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A crise de eficácia do tipo penal de lavagem de dinheiro promovida por “organizações criminosas”

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Agenda 27/02/2015 às 08:24

Atualmente ainda se verifica grande discussão em torno do art. 1°, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98 (revogado em 2012), a exemplo de todas as outras que se utilizam da expressão “organização criminosa” ou outros termos correlatos, empregados pelo legislador com o espírito de combater a criminalidade organizada.

RESUMO: O presente estudo volta-se à análise do tipo penal previsto no art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98, que institui no rol de crimes antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro aqueles praticados por organizações criminosas, sobretudo no que tange à celeuma existente em torno de sua eficácia no ordenamento jurídico pátrio. Mediante apreciação acurada, perpassando inclusive por seus aspectos históricos e análise da diversidade doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema, este estudo busca demonstrar a plena aplicabilidade do dispositivo em tela antes da reforma implementada pela Lei n.º 12.683/2012.

PALAVRAS-CHAVE: Lavagem de dinheiro. Crime antecedente praticado por organização criminosa. Art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98. Plena eficácia e aplicabilidade.

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Análise evolutiva da relação entre o crime de lavagem de dinheiro e as organizações criminosas; - 3 O crime de lavagem de dinheiro e o antecedente previsto no inciso VII do art. 1º da lei n.º 9.613/98; 3.1 Características e bem jurídico protegido do crime de lavagem de dinheiro; 3.2 Os elementos do tipo previsto no art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98; 3.3 Organização Criminosa: elemento do tipo ou crime antecedente?; - 4. A problemática conceituação das organizações criminosas e expressões correlatas; - 5 Análise jurisprudencial da matéria; - 6. Conclusões; - 7. Bibliografia.


1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem por escopo tema da mais atual relevância, reacendido por recentes debates ocorridos no egrégio Supremo Tribunal Federal, dos quais se detectam sinais de adoção de posicionamento diametralmente oposto aos rumos até o momento percorridos no trato da matéria adiante delineada.

Trata-se da discussão acerca do tipo penal previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98, que se refere à pratica de lavagem de dinheiro por organizações criminosas.

A cizânia, a despeito de aparentemente cingir-se à aferição quanto à existência ou não de um conceito para a expressão “organização criminosa”, atinge pontos mais profundos, na medida em que busca estabelecer se o referenciado inciso VII do art. 1º da Lei n.º 9.613/91 faz alusão a um tipo penal autônomo de associação à organização criminosa, como crime antecedente específico ao de lavagem de dinheiro, ou, a contrario sensu, se representa um dos elementos do tipo que envolve determinado crime antecedente, consistente no seu cometimento por grupo criminoso organizado.

Tendo por norte a análise desse árido campo do Direito Penal Econômico e da Criminalidade Organizada, far-se-á, no decorrer deste estudo, uma breve apreciação histórica acerca da relação mantida entre os fenômenos da lavagem de dinheiro e das organizações criminosas, que será bastante útil na compreensão sociológica do tema.

Em seguida, para que se apreenda o sentido da norma invocada no presente ensaio, buscar-se-á o esclarecimento dos principais meandros jurídicos que envolvem o tipo penal em tela, sobretudo no que tange a suas características e bem jurídico protegido.

No entanto, atingir-se-á o ponto fulcral da questão submetida a exame com a análise dos elementos do tipo em cotejo, os quais, como é cediço, dividem-se em elementos objetivos e subjetivos, subdividindo-se os primeiros, ainda, em descritivos e normativos.

Somente então será possível perquirir respostas às duas grandes questões anteriormente expostas, isto é, a) a expressão “organização criminosa” é utilizada no crime previsto no art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98 como crime autônomo antecedente ou seria mero elemento normativo do tipo? e b) há um conceito suficientemente apto a garantir a plena aplicabilidade do instituto em tela, ou este careceria de eficácia?

Os efeitos práticos da discussão em apreço são deveras relevantes, na medida em que, há que se reconhecer, caso se conclua que não há fonte em nosso ordenamento para se extrair o conceito de “organização criminosa”, e, portanto, que dispositivos com o emprego dessa expressão não gozam de qualquer eficácia, simplesmente se verificaria a insubsistência de aplicação de relevantes dispositivos de combate ao crime em seus atuais moldes de formação, aí incluído o delito de lavagem de dinheiro praticado por agrupamentos criminosos organizados, gerando-se, assim, verdadeiro colapso em inúmeros processos penais atualmente em curso e em outros tantos com condenações já transitadas em julgado.

Nesse diapasão, visando o destrinchamento dos dogmas das principais correntes que formam as intrincadas teias do tema em proposição, recorre-se ao presente estudo como empreendimento de contribuição para sua evolução, dada a necessidade, de um lado, de se evitar um colapso no combate ao crime organizado, por eventual ineficácia de meios de persecução penal e, de outro, de se manterem hígidas as bases do nosso sistema penal garantista, que rechaça a adoção de tipos penais em branco, com conceitos abertos e indeterminados, deixados ao mero alvedrio do julgador, em afronta ao princípio da segurança jurídica, da legalidade e da taxatividade.

Derradeiramente, após todo o estudo doutrinário do assunto, buscar-se-á, ainda que superficialmente, demonstrar quais são os posicionamentos adotados pela Jurisprudência, especialmente no colendo Supremo Tribunal Federal, no egrégio Superior Tribunal de Justiça e nos cinco colendos Tribunais Regionais Federais.


2 ANÁLISE EVOLUTIVA DA RELAÇÃO ENTRE O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO E AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS.

Para se imiscuir eficientemente no estudo de temas tão complexos como o que ora se apresenta, não se pode olvidar de uma análise, ainda que sucinta, do seu histórico evolutivo, a fim de se permitir sua correta e situada observação, enquanto fenômeno social, cuja mutação se verifica através dos tempos.

Nesse sentido, pesquisa aprofundada do assunto permite concluir, em primeiro lugar, que o crime de lavagem de dinheiro é um fenômeno sócio-econômico bastante antigo, conforme registra o doutrinador André Luiz Callegari[1], verbis:

É certo que a lavagem de dinheiro procedente de atividades ilícitas não é um fenômeno novo. Historicamente, os criminosos sempre tentaram ocultar os frutos de suas atividades delitivas, supondo logicamente que o descobrimento de tais fundos por parte das autoridades conduziria, obviamente aos delitos que os geraram.

Contudo, somente nas décadas mais recentes é que se verificou uma mutação acentuada no quadro que envolve o fenômeno criminológico em tela, tendo adquirido dimensões estratosféricas sobretudo a partir da expansão de um outro fenômeno — o da globalização.

A partir da aproximação dos povos, viabilizada com o avanço tecnológico que permitiu a quebra de barreiras como distância e tempo, especialmente no que tange ao campo das comunicações, as relações pessoais e, consequentemente, os fenômenos sociais sofreram modificações outrora sequer imaginadas.

Não escaparam dessas interferências as ações criminosas que, antes mais detida ao plano individual e ao âmbito interno de regiões ou países, passou a contar com a configuração de grupos especializados de altíssima periculosidade, disseminados por todo o mundo, organizados hierarquicamente e voltados à consecução de crimes de portentoso alcance nocivo, promovedores de inimagináveis cifras de lucros com a movimentação intensa de capitais pelas mais diversas partes do globo.

O aumento dos lucros e da movimentação financeira obtida a partir dessa intensificação das atividades criminosas fez surgir, em consequência, a necessidade de incremento dos mecanismos e dos meios de disfarce dos produtos do crime.

Por efeito, verificou-se um avanço desmedido no crime de lavagem de dinheiro, em descompasso com os mecanismos de repressão e combate então existentes, que culminaram na rápida evolução de agrupamentos criminosos especializados, em detrimento de toda a sociedade.

Saliente-se, no entanto, que a criminalidade organizada não é peculiaridade da sociedade contemporânea, muito embora outrora não se verificasse a estruturação hierarquizada e extremamente especializada das atuais organizações criminosas.

A respeito do histórico do fenômeno em tela, Luiz Regis Prado[2] sustenta que a criminalidade econômica

[...] deita suas raízes históricas no chamado banditismo social conhecido ao longo dos séculos XVIII e XIX, incidente tanto no meio rural como no ambiente urbano, cujos protagonistas eram, respectivamente, integrantes das classes do campesinato e do lumpemproletariado.

O mesmo autor, ainda debruçando-se sobre uma análise histórica do assunto, afirma que

[...] a primeira manifestação de criminalidade organizada, com o traço característico das organizações criminosas de maior importância, foi representada pelas tríades chinesas, que iniciaram sua atuação em 1644 e somente a partir de 1842 começaram a agir de forma mais significativa. A Yakuza japonesa, atuante no Japão Feudal do século XVIII, teve suas atividades relacionadas à exploração tanto de atividades ilícitas (prostituição, cassinos, tráfico de drogas, mulheres e armas, “chantagens corporativas”) como lícitas (casas noturnas, eventos esportivos, etc.).

A Máfia italiana, por seu turno, surgiu em 1812, em razão de uma medida tomada pelos príncipes para proteger a região, tendo em vista que o rei de Nápoles havia limitado seus poderes e reduzido significativamente privilégios feudais. Os chamados “homens de honra”, contratados para defender a região, constituíram associações secretas (as máfias), mediante as quais, em 1865, com o desaparecimento da realeza, ofereceram resistência contra forças invasoras na região. Após a segunda metade do século XX, passaram a se dedicar a atividades ilícitas.

[...]

No Brasil, afirma-se que a atuação do “cangaço”, grupo liderado por Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, caracterizou-se como um movimento emblemático de uma primeira expressão do crime organizado em solo brasileiro.

Posteriormente, a prática delitiva organizada desenvolveu-se com contravenções penais relacionada a jogos ilegais e o conseqüente incremento de seu poder econômico, que obteve o seu auge na década de 80, período subseqüente à edição da Lei 3.668/1941.[3]

De todo modo, a bem da verdade, somente nas últimas décadas é que, como afirmado anteriormente, o fenômeno da criminalidade organizada adquiriu novos contornos, através do surgimento de grandes empreendimentos criminosos, transnacionais e altamente nocivos para toda a sociedade.

Tomando-se ciência desses nefastos efeitos, em todo o mundo se observou a tentativa de criação de meios legais para a contenção do crime de lavagem de dinheiro, sobretudo quando praticado pelas referenciadas organizações criminosas.

Endossando as constatações até o momento realizadas, tem-se mais uma vez as lições do professor Luiz Regis Prado[4], que, após fazer um apanhado dos principais diplomas internacionais no trato do crime em tela, assevera que

Impulsionada a partir das citadas diretivas internacionais, a tendência à repressão da lavagem de dinheiro, no contexto da criminalidade organizada, ocupa na atualidade o centro das preocupações de Estados e de organismos internacionais.

A principal causa do espetacular desenvolvimento dessa espécie criminosa vem a ser o processo de globalização ou internacionalização da economia (dinheiro, mercadorias e capitais), ao lado do progresso vertiginoso da informática e da comunicação.

[…] a internacionalização do setor financeiro não só trouxe as vantagens de celeridade e de segurança nas transações internacionais, mas também infelizmente aperfeiçoou as modalidades e a expansão da lavagem de dinheiro. Aparece como fenômeno emergente e típico da sociedade pós-industrial, onde se evidencia uma espécie peculiar de criminalidade organizada, de cunho transnacional e multiforme – delinqüência transnacional, econômica e organizada -, na qual se insere o delito de lavagem de capitais.[5]

Pois bem. Conforme se pode depreender, o crime de lavagem de dinheiro surge no cenário atual em intrínseca relação com a atividade de organizações criminosas, na medida em que a macro-criminalidade demanda esforços no sentido de garantir a lucratividade dos seus negócios ilícitos, sob pena de não haver fomento para continuidade da própria atividade em si, verificando-se, nesse ponto, extrema aproximação com o modelo empresarial capitalista.

Observados os contornos sociológicos que envolvem o tema em apreço, tem-se, de outro lado, o plano dos diplomas repressivos relativos tanto ao crime de lavagem de dinheiro quanto ao combate e repressão das organizações criminosas.

No que tange ao crime de lavagem de dinheiro, tem-se que os principais instrumentos jurídico-internacionais são a Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena), de 19 de dezembro de 1988, no seu art. 3; a Convenção do Conselho da Europa (Convenção de Strasbourg), de 8 de novembro de 1990, no seu art. 6, e a Diretiva n. 91/308 do Conselho da Comunidade Europeia, de 10 de junho de 1991, em seu art. 2.

No Brasil, o primeiro diploma normativo que veio tratar especificamente acerca do delito de lavagem de bens, direitos e valores foi a Lei n.º 9.613/98[6], que também foi responsável pela criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), sendo atualmente um dos mais importantes órgãos de controle, destinado a disciplinar, aplicar sanções administrativas, receber, examinar e identificar ocorrências sob suspeita de envolvimento com as atividades ilícitas tratadas nessa lei.

No que tange ao tratamento legal das organizações criminosas, no plano jurídico-internacional, temos em destaque, mais uma vez, a Convenção de Viena de 1988; a Convenção de Strasbourg de 1990, a Diretiva n. 91/3008 de 1991, a Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos (CIFTA), a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, dentre outras.

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A lei brasileira, por sua vez, menciona as organizações criminosas em três principais diplomas, são eles, a saber, a Lei n.º 9.034/95 (dispondo sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas), a Lei n.º 10.792/2003 (alterou a Lei de Execução Penal e instituiu a sujeição ao regime disciplinar diferenciado ao preso suspeito de envolvimento com organizações criminosas) e a Lei n.º 9.613/98 (lei de lavagem de dinheiro que prevê como crime antecedente aquele praticado por organizações criminosas). Mais recentemente, a Lei Complementar n.º 135/2010 inseriu no rol da alínea “e” do inciso I do art. 1º da Lei Complementar n.º 64/90, a condenação pela prática de crime praticado por organização criminosa, como condição apta a configurar hipótese de inelegibilidade.

Contudo, é preciso destacar, desde já, que não há qualquer diploma em nosso ordenamento que tenha cuidado de tipificar a formação ou participação em organização criminosa como crime autônomo, a despeito do Brasil, enquanto signatário da Convenção de Palermo, tenha se comprometido a tanto, desde 12/03/2004, com a edição do Decreto n.º 5.015, quando surgiu “a obrigação jurídica internacional de o legislador pátrio, nas proposições legislativas, observar os traços delineadores do que seja crime organizado” (GOMES, 2009, p. 19).

Nesse diapasão, pode-se concluir que, no que se refere ao trato legal da matéria em apreço, somente a partir do final da década de 1980 é que se verificou uma iniciativa internacional voltada à reflexão e à propositura de soluções, sendo que apenas a partir do início dos anos 90 é que o Brasil deu sinais de avanço no sentido de reprimir e combater o crime organizado e a lavagem de dinheiro, sem olvidar de um tratamento interdisciplinar desses fenômenos, sobretudo com a edição da Lei n.º 9.613/98.

Com efeito, realizado um apanhado histórico, bem como uma análise fenomenológico-social, ainda que breve, do tema, é possível avançar às próximas fases do estudo, iniciando-se por a apreciação do tipo penal inserto no art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98.


3 O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO E O ANTECEDENTE PREVISTO NO INCISO VII DO ART. 1º DA LEI N.º 9.613/98.

3.1 CARACTERÍSTICAS E BEM JURÍDICO PROTEGIDO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO.

De todas as características citadas pela doutrina, destacam-se como as mais relevantes, por muito bem extraírem a essência do delito em tela, especialmente quando sua prática se encontra associada a organizações criminosas, aquelas mencionadas por André Luís Callegari[7]. São elas: a) internacionalização das atividades de lavagem; b) profissionalização do trabalho; c) vocação de permanência; d) complexidade ou variedade dos métodos empregados; e) volume do fenômeno; e f) conexão entre redes criminais.

No que tange à internacionalização das atividades, trata-se, em síntese, de uma tendência do crime de lavagem de dinheiro de não se limitar às barreiras territoriais dos países, que são constantemente ultrapassadas pelos criminosos, gerando, consequentemente, uma continuada mudança de jurisdição e soberania sobre os bens e direitos de origem ilícita submetido à itinerância, procedimento que é empregado como forma de dificultar o rastreamento desses bens, facilitando sobremaneira a efetividade de sua ocultação.

Já a característica da profissionalização do trabalho, é intuitivo concluir, cuida do aspecto da acentuada especialização dos mecanismos comumente empregados na lavagem de dinheiro, que conta, costumeiramente, com uma organização bem estruturada e hierarquizada de verdadeiros profissionais do crime, unidos pelo propósito de “minimizar os riscos da persecução penal e maximizar as oportunidades” (CALLEGARI, 2008, p. 39).

A seu turno, a vocação de permanência é característica atribuída pela doutrina ao crime de lavagem de dinheiro, tendo em vista que sua análise e observação apontam para uma faceta diferenciada em relação aos crimes das demais espécies que, normalmente, esgotam-se em si mesmos, tão logo atingidos seus propósitos, ao contrário da infração criminal em tela, que “é despojada desta autonomia para passar a ser um elemento a mais de um programa preestabelecido que se prolonga indefinidamente no tempo” (CALLEGARI, 2008, pp. 39-40).

Em ligação umbilical com as características anteriormente destacadas, aliás, vale registrar que todas elas encontram-se intrinsecamente relacionadas, tem-se a complexidade ou variedade dos métodos empregados, justificada, segundo a doutrina, pela necessidade de constante renovação dos mecanismos de lavagem de dinheiro, tendo em vista o desenvolvimento de medidas repressivas que os tornam obsoletos cada vez mais rapidamente com o avanço das técnicas de investigação e persecução penal.

No que tange à penúltima característica, respeitante ao volume do fenômeno, seu significado é bem extraído por André Luis Callegari[8], de quem novamente emprestamos melhores explicações, verbis:

Para um setor doutrinal, o volume de capitais de origem delitiva que é objeto da lavagem é uma das características deste delito. Assim, o que interessa é que a magnitude do fenômeno é tão grande que se converteu, por si só, numa característica essencial do mesmo, levando este setor a afirmar que já não tem conotações quantitativas, senão qualitativas.

É evidente que a disseminação do fenômeno do crime organizado modificou significativamente as bases de algumas espécies penais, dentre elas, com destaque, o crime de lavagem de dinheiro, o qual absorveu essa característica da macro-criminalidade, sendo atualmente identificado como delito responsável pela movimentação de quantidades inimagináveis de dinheiro entre um número muitas vezes indeterminado de agentes integrantes de portentosas organizações criminosas.

Chega-se, assim, à última característica assinalada, qual seja, a conexão entre redes criminais. Tal aspecto do crime de lavagem de dinheiro denota a tendência das modernas estruturas criminais não agirem isoladamente, mas em mútua colaboração, tanto em função da especialização dos ramos de atuação, quanto em razão da maior garantia de eficiência que se consegue impingir ao sistema de lavagem com a “terceirização” de determinadas fases.

A especialização diz respeito à profissionalização de determinados grupos no cometimento de uma área específica do crime, como o tráfico de entorpecentes, de armas, de pessoas, contra a administração, contra o sistema financeiro, dentre inúmeros outros.

A “terceirização” anteriormente mencionada, por sua vez, representa a necessidade que possuem alguns grupos criminosos, especializados em determinada área do crime, de estabelecerem conexões com outras organizações na fase de lavagem do dinheiro, com as quais convencionam a realização de todo o processo ou de apenas uma de suas fases ou métodos, formando-se, assim, poderosa rede criminosa, com estrutura de verdadeira holding, de elevado potencial lesivo para a sociedade.

Delineadas as principais características que contornam o instituto do crime de lavagem de dinheiro, para arrematar o tópico corrente, chega-se à análise do bem jurídico protegido pelo crime de lavagem de dinheiro, tema que revolve uma das mais acaloradas discussões entre os doutrinadores que se lançam no estudo do assunto em tela.

O bem jurídico protegido representa o limite que se impõe ao legislador na sua tarefa de eleger condutas típicas, na medida em que se encontra limitado a determinados valores ou princípios de maior relevância em um Estado Democrático de Direito para estabelecer que a sua lesão ou ameaça de lesão comportará uma conduta penalmente relevante.

Nesse diapasão, surgem na doutrina duas correntes a respeito da teoria do bem jurídico, uma de acordo com a qual o conteúdo do bem jurídico se extrairia de tendências sociais ou sociológicas — denominada, por isso, de corrente sociológica — e outra, a contrario sensu, segundo a qual “a fundamentação do bem jurídico é constitucional” (CALLEGARI, 2008, pág. 81) — portanto, denominada de corrente constitucionalista.

A despeito da propriedade de alguns defensores da corrente sociológica, demonstra-se mais consentânea com os contornos do moderno direito penal, a corrente constitucionalista, tendo em vista que, de fato, o jus puniendi encontra-se subjugado a um conjunto de princípios eleitos pela Constituição como mais relevantes e absolutamente protegidos contra qualquer espécie de lesão ou ameaça.

No ponto, CALLEGARI, citando ROXIN, afirma que “a derivação do bem jurídico decorre da Constituição” (2008, pág. 81) e explica tal assertiva, parafraseando esse insigne jurista, ao aduzir que

O ponto de partida correto consiste em reconhecer que a única restrição previamente dada para o legislador se encontra nos princípios da Constituição. Portanto, um conceito de bem jurídico vinculante político-criminalmente só pode derivar dos encargos plasmados na Lei Fundamental do Estado de Direito, baseado na liberdade do indivíduo, através dos quais se marcam seus limites à potestade punitiva do Estado.

Com base nessas premissas, podemos buscar qual ou quais seriam os bens jurídicos alvo de proteção pelas normas incriminadoras do crime de lavagem de dinheiro.

Sem dúvida, são inúmeras as correntes que permeiam o tema em apreço, havendo, contudo, certa predominância daquelas que citam a ordem socioeconômica e a administração da justiça como os bens protegidos pela norma em tela.

Exemplificativamente, ao lado da cota que defende a administração da justiça como bem protegido, figura Rodolfo Tigre Maia[9], que admite a ordem econômica como bem apenas reflexamente e nem sempre violado.

Já pendendo para a segunda corrente citada, destaca-se Luiz Regis Prado. Esse, ao fundamentar seu entendimento, sustenta que

Acolhe-se esta ultima posição, vale dizer, o bem jurídico protegido – de caráter transindividual – vem a ser a ordem econômico-financeira, o sistema econômico e suas instituições ou a ordem socioeconômica em seu conjunto (bem jurídico categorial), em especial a licitude do ciclo ou tráfego econômico-financeiro (estabilidade, regularidade e credibilidade do mercado econômico), que propicia a circulação e a concorrência de forma livre e legal de bens, valores ou capitais (bem jurídico em sentido técnico).[10]

Identifica-se, ainda, uma corrente intermediária, que tem como partidário André Luis Callegari, segundo a qual o bem jurídico protegido não seria diretamente nem a administração da Justiça — haja vista que “ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo e a administração da justiça e os órgãos encarregados da persecução criminal devem ter o aparelhamento suficiente para isso”[11] —, nem a ordem socioeconômica — uma vez que “se trata de bem jurídico não tangível, além disso, muitas vezes a ordem econômica acaba se fortalecendo com os delitos de lavagem de dinheiro porque os valores incorporados fomentam a economia”[12].

Para CALLEGARI, com apoio em Aránguez Sánchez, em verdade, todos os efeitos anteriormente citados são meramente colaterais, ao passo que “o interesse fundamental que deve tutelar o delito de lavagem de capitais é a leal concorrência na ordem sócio-econômica”[13].

Com efeito, bem analisando o tema, observa-se que, a despeito das condutas consubstanciadoras do crime de lavagem de dinheiro possuírem, de fato, potencialidade para afetarem diversos bens jurídicos, destacando-se os dois até o momento citados (administração da Justiça e ordem sócio-econômica), há que se reconhecer o acerto do peculiar posicionamento do professor André Luis Callegari, assumido durante a análise do tema em apreço.

É que não pode ser negada a pertinência das críticas que são feitas às correntes tradicionalmente adotadas pela doutrina brasileira no trato do assunto. Realmente, não se pode dizer que o bem diretamente protegido pelo crime de lavagem seja a administração da Justiça, pois com essa corrente não se atinge o ponto fulcral do crime em referência, cuja autonomia restaria severamente abalada caso admitida tal assertiva. Aliás, se os argumentos levantados para defender tal corrente fossem realmente acertados, o crime de receptação, que, em última análise, também se presta a impedir o descobrimento do autor do delito antecedente, deveria estar inserto no rol dos crimes contra a administração da Justiça, mas, como é cediço, não está.

De outro lado, também é bastante pertinente a crítica que se faz quanto à corrente que defende como bem jurídico protegido a ordem sócio-econômica, na medida em que, em primeiro lugar, trata-se de um bem cujos contornos são de elevada dificuldade de definição no caso concreto, de forma que a análise de sua lesão ou ameaça se tornaria tarefa intensamente subjetiva, o que não se admite em um Estado Democrático. Além disso, também é preciso observar que nem sempre se verifica violado tal bem jurídico, não pela dificuldade de análise anteriormente citada, mas porque muitas vezes o que ocorre é realmente o crescimento da economia local em função da movimentação de capital promovida com a lavagem, tanto é que não são poucos os países, comumente chamados de paraísos fiscais, que não se veem estimulados a combater tais crimes justamente porque boa parcela de sua economia gira em torno dos capitais oriundos da lavagem.

Destarte, quando se tem em mente que, em primeiro lugar, o crime de lavagem de dinheiro proporciona uma vantagem indevida para os criminosos no plano econômico em relação aos demais investidores que se utilizam de capital lícito, a lesão primordialmente provocada pelo crime em cotejo se dá em face da leal concorrência na ordem sócio-econômica, bem jurídico protegido constitucionalmente, com supedâneo no inciso IV do art. 170 e no §5º do art. 173.

3.2 OS ELEMENTOS DO TIPO PREVISTO NO ART. 1º, VII, DA LEI N.º 9.613/98.

Analisadas as características e o bem jurídico protegido do crime de lavagem de dinheiro, é possível observar que a atual abordagem de tal tipo penal sempre deságua no seu relacionamento com o crime organizado, não por outro motivo, a Lei n.º 9.613/98 traz no rol dos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro, em seu inciso VII, aqueles praticados por organizações criminosas, sendo precisamente esse o tipo penal alvo de nossos estudos.

Toda essa análise do tipo penal em tela se faz relevante, pois é inegável a necessidade de sua global compreensão antes de se fazer imiscuir no ponto fulcral deste ensaio, isto é, não se entende possível a apreciação quanto à eficácia do tipo previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98 sem que, em primeiro lugar, tenha-se realizado uma apreensão de suas balizas norteadoras e justificadoras, âmbito onde se insere também o tema dos elementos do tipo, o qual introduzirá, inclusive, uma das principais questões do presente estudo, a ser posteriormente abordada, referente à assunção da organização criminosa como um crime autônomo antecedente ou mero elemento do tipo.

Com efeito, direcionam-se as próximas linhas do presente estudo à análise dos elementos do crime previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98.

Segundo clássica divisão, os elementos do tipo dividem-se em elementos objetivos e subjetivos, sendo, os primeiros, responsáveis pela descrição de todos “os dados necessários à caracterização da infração penal“[14], enquanto os segundos traduzem-se pelo “elemento anímico, que diz respeito à vontade do agente”[15].

Nesse diapasão, da livre leitura do dispositivo legal que traz em seu texto o tipo penal a que fazemos referência, no que tange aos elementos objetivos, podemos extrair, em primeiro lugar, como núcleos do tipo, os verbos ocultar ou dissimular, que se diferenciam, segundo as lições de André Luis Callegari[16], na medida em que

[...] a ocultação seria o simples encobrimento, e a dissimulação seria a ocultação adjetivada, ou seja, sempre mediante o emprego do engano, do disfarce, da utilização de uma técnica que permite esconder com astúcia os bens provenientes dos delitos prévios dispostos na Lei de Lavagem.

O ilustre doutrinador adverte, contudo, que

Na realidade, o delito não muda pelos verbos empregados, pois tanto a ocultação como a dissimulação são apenadas da mesma forma e não há agravamento da pena pela dissimulação, ainda que esta pareça mais grave pela sua forma de realização.

Em síntese, a ação de ocultar representa o ato de encobrir, esconder ou não revelar a situação dos bens ou direitos obtidos com os crimes antecedentes, de forma a inviabilizar o conhecimento de suas circunstâncias de ilegalidade e localização, especialmente pelas autoridades encarregadas de sua fiscalização[17].

Já a ação de dissimular, conforme se extrai das lições do mestre CALLEGARI, reproduzidas em linhas anteriores, importa em aplicar meio astucioso ou fraudulento para mascarar, encobrir, falsear, disfarçar a situação dos bens e direitos objetos de lavagem. Há, de fato, apenas uma tênue distinção entre os verbos ocultar e dissimular, mas, como não se confundem, incumbe ao órgão ministerial, no momento da propositura da denúncia, indicar especificamente qual ação se imputa ao agente.

Retomando a análise dos elementos objetivos, temos que as ações que consubstanciam os núcleos do tipo, isto é, a ocultação ou dissimulação, dirigem-se à natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores.

Para definir esses elementos, convém utilizar as sintéticas, porém precisas definições ofertadas por Luiz Regis Prado[18], que aduz o seguinte

A ocultação ou dissimulação devem se referir à natureza (essência, condições peculiares, especificidade), origem (procedência ou forma de obtenção), localização (local onde se encontra ou se situa), disposição (emprego, uso, utilização, seja gratuito ou oneroso), movimentação (deslocamento, mobilização, mudança, circulação) ou propriedade (titularidade, domínio, direito de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha) de bens, direitos ou valores.

Bens, direitos ou valores, em seu turno, são os objetos materiais do tipo. Nesse ponto, conforme extraímos mais uma vez das lições de Luiz Regis Prado[19]

Os produtos do crime (producta sceleris) são considerados objeto material ou da ação do delito de lavagem de capitais sempre e quando sejam suscetíveis de tráfego comercial. Também podem ser objeto material do delito em exame os ganhos, benefícios ou vantagens obtidos pela prática delitiva (scelere quasita), bem como o preço do crime (promessa, recompensa), tido como bem que dele exsurge.

O último elemento do tipo previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/91 trata da exigência de que os bens, direitos ou valores ocultados ou dissimulados sejam provenientes de crime, in casu, especificamente praticado por organização criminosa.

É bem evidente, portanto, que somente o crime, entendido como a ação ou omissão típica e antijurídica[20], pode servir de antecedente para a configuração do delito de lavagem de dinheiro. Mas não qualquer crime, haja vista que o ordenamento pátrio optou pela técnica da taxatividade para estabelecer quais estariam aptos para figurar como antecedentes da lavagem de capitais, dentre eles incluindo-se, como visto anteriormente, aqueles praticados por organizações criminosas.

No entanto, também não é qualquer crime praticado por organização criminosa que poderá servir de antecedente, senão aquele que traga proveito econômico para seus agentes, haja vista que somente nessa hipótese haverá bens, direitos ou valores de origem ilícita, aptos a serem posteriormente ocultados ou dissimulados.

A respeito desse ponto, observa-se a existência de certa cizânia, em razão de parte minoritária da doutrina entender que somente estariam inseridos no tipo em tela os crimes mencionados nos demais incisos do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, quando praticados por organização criminosa. Contudo, tal corrente esvazia por completo qualquer utilidade do inciso VII, não sendo crível que, como a lei não contém palavras inúteis, seja esse o seu sentido. Há, ainda, corrente que amplia o sentido desse tipo, ao afirmar que qualquer crime praticado por organização criminosa poderá figurar como antecedente de lavagem, o que também não é certo, tendo em vista a condicionante do proveito econômico proporcionado pelo antecedente, anteriormente mencionada.

Por fim, no que tange ao elemento subjetivo do crime de lavagem de dinheiro praticado por organização criminosa, não se observa peculiaridade quanto às demais espécies de lavagem, sendo, portanto, o dolo, isto é,

[...] a consciência do agente de que o bem, direito ou valor são provenientes, direta ou indiretamente, de crime [...], e pela vontade de ocultar ou dissimular sua natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade.[21]

Adverte-se, derradeiramente, que não se exige a plena consciência acerca da origem ilícita desses bens, valores ou direitos, admitindo-se a forma do dolo eventual, em que todas as circunstâncias do crime fazem crer que o agente sabia ou pelo menos devia saber da referenciada proveniência ilícita.

3.3 ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA: ELEMENTO DO TIPO OU CRIME ANTECEDENTE?

Vimos no tópico antecedente quais seriam os elementos do tipo previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98, no qual se afirmou que um dos elementos objetivos seria a exigência de que os bens, direitos ou valores ocultados ou dissimulados tenham origem em crime praticado por organização criminosa.

Nesse sentido, impõe-se o seguinte questionamento: a expressão “organização criminosa” se refere a mais um elemento do tipo ou representaria, em verdade, o crime antecedente autônomo propriamente dito?

Tal questão se faz pertinente e consubstancia-se em uma das molas propulsoras do presente estudo, tendo em vista a discussão verificada no âmbito do colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n.º 96.007/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, no qual se buscava o trancamento de ação penal proposta pelo cometimento do crime previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98, sob o fundamento de alegada inexistência em nosso ordenamento de tipificação do crime de organização criminosa.

No patamar que alcança este estudo, importa, portanto, perquirir se a questão acima proposta de fato promove algum risco à eficácia do tipo penal sob exame.

Isso porque, caso se entenda que o inciso VII do art. 1º da Lei n.º 9.613/98 traduz um crime antecedente autônomo de formação de organização criminosa, haveria de se discutir, de fato, a existência de previsão legal em nosso ordenamento desse suposto tipo penal.

A contrario sensu, considerando-se “organização criminosa” como elemento do tipo, não subsiste qualquer discussão a respeito da eficácia do crime em tela, a despeito de toda e qualquer crítica que se possa impingir aos tipos penais abertos que laçam mão de técnica legislativa pela qual, para sua complementação, faz-se necessária a atividade interpretativa.

Nesse diapasão, quando se extrai expressamente do inciso VII do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, como um dos antecedentes à lavagem de dinheiro, “o crime praticado por organização criminosa” e não “o crime de organização criminosa”, não há qualquer dúvida, com a devida vênia, de que tais expressões não são equivalentes e, portanto, não se confundem.

É que, no primeiro caso (“crime praticado por”), “organização criminosa” surge como uma circunstância essencial do crime antecedente, que, não importando sua natureza, deverá ter sido praticado por uma organização criminosa. No segundo caso (“crime de”), contudo, a expressão “organização criminosa” surge como complemento do núcleo do crime de “formação de organização criminosa”, e, portanto, como o próprio crime autônomo antecedente.

Sendo assim, tendo o legislador utilizado a expressão “crime praticado por organização criminosa”, na análise do caso concreto, em primeiro lugar, será preciso verificar a prática de um crime que, conforme afirmado no tópico anterior, deverá ter proporcionado um proveito econômico para o agente. Então, em segundo plano, será imprescindível observar se tal crime, independente de sua natureza, foi praticado mediante ação de organização criminosa.

Nesse sentido, o agente a quem se imputa a lavagem de dinheiro, caso também integrante da organização criminosa, responderá tanto pela ocultação ou dissimulação, quanto pelo(s) crime(s) praticado(s) pelo grupo, que poderá ser, a título de exemplo, extorsão mediante sequestro, contra a ordem tributária[22] ou qualquer outro que proporcione proveito econômico ao grupo, como já afirmado, mas não por crime de “formação de organização criminosa”, que, há de se reconhecer, não conta com previsão em nosso ordenamento.

Com efeito, a análise acurada dos principais aspectos que rondam o crime sob exame, sobretudo após todas as digressões expostas no corpo do presente estudo até este ponto, é inevitável concluir que a expressão “organização criminosa” se refere a um dos elementos do tipo de lavagem de dinheiro, mais precisamente, conforme a doutrina convencionou batizar, um elemento normativo do tipo penal em tela.

Isso porque, como é cediço, os elementos do tipo dividem-se em objetivos e subjetivos, sendo que os primeiros se subdividem, ainda, em elementos descritivos e normativos.

Segundo Rogério Greco, “elementos descritivos são aqueles que têm a finalidade de traduzir o tipo penal, isto é, evidenciar aquilo que pode, com simplicidade, ser percebido pelo intérprete” (2005, pág. 191).

Os elementos normativos, em seu turno, ainda de acordo com esse insigne jurista, “são aqueles criados e traduzidos por uma norma ou que, para sua efetiva compreensão, necessitam de uma valoração por parte do intérprete” (2005, pág. 191).

Nesse ponto, Rogério Greco[23] ainda exemplifica, vejamos:

Conceitos como mulher honesta (arts. 215, 216 e 219 do CP), dignidade e decoro (art. 140 do CP), sem justa causa (art. 153, 154, 244, 246 e 248 do CP) podem variar de acordo com a interpretação de cada pessoa ou em virtude do sentido que lhe dá a norma. São considerados, portanto, elementos normativos, porque sobre eles, necessariamente, deve ser realizado um juízo de valor.

Portanto, temos na expressão “organização criminosa”, inserta no inciso VII do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, não mais que um complemento do tipo, para cuja compreensão o intérprete deverá lançar mão de valores éticos e jurídicos, mas se vinculará a outras normas quando estas oferecerem com maior precisão seus contornos delineadores.

Não são poucas as críticas que se fazem a esse dispositivo nesse aspecto, sob o fundamento de que “faltou clareza ao legislador na hora de definir o que se incrimina, ferindo-se, frontalmente, o princípio da taxatividade dos tipos penais”[24]. Parte da doutrina chega a afirmar, inclusive, que o dispositivo em tela (art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98) não pode ser considerado para fins penais, tendo em vista a suposta inexistência de um conceito legal preciso do que seja uma organização criminosa.

Nesse mesmo sentido, o professor Marco Antônio de Barros[25] adverte que

Tal qual sucede com o terrorismo [...], é de ser considerada inócua a figura correspondente ao inc. VII do art. 1º da Lei de ‘Lavagem’, visto desatender ao comando constitucional que assegura o direito à liberdade e à propriedade por não haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, inc. XXXIX, CF).

Também indo de encontro à aplicabilidade dos dispositivos em nosso ordenamento que se utilizem da expressão “organização criminosa”, destaca-se o ilustre professor Luiz Flávio Gomes[26], para quem, em suma, tais dispositivos careceriam de eficácia, em função, de acordo com seu entendimento, de inexistência de precisa definição do que seja referenciado termo.

De fato, os tipos penais abertos, espécie em que se insere o preceito incriminador constante do dispositivo em tela, trazem certa insegurança jurídica não condizente com a tendência garantista do direito penal moderno, que tem como postulado a “garantia máxima de descrever de forma mais precisa possível a conduta que se está incriminando (taxatividade)”[27], em razão do que sua previsão acabaria, “por via reflexa, ferindo, também, a própria legalidade penal”[28].

A esse respeito, André Luis Callegari[29] aduz que

A tendência moderna do Direito Penal é cada vez menos utilizar este tipo de redação, onde a conduta realizada (tipo aberto) deverá ser verificada posteriormente, através de uma decisão judicial, onde se fala em que haveria propriamente o “fechamento” do tipo penal, como ocorre nos tipos penais culposos. Nos tipos abertos não se infere por completo, mas parcialmente, os elementos do injusto da correspondente classe de delito, e o resto deve ser completado mediante elementos positivos da antijuridicidade que estão fora do tipo, ou, seja, são aqueles em que “falta um guia objetivo para completar o tipo”, de tal modo que, praticamente, não se pode fazer uma distinção entre comportamento proibido e permitido.

No entanto, a despeito de tais argumentos de reconhecida propriedade e de, inclusive, endossarmos as preocupações quanto à técnica do tipo penal aberto, é preciso reconhecer que essas críticas não são capazes de ilidir a eficácia do crime previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98, sobretudo quando é possível extrair do nosso ordenamento suficientes elementos delineadores para definir o que seja uma organização criminosa, como será demonstrado em capítulo pertinente, sem que se possa afirmar, de qualquer modo, que a precisa aplicação do crime em tela é relegada ao mero alvedrio do julgador.

Endossando esse entendimento, identificam-se doutrinadores da envergadura de Rodolfo Tigre Maia[30], Marcelo Batlouni Mendroni[31], Ivan Luiz da Silva[32], Adhemar Ferreira Maciel[33], Rodrigo Carneiro Gomes[34], dentre outros.

A bem da verdade, rechaça-se qualquer argumentação quanto à violação do princípio da legalidade ou da taxatividade pelo tipo penal previsto no art. 1º, VII, da Lei de Lavagem, tendo em vista que, analisadas aprofundadamente as circunstâncias que revolvem tal dispositivo, verifica-se que a técnica legislativa utilizada na sua elaboração atende aos anseios da própria natureza do crime a que se refere.

É que, inegavelmente, considerando as especiais características do crime organizado, o qual “apresenta-se de forma muito mais complexa, utilizando-se de métodos e tecnologias cada vez mais evoluídos, inclusive transcendendo fronteiras nacionais”, não se poderia, para sua eficaz repressão, lançar-se mão dos mesmos mecanismos e instrumentos aplicados para o crime comum, demandando esforços totalmente diferenciados.

Nesse ponto, nem se cogite, em absoluto, a possibilidade de se estar defendendo a criação de um direito penal do inimigo, pois, tomado-se emprestadas as lições do mestre Luiz Regis Prado[35],

[...] quando se propugna um tratamento diferenciado do integrante de uma organização delitiva, tanto no processo penal quanto na execução da pena, por meio da utilização de determinados mecanismos de prevenção ou da restrição de benefícios concedidos em geral a indivíduos que não oferecem perigo à segurança da sociedade ou da aplicação da lei penal, de maneira alguma se defende que àquele sujeito seja negada a condição de “pessoa” e que para ele deva se estabelecer um Direito Penal de exceção. A esse indivíduo não devem ser suprimidos direitos e garantias individuais fundamentais, de forma a afrontar princípios constitucionais penais e processuais penais. É perfeitamente legítimo, portanto, que o sistema penal como um todo - e antes do Direito Penal em si, os meios de prevenção e os instrumentos processuais penais - seja mais rigoroso no combate à criminalidade organizada, sem que isso signifique a criação de um direito penal de exceção.

Ora, tal qual na medicina, em que à cada tipo de mazela, corresponde um tratamento adequado, também no direito penal, onde há diferentes espécies de crimes, tem-se que se buscar a melhor técnica para combatê-los eficientemente.

Com efeito, se o tipo penal aberto é técnica desaconselhável nos crimes comuns, em razão de dificultar sua definição e, por isso, transgredir o princípio da legalidade, em outros casos, sendo empregado comedida e responsavelmente, é deveras indicado, mormente quando se trata de crimes que, por sua própria natureza, não gozam de uma definição imutável e rígida, justamente por se referirem a fenômenos sociais em constante mutação, resultado da ação continuada de seus agentes, que, utilizando-se de instrumentos e métodos avançados, a todo o momento modificam suas faces e formas de consecução.

Com posicionamento bastante aproximado, a respeito desse tema, Marcelo Batlouni Mendroni[36] aduz que

[...] não se pode engessar este conceito, restringindo-o a esta ou àquela infração penal, pois elas, as organizações criminosas, detêm incrível poder variante. Elas podem alternar as suas atividades criminosas, buscando aquela atividade que se torne mais lucrativa, para tentar escapar da persecução criminal ou para acompanhar a evolução mundial tecnológica e com tal rapidez, que quando o legislador pretender alterar a lei para amolda-la à realidade - aos anseios da sociedade -, já estará alguns anos em atraso.

Contudo, deve-se dissentir do pensamento do renomado autor apenas porque, a despeito de não ser recomendada a utilização das técnicas conservadoras de definição dos tipos penais em crimes como o ora tratado, também não se pode afirmar que se dispensa absolutamente a fixação de um conceito legal para eles, tendo em vista que é plenamente possível equilibrar essa necessidade de relativização e o devido respeito aos princípios penal-garantistas, inclusive o da legalidade.

É o que defende Luiz Regis Prado[37], quando assenta que

De fato, não é apropriado elaborar um conceito de organização criminosa que culmine em um estreitamento de seu âmbito de atividades, que é extremamente amplo e variável. Em outros termos, é impossível elaborar um conceito de organização criminosa para cada grupo de atividades ilícitas que sejam seu objeto. Isso, entretanto, não significa que seja impertinente delimita-la conceitualmente, sobretudo para se evitar que haja um arbítrio excessivo do aplicador do Direito no momento de decidir o que constitui ou não uma organização criminosa.

Com efeito, é possível afirmar que, sendo um elemento normativo do crime previsto no art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98, a expressão “organização criminosa”, para garantir ao tipo penal em tela plena eficácia, somente depende de mínimas balizas vinculadoras da atuação do aplicador, e, conforme restará demonstrado em capítulo apropriado do presente estudo, há suficientes elementos em nosso ordenamento para uma satisfatória compreensão de tal fenômeno, afastando-se, assim, qualquer possível sustentação de afronta aos princípios da legalidade ou da taxatividade.

Em razão do exposto, conclui-se que a discussão travada no bojo do HC n.º 96.007/SP, referida no início do tópico corrente, capitaneada pelo voto do eminente Min. Rel. Marco Aurélio, data maxima venia, não deveria ter caminhado para o deferimento do remédio constitucional pleiteado, tendo em vista que, em nenhum momento, houve, com a edição da Lei n.º 9.613/98, a pretensão de inovar o ordenamento com a previsão de um crime de organização criminosa, o qual, a despeito do compromisso firmado pelo Brasil com a ratificação da Convenção de Palermo, permanece sem qualquer tipificação legal, devendo-se, portanto, compreender a expressão em tela simplesmente como mero elemento normativo do tipo.

Sobre a autora
Katherine Bezerra Carvalho de Melo

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Katherine Bezerra Carvalho. A crise de eficácia do tipo penal de lavagem de dinheiro promovida por “organizações criminosas”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4258, 27 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30970. Acesso em: 23 dez. 2024.

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