos atos de comércio, para alcançar limites muito mais largos, acomodando-se à plasticidade da economia política . (16)
No desenrolar dos argumentos de sua tese, renasce, como novos rumos da doutrina, o sonho acalentado de economia e empresa estarem associados pelo direito de empresa:
A disciplina jurídica do mundo econômico, ou do mundo dos negócios, como querem outros, orienta-se sempre de encontro a uma tendência política e possui, seja qual for o rumo, uma clara influência de castas econômicas ou de ideologias interessadas . (17)
Mais adiante, Souza insiste, categoricamente, voltado para o que se pensa ser o novo norte do direito comercial:
Sendo a economia o chão dessa realidade social, que o direito deve adaptar, nada mais haverá em se pretender a justificação de um direito especial econômico, que se constituiria à custa dos retalhos das outras disciplinas jurídicas de substratos econômicos, ou seria formação nova, estruturada nas relações de direito originadas das próprias relações econômicas que se ausentavam das disciplinas tradicionais . (18)
Não seria demais lembrar que nem Souza, nem outro qualquer estudioso, defendeu jamais o desaparecimento do direito comercial; pelo contrário, sempre se lhe reservou papel fundamental na estrutura do direito privado, ora por ser especial em relação ao direito civil, ora por se respeitar sua origem a latere do direito comum, justificado nas possibilidades de sua pronta adaptação, à medida que novos negócios vão surgindo e se precise de normas comuns, especialmente no novo comércio internacional, para interpretação e aplicação de regras particulares, não obstante as fronteiras dos países envolvidos serem soberanas e respeitadas. De fato, o próprio Ruy de Souza assegura que o direito comercial é, na realidade, o direito dos negócios, ou seja, o direito das atividades econômicas, pondo em evidência o exclusivismo do princípio da unidade, que permite justificar o agrupamento, em uma única disciplina, destas diversas regras . (19)
Outros autores nacionais não demonstram maiores preocupações com a unificação promovida no corpo legislativo disciplinador do direito privado. Técnica e didaticamente, o direito comercial tem seu espaço preservado por suas origens históricas, seu método e sua importância crescente na disciplina das relações profissionais das pessoas, hoje realizadas quase que exclusivamente no âmbito das empresas. É uma nova face do mesmo antigo direito comercial, obrigada a se mostrar jovem e dinâmica, num processo de evolução de acordo com as necessidades econômicas e tecnológicas mais atuais.
3. A teoria da empresa no direito italiano
Conquanto no Brasil não se respeite, como se deveria, os conceitos traçados com muito custo no direito estrangeiro, o certo é que a teoria da empresa ganhou, entre nós, prestígio raramente verificado em relação a institutos modernos do direito europeu. Na Itália, desde os primeiros anos do século XX, a empresa é discutida como experiência jurídica, ou seja, como um fenômeno além da sua realidade econômica, que é como ela pode ser vista, fato que no Brasil não se deturpou, embora adquirimos apego às ficções legislativas sem muito perquirir sobre o cabimento, oportunidade e validade do conceito sob análise. (20)
Com efeito, em 1942 o Código Civil italiano incorporou a teoria da empresa – mesmo sem deixar inteiramente satisfeitos os seus mais entusiastas estudiosos, como Carnelutti, Rocco e Vivante, que prontamente se pronunciaram com reservas ou acentuadas críticas. No sistema do Código italiano ainda vigente, pressupôs-se a necessidade de uma figura que se aplicasse a todas as formas de atividades econômicas. A empresa foi, então, introduzida nesse contexto como sendo uma relação entre atividade econômica e organização (art. 2082). Sem muito se deter em conceitos e particularidades, o CCit relegou à doutrina e à jurisprudência a tarefa de examinar os reflexos, no campo jurídico, desses elementos e verificar até que ponto princípios tradicionais como o objetivo de lucro e a habitualidade são fatores determinantes do conceito de empresa . (21)
Na condição de formatador da teoria da empresa, manifestando-se na primeira hora seguinte às dúvidas e indagações formuladas na esteira da novidade adotada pelo CCit, Alberto Asquini considerou as aplicações do conceito sob as diversas óticas possíveis e relevantes juridicamente. Concluiu que a empresa deveria ser conceituada não de modo direto ou linear, mas detida e pormenorizadamente. Nesse contexto, sugeriu a empresa como fenômeno econômico poliédrico, que teria, no aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis: o perfil subjetivo (a empresa como empresário); o perfil funcional (a empresa como atividade empresarial); o perfil objetivo (a empresa como estabelecimento); e o perfil corporativo (a empresa como instituição) . (22)
Asquini, no texto publicado originariamente na Rivista del Diritto Commerciale, apontou na empresa a figura do empresário, denotando o uso da expressão como sinônimo de empresário, e, por outro lado, também a identificava pelo perfil funcional ou dinâmico. A empresa seria a própria atividade empresarial, ou seja, a força de movimento rotacional que implica na atividade empresarial dirigida para determinada finalidade produtiva. Quanto aos seus perfis patrimonial e objetivo, dizia estar revelado pelo estabelecimento ou azienda e pelo mesmo fenômeno econômico, mas projetado sobre o terreno patrimonial, dando lugar a patrimônio especial, distinto, pela sua finalidade, do resto do patrimônio do empresário. Por fim, afloraria, para o corajoso autor italiano, o perfil corporativo: a empresa como instituição, considerada uma organização de pessoas, formada pelo empresário e seus colaboradores (dirigentes, empregados, operários), todos movidos por interesses individuais, mas formando um núcleo social organizado em função do fim econômico comum, qual seja, a consecução do melhor resultado econômico na produção.
Vale notar que o legislador não rendeu fidelidade aos ensinamentos de Asquini, demonstrando às vezes desprezo a alguns dos perfis, em outras oportunidades desconhecendo a distinção por completo. O texto de Asquini principia por revelar que seu autor tinha em mãos não só o novo CCit, como também já conhecia a "desorientação" e a posição discordante "dos seus primeiros comentaristas", como Soprano, Mossa, Carnelutti, Greco e Santoro-Passarelli (cf. nota ao texto original). Portanto, foi escrito cronologicamente depois do código, o que não constitui novidade, dada a ampla divulgação do progetto preliminare elaborado por Vivante. É mais apropriado dizer que o legislador não quis "ouvir" as contrariedades dos analistas e aprovou o texto apresentado. Feito esse esclarecimento, reporta-se a dada passagem de Profili dell´impresa para dizer, com as palavras do autor, que "a noção de empresa entrou no novo CC com um determinado significado econômico, o que não quer dizer que a noção de empresa seja imediatamente utilizável como noção jurídica" . (23)
São palavras de Asquini, traduzidas por Fábio Konder Comparato:
Traduzir os termos econômicos em termos jurídicos é tarefa do intérprete; mas, defronte ao direito o fenômeno econômico da empresa se apresenta como um fenômeno possuidor de diversos aspectos, em relação aos diversos elementos que para ele concorrem, o intérprete não deve agir com o preconceito de que o fenômeno econômico de empresa deva, forçosamente, entrar num esquema jurídico unitário. Ao contrário, é necessário adequar as noções jurídicas de empresa aos diversos aspectos do fenômeno econômico . (24)
O codice civille de 1942, no art. 2.082, caracteriza o empresário como sendo "chi esercita professionalmente un´attività economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi". Não define a empresa, cuja definição os juristas italianos retiram do conceito de empresário – embora com algum reclamo pela omissão legislativa, como visto no texto de Alberto Asquini, a qual os juristas suprem, acentuando ser aquela essencialmente uma atividade econômica, sem interesse jurídico imediato, portanto. Nessa ótica, Giuseppe Ferri assevera que da noção de empresário fixada pelo CCit se deduz a noção de empresa como atividade organizada e profissional (25), o que tem sido bastante, até hoje, para sustentar-se o acerto do código e do comedimento do legislador que deixou espaço bastante para o desenvolvimento da teoria geral da empresa na doutrina.
Nesse sentido, Tullio Ascarelli considera, de um lado, a atividade definida no art. 2.082 e cujo exercício profissional qualifica o empresário, e, de outro, valoriza o conjunto de bens destinados ao exercício de tal atividade. Empresa, assim, diz ele, é a atividade exercida profissionalmente na azienda, amparando os estudos, antes já aprofundados, acerca da teoria do estabelecimento . (26)
Todas as tentativas de remeter o conceito econômico de empresa para o plano jurídico encontraram dificuldades, a ponto de se contentar com a idéia de que a empresa seria o substrato econômico para a atividade juridicamente relevante do empresário, este sim, uma figura de interesse para o direito. Tanto é assim que Antonio Brunetti dizia ser a empresa uma realidade do lado político-econômico, mas do lado jurídico seria uma abstração ("un´astrazione"). Diz esse respeitado autor italiano:
Dal che si vede che l´impresa se dal lato politico-economico è una realtà, da quello giuridico è un´astrazione perchè, riconoscendosi quale organizzazione di lavoro formata dalle persone e dai beni componenti l ´azienda, il rapporto fra le persone e i mezzi di esercizio non si può ricondurre che a un´entità astratta dovendosi in concreto collegare alla persona del titolare cioè all´imprenditore . (27)
Também na mesma linha, Rubens Requião conclui que a empresa apenas é o exercício de uma atividade que surge da ação intencional do empresário em exercitar a atividade econômica. Nasce quando se inicia a atividade sob a orientação do empresário, daí firmar-se o conceito de empresa na idéia de que ela é o exercício de atividade produtiva, da qual não se tem senão uma idéia abstrata . (28) Waldirio Bulgarelli, por seu turno, esclarece que a atividade configura a empresa, como série coordenada de atos destinados a determinado fim, organizados dentro do setor econômico . (29)Nessa esteira, ainda, Oscar Barreto Filho vê na definição a mudança do próprio direito comercial para direito de empresa ou de negócio, expressões que, efetivamente, foram utilizadas no projeto do CCB, finalmente aprovado como Direito da Empresa . (30)
Pois, assim, tanto no direito italiano quanto no brasileiro (ante o novo Código Civil e a legislação esparsa por ele recepcionada), não se reconhece um conceito unitário de empresa, contentando-se nosso legislador, ao contrário do que fazem os juristas há um século, com a noção econômica e a viabilidade de seu reconhecimento nos casos em que isso se faz necessário. Toda discussão culmina, enfim, com a inevitável conclusão de que empresa é um fenômeno puramente econômico, que pode ser encarado sob diversas facetas. Uma delas foi apreendida pelo legislador italiano e, agora, pelo legislador brasileiro, transformando-se na Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que entrará em vigência no ano de 2003.