1. INTRODUÇÃO
O conceito de boa-fé não existe e não é norma estampada em texto de lei. É, em verdade, figura jurídica trazida desde os primórdios do direito. Dada a sua importância, a boa-fé se consolidou como princípio basilar no direito, haja vista seu sucesso como regra e norma de conduta nas codificações atuais e antigas, da qual é aplicada e defendida de forma bastante segura e será, nesse trabalho, abordada e revista em sua forma breve, sem intenção de esgotamento do assunto, visto ser matéria de descomunal análise.
A origem da boa-fé remonta ao direito romano. Referido sistema se caracterizava como um sistema de fatos ocasionados por ações da sociedade, e não propriamente de direitos. À época, a boa-fé era procedimento perante juízes nos quais se sentenciava com o seu amparo no campo dos negócios jurídicos, em hipóteses que eram escassos textos expressos em leis. Desta forma, corroborava ao magistrado um especial mandato para decidir o litígio de acordo com as circunstâncias concretas.
Ao passar do tempo, a boa-fé é transformada em cláusula geral de direito material com a dominação de todo o arcabouço do sistema jurídico.
A boa-fé também se torna presença no direito canônico, com observância dos valores do cristianismo.
Sem maiores dúvidas, estudos demonstram que é na Alemanha da Idade Média que nasce a “formulação” da boa-fé que perduraria durante muito tempo, o que, posteriormente, migraria para outras codificações.
O Código Civil italiano de 1942 enumerou várias disposições que concretizaram a boa-fé, cunhando um moderno sistema-modelo que se tornou precursor do princípio em outros ordenamentos.
Desse modo, percebe-se que a boa-fé é, sem dúvida, adaptável aos vários momentos de variadas épocas, uma vez que o seu conteúdo é alcançado por juízos valorativos animados pelo tempo, espaço e pessoas que figuram na relação, razão pela qual se encontra na boa-fé a possibilidade de verificação da compatibilidade entre a atuação humana concreta e as supremas e equáveis exigências de justiça.
2. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
2.1. Origem do princípio da boa-fé
A boa-fé se origina na Roma Antiga, e seu objetivo é a fundamentação dos juizes em decisões donde se havia legislação omissa, ou lacunosa. O problema da lacuna reside na falta de lei, já a omissão não necessariamente é a falta, mas sim a falha ou irregularidade na lei.
Estudos hão, onde se diz que o desenvolvimento da boa-fé se deu somente no século XX, pela doutrina alemã, onde se traçou seus contornos atuais, e é nesta linha que preferimos dar seguimento.
No que diz respeito ao direito pátrio, a boa-fé tal como princípio não se mostra recente, havendo estudos desde a época do Código Comercial de 1850, e, posteriormente, ao Código Civil de 1916, conhecido também como Código Bevilácqua.
O Código Comercial de 1850, em seu art. 131, dispunha que:
“sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras.”
Daí a percepção, neste disposito, da nítida função integrativa do princípio basilar da boa-fé, onde as partes relacionadas no vínculo jurídico deveriam dar interpretação não apenas literal ao referido negócio, mas, também, valorar o acordado de conformidade com as circunstancias que o caracterizaram.
Tepedino (2006, p. 15), ao demonstrar a existência implícita da boa-fé no Código Civil de 1916, assinala:
"A despeito da inexistência de preceito genérico que consagrasse o dever de agir com boa-fé no âmbito das relações contratuais em geral, a doutrina apontava a incidência da boa-fé em todo e qualquer contrato. Em obras dedicadas aos contratos, muitos autores definiam, mesmo no sistema anterior, a boa-fé como um princípio cardeal nesta disciplina (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, pp. 20-21; Orlando Gomes, Contratos, p. 42; Arnaldo Wald, Obrigações e Contratos, p. 194, dentre outros)."
Embora permanecesse há muitos anos no direito pátrio, foi somente com o Código de Defesa do Consumidor (CDC) de 1990, e, mais tarde, com o atual Código Civil de 2002, que a boa-fé consolidou-se no âmbito nacional, exercendo visão completamente ampla e sólida na sistemática jurídica brasileira.
2.2. A boa-fé objetiva
A boa-fé objetica guarda intima relação com os elementos de lealdade, honestidade e clareza que o indivíduo condiciona o seu comportamento.
É, na boa-fé objetiva, que o indivíduo tal como o é se resguarda na regra ética, isto é, o dever de guardar fidelidade à palavra exarada ou comportamento praticado, com a intensão e ideia de não fraudar ou abusar ou cometer qualquer ato que prejudique a confança alheia.
É dever concreto em que se avala o respeito mútuo. Em verdade, a boa-fé objetiva é nada mais que conduta comum esperada do homem médio, caracterizada como um dever de agir pautado pela conduta ética, honrada, ligada a fatores externos socialmente estabelecidos e reconhecidos.
Serpa Lopes ao seu tempo assim dizia em publicação datada de 1959:
[...] a ausência de qualquer preceito a respeito da boa-fé não lhe retira o valor intrínseco que ela possui e que domina todas as instituições, a despeito de um silêncio eventual da lei, isto resulta de sua própria natureza e da função social que lhe é reservada (SERPA LOPES, 1959).
Desse modo, fácil se torna verificar que a boa-fé objetiva resulta de fator fundamental onde não necessita de dependência de previsão legal, mas sua mera aplicação é advinda de deveres sinceros estabelecidos numa sociedade razoavelmente sensata que o torna legítima.
2.3. A boa-fé subjetiva
Apresenta correspondência maioral: a boa-fé subjetiva se caracteriza por elementos psicológicos, internos, de crença, de vontade interna, em que é atributo natural do ser humano.
Cabe, aqui, a utilização do consagrado brocado de Rui Stoco (2002, p. 37) de que “a boa-fé constitui atributo natural do ser humano, sendo a má-fé o resultado de um desvio de personalidade”.
Boa-fé subejtiva é, em síntese, a certeza da prática do ato com a isenção de qualquer juízo de culpa, de prejuízo, ou dano a outrem.
2.4. Distinção entre boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva
A boa-fé objetiva está presente em todo o arcabouço jurídico; todavia, vale a exposição da distinção desses dois institutos, para que se possa conceber a ideia valorativa desses dois mecanismos.
Temos na boa-fé objetiva a existência de cooperação mútua, sem que se haja tendências protecionistas, é a relação de lealdado, equidade, e honestidade convicta dos participantes na relação jurídica e notória no senso-comum do homem médio.
Mas se, por acaso, houver a necessidade de pesquisar o que se é ou o que se entende por boa-fé objetiva, fatalmente se chegará a conclusão de que se trata de concepção vaga, onde apenas se avista cunho moral; todavia, tal concepção não é verdadeira, pois a boa-fé objetiva tráz consigo três funções básicas, quais sejam: interpretativa, restritiva de abuso e função criadora. A primeira é vista de modo a examinar o conteúdo jurídico da forma mais benévola possível. A segunda inibi o abuso de direito, impossibilitando o exercício irregular ou ilegal de determinado direito em relação à outra parte na relação jurídica. A terceira e última tem por escopo o dever de informação, de proteção, de esclarecimento.
Logo, a boa-fé subjetiva é determinada pela crença na verdade, onde se é convicto da verdade e ignora até mesmo a presença de vícios.
Embora boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva possuam ideias de probidade, fato é que a primeira não se confunde com a segunda, conforme exposição acima, mas ambas se mesclam no sentido de auxiliar no bem comum da sociedade que é o conjunto de indivíduos que vivem sob as mesmas normas num dado território comum.
3. BEM COMUM
S. TOMÁS DE AQUINO diz que “Bem é aquilo que a todos apetece”. Apetece significa atrair, no qual se há perfeição, assim, o bem comum é buscado pelo agente.
Em filosofia, o bem comum é definido como uma abstração que significa o melhor para todos, um objetivo geral que toda a nação busca em comum. A título de exemplo, podemos citar a palavra "progresso", na qual se desconsidera padrões sociais como se toda a sociedade tivesse o mesmo interesse.
A sociedade não é ficção criada pelos estudiosos, sociedade é o conjunto de pessoas que se relacionam para um fim comum, daí a significação da palavra sociedade, que advém do latim societas, com natureza em “associação amistosa com outros”, onde entende-se por ser o conjunto de pessoas que compartilham propósitos, gostos, costumes etc., e que interagem entre si constituindo uma comunidade.
Conveniente expor que não se discute o predomínio da pessoa como valor, que antecede o próprio ordenamento jurídico. O social, porém, é meio de resguardar o individual. E somente haverá bem comum quando o sistema permitir que as pessoas se relacionem visando ao exercício da liberdade.
Desta feita, temos que o bem comum é o objetivo buscado por todos, onde prevalece o estado positivo em comunhão. Daí a importância desse instituto ao se falar de boa-fé.
4. A OPERATIVIDADE DA BOA-FÉ
“O princípio da boa-fé possui, na atualidade, imensa importância, não faltando quem afirme haver transformado o conceito de sistema e a própria teoria tradicional das fontes dos direitos subjetivos e dos deveres” (Clóvis do Couto e Silva, O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português, p.44).
Desta forma, se tem por unânime a ideia que vem sendo demasiadamente batida e comprovada de que a boa-fé constitui um princípio geral do Direito, que norteia as relações jurídicas em todas as esferas. Para comprovar esta assertiva, vale colacionar a ponderação exarada por Menezes Cordeiro:
(...) A jurisprudência foi receptiva ao movimento (boa-fé aplicada) (...) (MENEZES CORDEIRO, 2001, p. 375). (Grifei)
Posto isto, uma vez que o direito civil consagra de forma expressa o princípio da boa-fé como instituto norteador, certo é que todos os demais ramos do direito devem seguimento ao mesmo raciocínio, impondo às partes litigantes um comportamento reto e probo, sob pena de descaracterizar seu aspecto instrumental.
Desta forma, impõe-se uma conduta leal na relação jurídica, sobretudo levando-se em conta a função democrática desempenhada pela jurisdição, na busca da Justiça, não se esquecendo de seu fator educativo. Nesse sentido:
"Se é certo que toda demanda é o resultado de duas pessoas haverem entendido coisas diferentes ao ler a mesma norma, como já se afirmou, não menos correto que essa leitura há de ser feita segundo critérios éticos, informada pela boa-fé, enquanto padrão de comportamento exigido de todos quantos aceitarem viver em sociedade, onde a igualdade e o respeito ao próximo constituem garantias constitucionais asseguradas ao cidadão, como individualidade protegida, e à sociedade enquanto estrato e tegumento que permeia a nação politicamente organizada." (STOCO, 2002, p. 34).
Ademais, ainda que se tenha havido entendimentos contrários aos argumentos ora lançados para a justificação do princípio da boa-fé ao Direito Civil, é certo que referido diploma enumera o dever de as partes e todos aqueles que de qualquer forma participar da relação, de se valer da boa-fé e também da probidade, nos termos do artigo 422, do Código Civil de 2002, qual seja:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Pode-se afirmar, portanto, que a noção de Direito possui diversos níveis de concretização, que se refletem na intensidade dos deveres e também na conduta ética, pairando-se sempre nas intensidades da boa-fé.
4. FUNÇÃO INTERPRETATIVA DA BOA-FÉ
O recurso interpretativo ao princípio da boa-fé será a forma pela qual o operador do direito preservará a finalidade econômico-social do negócio jurídico e determinará o sentido do contrato em toda a sua trajetória, preservando a relação cooperativa, mesmo que a operação interpretativa contrarie a vontade contratual.
Este sentido de totalidade da relação obrigacional somente será alcançado pelo recurso da boa-fé como concretização sólida do princípio constitucional da solidariedade. Desse modo, inicia-se a interpretação em sua forma objetiva, com base em critério abstrato de exame documental, para, posteriormente, partir para o subjetivo, a vontade real dos declarantes.
Nesse diapasão, o exame da gênese do negócio jurídico, da relação jurídica, urge pesquisar a vontade objetiva dos reais contraentes, sendo temerário substituí-la por qualquer fator hipotético instalado pelo magistrado no lugar dos seres humanos que compõem a relação.
Assim, a função interpretativa da boa-fé é, atualmente, comemorada justamente por ser função nobre ao exercício do direito positivado.
Uma característica que se destaca dessa função é a possibilidade dos magistrados utilizarem sua função integradora. Isto é, a boa-fé objetiva deve ser utilizada como um instrumento hermenêutico. Portanto, surgindo lacunas quando da interpretação, a cláusula da boa-fé objetiva deve ser interpretada pelo aplicador do direito com a finalidade de preencher tais lacunas. O intérprete jurídico ao fazer uso da função integradora deve, sem hesitar, homenagear a conduta leal, ética, proba, dentre outras.
Desta forma, a boa-fé é abrangida em tudo e por tudo. Citado princípio traduz-se no dever de cada parte agir de forma a não lesar a confiança da outra.
Neste linha de raciocíno, Alberto Gosson Jorge Júnior (2004, p. 86) lembra:
"[...]Basta que o sujeito do direito exceda qualquer um dos elementos contidos na norma, seja o fim econômico, o social, a boa-fé ou os bons costumes, para que esteja configurado o abuso de direito e a conseqüente ilicitude do ato-fato perpetrado."
Pode-se concluir que o limite das relações jurídicas é e sempre será ajustado pelo princípio norte da boa-fé.
5. SÍNTESE DAS CONCLUSÕES ABORDADAS
As relações jurídicas, assim como toda e qualquer manifestação de vontade considerada apta a produzir efeitos na esfera jurídica, tem de ser claramente qualificada por elementos objetivos inderrogáveis, verdadeiros padrões de comportamento imperiosamente determinados pela legislação e consolidado pelo princípio supremo da boa-fé nas relações. Desta forma, é de se considerar válida a relação jurídica quando com a observação da boa-fé, requisito implícito desde as tratativas iniciais, ou seja, durante a formação do processo, bem como nas fases de tramitação e execução da relação negocial, e, ainda, pós-contratual, porquanto não estão situados em compartimento estanque no ordenamento constitucional positivo.
Conforme todo princípio normativo, a boa-fé apresenta relevante conteúdo semântico e pouca determinação no que se atine à sua aplicação prática. Isto significa dizer que a sua compreensão será obtida após perceber que a irradiação normativa dos fundamentos jurídicos se faz dos casos particulares para os gerais.
Assim, afirma-se que a exigência rotineira da adoção da boa-fé objetiva é costume apto a produzir eficácia no campo das relações privadas e gerais, onde se permite, com amplitude, maior aproveitamento dos ajustes livremente pactuados e, é claro, a sua reprodução em larga escala. Demais disso, considera-se que a individuação e a consequente divulgação de determinados usos permitem o incremento da atividade judicante em busca da justiça em cada caso concreto, possibilitando ao juiz aplicar o princípio que orienta a conservação do negócio jurídico e obstando exageros existentes contra o excesso.
Seja qual for a argumentação acolhida para determinar a vigência do princípio da boa-fé dentro do sistema civil e no ordenamento jurídico geral, pouco importa; em verdade, a influência da boa-fé como princípio norteador e garantidor de relações saudáveis é inegável no comportamento da sociedade, razão pela qual independe a sua previsão normativa expressa pois intrínseca nas relações comportamentais do ser humano, razão essa que se dá sua fluidez de forma definitiva como condição melhor para gerir as relações.
Por assim dizer, qualquer que seja o fundamento acolhido para a utilização do princípio da boa-fé no âmbito do direito civil, seja pelo fator histórico, econômico, social, jurídico, seja por reconhecer como princípio geral de direito ou cláusula geral, certo é que a boa-fé opera como matriz de todo o arcabouço jurídico. Desse modo, o instituto da boa-fé é consolidado no direito civil brasileiro com primazia, medida essa conquistada para o alcance da justiça prudente e equânime.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REALE, Miguel. A Boa-Fé no Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>. Aceso em: 12 Jan. 2014
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004.
MARTINS-COSTA, Judith. Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005.
MARTINS-COSTA, Judith. Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002
TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.