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A inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato

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Agenda 19/01/2015 às 13:10

O presente trabalho examina se os crimes de perigo abstrato se revestem ou não de constitucionalidade, objetivando demonstrar que o Direito Penal deve ser sempre a “ultima ratio”. Conclui-se que o Direito Penal deve intervir o mínimo possível, preservando-se assim o “status libertatis” do cidadão.

Resumo: O presente trabalho examina se os crimes de perigo abstrato se revestem ou não de constitucionalidade, objetivando demonstrar que o Direito Penal deve ser sempre a “ultima ratio”, posto que se os demais ramos do ordenamento jurídico devem ser fortes o suficiente na proteção de determinados bens jurídicos, assim, é melhor que o Direito Penal não intervenha preservando-se assim o “status libertatis” do cidadão. Para melhor compreensão do tema, mister analisar os princípios constitucionais- penais relativos aos crimes de perigo abstrato, bem como descrever os diferentes tipos de crimes de perigo, além da análise dos julgados dos tribunais superiores acerca desse tema, especialmente a atual posição do Supremo Tribunal Federal. Este tema é de grande relevância, tendo em vista que esses crimes não obedecem a uma estrutura típica formal e violam inúmeros princípios constitucionais- penais que serão aqui examinados. Deste modo, ao final poder-se-á concluir ser inconstitucional os crimes de perigo abstrato.

Palavras-chave: Princípios constitucionais- penais; crimes de perigo abstrato; inconstitucionalidade.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende discorrer sobre a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. O tema em questão tem sido cada vez mais discutido no cenário atual, até porque com a evolução da sociedade e a tendência de um minimalismo penal, desses tipos penais têm sido cada vez mais questionados, inclusive no seu âmbito constitucional.

Muito embora seja a questão cercada de polêmicas, o tema em destaque é de grande importância teórica e prática, haja vista que para termos caracterizada a infração penal deve-se ter a comprovação de que o sujeito efetuou a realização da conduta, de fato, e que esta veio a ensejar algum perigo ou ameaça a bens jurídicos alheios e, não ser apenas uma presunção instituída pelo legislador.   

O tema aqui debatido versa sobre uma discussão atual e de repercussão direta na sociedade, haja vista que os crimes de perigo abstrato violam determinados princípios constitucionais, o que não pode prevalecer. Esses tipos penais contêm certas imprecisões e equívocos que devem ser questionados. 

Percebe-se, então, que o Direito Penal deve tutelar somente os bens jurídicos mais significativos para a sociedade, em razão da gravidade das sanções impostas pelo ordenamento jurídico.

Nesse sentido, influi-se que os crimes de perigo abstrato, cuja consumação ocorrem com a simples verificação de situação hipotética de perigo, não deveriam sequer serem tratados ou considerados como crimes, mesmo porque representam uma afronta ao sistema democrático preconizado pela Constituição Federal.

No primeiro capítulo foi feita uma análise do instituto do crime de perigo e suas espécies, quais sejam: crime de perigo concreto, crime de perigo abstrato e crime de perigo abstrato de perigosidade real.

Revelou-se necessária também a exposição, no segundo capítulo, dos principais princípios que envolvem o tema, tendo em vista que a restrição à liberdade de locomoção de qualquer indivíduo deve ser feita em fiel observância aos princípios citados neste capítulo.

E por fim, no último capítulo foi tratado o tema específico da inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, no qual foi analisada a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do tema, com a demonstração de jurisprudências dos Tribunais Superiores.

E, ainda, neste capítulo será tratado especialmente o crime de porte ilegal de armas que se encontra disposto no artigo 14 da Lei n. 10.826/2003. 


2. DOS CRIMES DE PERIGO

Para uma melhor elucidação do conceito de crime de perigo e suas espécies, é imprescindível realizar a diferenciação entre os crimes de perigo e de dano.

Rogério Greco assim define o crime de dano

“são aqueles que, para a sua consumação, deve haver a efetiva lesão ao bem juridicamente protegido pelo tipo. A conduta do agente, portanto, é dirigida finalisticamente a produzir o resultado, acarretando dano ou lesão para o bem protegido pelo tipo penal, a exemplo do que ocorre com os crimes de homicídio e lesão corporal”[2].

Nesse sentido, entende-se por crime de dano aquele tipo penal que exigir a lesão ou o dano ao bem juridicamente tutelado para que ocorra a consumação do crime. Ressaltando que a ausência da lesão pode caracterizar a tentativa ou um indiferente penal.   

Doutro lado, temos o crime de perigo que é assim conceituado pelos juristas André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves:

“Há crimes, por outro lado, cuja consumação se dá quando o bem jurídico sofre um perigo (ou ameaça) de lesão. A simples exposição do bem a tal perigo já é suficiente para que a infração esteja consumada. São exemplos de crimes de perigo o art. 130 (“ Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”), o art. 131 (“Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”), o art. 132 (“Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”), todos do CP” [3].

Enfim, pode-se concluir que os crimes de perigo são aqueles que se consumam com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem de fato produzir uma lesão efetiva. Observe-se que nesses tipos de delitos, “o elemento subjetivo é o dolo de perigo, cuja vontade limita-se à criação da situação de perigo, não querendo o dano, nem mesmo eventualmente” [4].

Esses tipos de delitos se subdividem em: a) crime de perigo real ou concreto; b) crime de perigo abstrato ou presumido; c) crime de perigo abstrato de perigosidade real, os quais serão analisados em seguida.

2.1 DOS CRIMES DE PERIGO CONCRETO

Os crimes de perigo concreto são aqueles em que deve ser comprovada a situação de perigo criada pelo agente ao bem juridicamente tutelado. Segundo Bitencourt “o perigo só é reconhecível por uma valoração subjetiva da probabilidade de superveniência de um dano” [5].

Coaduna com esse entendimento, a lição de Schünemann:

“Segundo a moderna teoria normativa do resultado de perigo, de Schünemann, o perigo concreto se concretiza pela ausência causal do resultado, e a causalidade representa circunstância em cuja ocorrência não se pode confiar” [6].

Com efeito, Greco assim assinala:

“A sua visão, ao contrário daquela realizada nos crimes de perigo abstrato, é sempre ex post, ou seja, analisa-se o comportamento praticado pelo agente, depois da sua realização, a fim de concluir-se, no caso concreto, trouxe ou não perigo ao bem juridicamente protegido pelo tipo. Como exemplo de crime de perigo concreto podemos destacar o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, previsto pelo art. 132 do Código Penal” [7].

Dessa forma, podemos concluir que o delito de perigo concreto pressupõe a efetiva realização do perigo para que se caracterize.  

2.2. DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

Os crimes de perigo abstrato são aqueles em que a simples presunção do perigo da conduta do agente é suficiente para que se tenha a penalização do bem juridicamente protegido.

Vale o registro da passagem de Greco quando descreve esse delito:

“Diz-se abstrato o perigo quando o tipo penal incriminador entende como suficiente, para fins de caracterização do perigo, a prática do comportamento – comissivo ou omissivo- por ele previsto. Assim, os crimes de perigo abstrato são reconhecidos como de perigo presumido. A visão, para a conclusão da situação de perigo criada pela prática do comportamento típico, é realizada ex ante, independentemente da comprovação, no caso concreto, de que a conduta do agente produziu, efetivamente ou não, a situação de perigo que o tipo procura evitar” [8].

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Convém salientar, ainda, que esse tipo de delito é presumido juris et de jure, isto é, não tem necessidade de ser comprovado, pois para a lei basta a simples prática da ação que presume ser perigosa.

2.3 DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO DE PERIGOSIDADE REAL

Com a chegada da nova Lei n. 12.760/12 que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.9.503/97) tivemos diversas alterações importantes. Contudo, merece destaque o artigo 306 que foi o cerne da discussão a respeito de sua natureza jurídica, qual seja a de crime de perigo abstrato ou crime de perigo concreto.

Diante a polêmica a respeito do assunto surge uma nova modalidade de crime de perigo, a qual é tratada por maestria pelo jurista Rogério Sanches que assim nos ensina:

“De acordo com essa nova espécie de infração penal, teríamos não apenas dois tipos de crime de perigo (abstrato e concreto), mas sim três! No crime de perigo abstrato (ou puro), o risco advindo da conduta é absolutamente presumido por lei, bastando a violação da norma. Já no crime de perigo concreto, o risco deve ser comprovado. A acusação tem o dever de demonstrar que da conduta houve perigo real para vítima certa e determinada. No crime de perigo abstrato de perigosidade real, o risco ao bem jurídico tutelado deve ser comprovado, dispensando vítima certa e determinada. É indispensável a superação de um determinado risco-base ao bem jurídico protegido. Vamos trabalhar essa discussão com o auxílio de um exemplo: sabemos que o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) é de perigo. Mas de qual espécie? Se de perigo abstrato (ou puro), basta a condução de veículo sob efeito de álcool, pois o risco advindo da conduta é absolutamente presumido por lei (haverá crime ainda que ausente a condução anormal do veículo). Se de perigo concreto, deve ser comprovado que a conduta gerou risco (condução anormal do veiculo), periclitando vítima certa e determinada. Se de perigo abstrato de perigosidade real, exige-se a prova de condução anormal (rebaixando o nível de segurança viário), mas dispensa a demonstração de perigo para vítima certa e determinada. Sem essa perigosidade real para a coletividade, que é concreta, caracteriza mera infração administrativa”[9]. (Grifo Nosso).

Nesse sentido, podemos entender que o crime de perigo abstrato de perigosidade real é aquele que não haveria necessidade de comprovar o perigo para uma pessoa ou grupo determinado, mas apenas um perigo genérico.


3. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS- PENAIS

3.1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade se encontra disposto no artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal de 1988 e no artigo 1º do Código Penal. Esse princípio determina que não poderá haver crime ou pena, sem lei anterior que os defina, isto é, sem prévia cominação legal.

Não se pode olvidar que esse princípio se aplica aos crimes, as contravenções penais, as penas e as medidas de segurança, em consonância com o artigo 1º do Código Penal.

A fórmula deste princípio, disposto na Constituição Federal, é a materialização da máxima “Nullum crimen nulla poena sine lege”, elaborada por Paul Johan Anselm Ritter von Feuerbach.

O jurista Juarez Cirino dos Santos afirma que

“O princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito, porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais (art.5º, XL, CR). O significado político do princípio da legalidade- regra principal da teoria da validade da lei penal no tempo-, expresso nas fórmulas de lex praevia, de lex scripta, de lex stricta e de lex certa, incidentes sobre os crimes, as penas e as medidas de segurança da legislação penal, pode ser assim sumariado” [10].

Esse princípio constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo do Estado, já que ele é uma garantia máxima de respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos que é própria de um Estado Democrático de Direito.

Francisco Muñoz Conde e Mercedez García Arán leciona que

“A gravidade dos meios que o Estado emprega na repressão do delito, a drástica intervenção nos direitos mais elementares e, por isso mesmo, fundamentais da pessoa, o caráter de ultima ratio que esta intervenção deve ter, impõem necessariamente a busca de um princípio que controle o poder punitivo estatal e que confine sua aplicação em limites que excluam toda arbitrariedade e excesso do poder punitivo” [11].

Com efeito, Claus Roxin salienta que

“uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invadindo, dessa forma, a esfera do legislativo” [12].

Cabe ressalvar que parte da doutrina entende que não há diferença conceitual de legalidade e de reserva legal, a exemplo podemos citar Cezar Roberto Bitencourt, Guilherme de Souza Nucci. Doutro lado, parte da doutrina se posiciona no sentido de diferenciar legalidade e reserva legal, a exemplo de Fernando Capez que assim se manifesta:

“Dissentindo desse entendimento, pensamos que princípio da legalidade é gênero que compreende duas espécies: reserva legal e anterioridade da lei penal. Com efeito, o princípio da legalidade corresponde aos enunciados dos arts. 5º, XXXIX, da Constituição Federal e 1º do Código Penal (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”) e contém, nele embutidos, dois princípios diferentes: o da reserva legal, reservando para o estrito campo da lei a existência do crime e sua correspondente pena (não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal), e o da anterioridade, exigindo que a lei esteja em vigor no momento da prática da infração penal (lei anterior e prévia cominação). Assim, a regra do art. 1º, denominada princípio da legalidade, compreende os princípios da reserva legal e da anterioridade”[13].

Nessa esteira, podemos concluir que esse princípio é de extrema relevância, já que consiste em um princípio fundamental do Direito Penal presente em um Estado Social e Democrático de Direito, tendo como precípuo máximo a limitação do poder punitivo estatal frente às liberdades individuais dos cidadãos.

3.2 PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE

O princípio da ofensividade também é conhecido pelo termo lesividade, que determina que não há crime sem lesão efetiva ou ameaça concreta ao bem jurídico tutelado que é expresso pela máxima “Nullum crimen sine iniuria”.

Esse princípio nos orientará no sentido de nos informar quais são as condutas que poderão sofrer os rigores da lei penal, já que se o fato não for ofensivo materialmente não teremos crime.

Bitencourt categoricamente assinala:

“O princípio da ofensividade no Direito Penal tem a pretensão de que seus efeitos tenham reflexos em dois planos: no primeiro, servir de orientação à atividade legiferante, fornecendo substratos político-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha conteúdo ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes; no segundo plano, servir de critério interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto indispensável lesividade ao bem jurídico protegido”.

Diante tais fatos, deve-se esclarecer que esse princípio possui quatro funções: a) proibir a incriminação de uma atitude interna: ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por seus sentimentos pessoais; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor: o direito penal não pode punir condutas que não sejam lesivas a bens de terceiros; c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais: busca impedir que o agente seja punido por aquilo que é, e não pelo que fez; d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetam qualquer bem jurídico: condutas desviadas são aquelas que a sociedade trata com desprezo, mas que embora reprovada sob o aspecto moral, não repercute sobre qualquer bem de terceiro.

Nesse sentido, conclui-se que o princípio da ofensividade visa proibir a imputação de condutas que não lesem ou que pelos coloque em risco um bem juridicamente tutelado. 

3.3 PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

O princípio da adequação social foi criada por Hans Welzel e estabelece que somente condutas que tenham uma certa relevância social poderá ser tipificada pelo Direito Penal, de maneira diversa, não poderia ser considerada como delito.

Dessa forma, pontifica Fernando Capez:

“Para essa teoria, o Direito Penal somente tipifica condutas que tenham certa relevância social. O tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais; por conseguinte, as condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa, sob pena de a lei incriminadora padecer do vício de inconstitucionalidade” [14].

Esse princípio deve ser empregado como critério para o legislador, posto que deve verificar no exercício de sua função, quais condutas humanas são passíveis ou não de serem tipificados criminalmente, não podendo ser considerada como criminosa a conduta que é socialmente adequada.

A punição das condutas socialmente adequadas deve ser repelida, haja vista que a sua tipificação viola o princípio da dignidade humana e revela um abuso de poder por parte do legislador, o que por si só deve ser considerada como inconstitucional.

Bastante elucidativa neste ponto, é a síntese apresentada por Fábio Roque Araújo:

“Necessário salientar que há muita resistência em relação à adequação social como forma de exclusão da tipicidade, como defendido por este princípio. Esta resistência se fundamenta no fato de que o costume não pode revogar a lei. Em última instância, é isto que ocorreria se a aceitação social da conduta tivesse aptidão para afastar a tipicidade. Desta forma, tem decidido o STJ no sentido de que “A lei penal só perde sua força sancionadora pelo advento de outra lei penal que a revogue; a indiferença social não é excludente da ilicitude ou mesmo da culpabilidade, razão pela qual não pode ela elidir a disposição legal”. De qualquer forma, ainda que a jurisprudência nacional rechace o princípio como forma de exclusão da tipicidade penal, ele deve ser utilizado pelo legislador na definição da conduta criminosa”[15].

Em suma, fica claro que o princípio da adequação social é aquele que não considera típica a conduta que seja aceita pela sociedade.

3.4 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

O Direito Penal deve interessar-se somente pela salvaguarda dos bens jurídicos mais significativos presentes na sociedade. Esse princípio é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana que está previsto no art. 1º, inciso III da Constituição Federal.

Neste contexto são precisas as palavras de Bitencourt:

“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade”[16].

Depreende-se, assim, que esse princípio limita a criminalização das condutas para aqueles bens mais importantes para o indivíduo e a sociedade, na tentativa de elidir que condutas menos relevantes sejam criminalizadas. Com efeito, a intervenção estatal na liberdade individual só deve acontecer quando for realmente necessário.

Esse princípio se subdivide em dois: a) a subsidiariedade e b) a fragmentariedade. O princípio da subsidiariedade consiste na limitação da atuação do Direito Penal para aqueles casos em que os demais ramos do Direito não conseguiram solucionar o conflito. Isto significa que o Direito Penal é ultima ratio.

Salientando o caráter subsidiário, Roxin destaca:

"A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. 0 Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema - como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como a 'ultima ratio da política social' e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos"[17].  

Já o princípio da fragmentariedade consiste na proteção de bens jurídicos que tem valores imprescindíveis para a sociedade. Dessa forma, André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves discorrem que:

“Significa que cabe ao Direito Penal atribuir relevância somente a pequenos fragmentos de ilicitude. Existem, assim, inúmeros comportamentos cujo caráter ilícito é conferido pelo ordenamento jurídico, mas somente uma pequena parcela interessa ao Direito Penal, notadamente a que corresponde aos atos mais graves, atentatórios dos bens mais relevantes para a vida em comum.

Num vasto oceano de antijuridicidade, os crimes são como pequenas ilhas que, de maneira fragmentária e descontínua, despontam dentre os demais atos proibidos” [18].

Assim sendo, pode-se notar que esse postulado comporta duas principais ideias, quais sejam: primeiro, que não é todo bem jurídico que é digno de proteção penal e segundo, que nem toda conduta lesiva que o bem jurídico sofre é relevante para o Direito Penal.

Em suma, podemos concluir que o nosso ordenamento jurídico institui o princípio da intervenção penal mínima ao passo que proíbe um Direito Penal Máximo que viola o Estado Democrático de Direito.

3.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

O princípio da culpabilidade está expresso na fórmula “nullum crimen sine culpa”, ou seja, não há crime sem culpabilidade. Esse postulado é um dos mais importantes instrumentos da proteção da liberdade individual no Estado Democrático de Direito e se encontra positivado no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal que assim preconiza: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

O princípio da culpabilidade consiste ao juízo de censura que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. É censurável aquela conduta que levada a efeito pelo agente que nas condições que se encontrava podia agir de outro modo.

Isso porque somente poderá ser punido penalmente por sua conduta o agente que praticou o injusto penal e que poderia ter agido de forma diferente. Registre-se que a exigibilidade da conduta diversa é o fundamento da culpabilidade que tem por característica limitar a pena.

Munõz Conde entende que a culpabilidade é um fenômeno social, senão vejamos:

“não é uma qualidade da ação, mas uma característica que se lhe atribui, para poder ser imputada a alguém como seu autor e fazê-lo responder por ela. Assim, em ultima instância, será a correlação de forças sociais existentes em um determinado momento que irá determinar os limites do culpável e do não culpável, da liberdade e da não liberdade” [19].

Nesse contexto, os juristas Luis Flávio Gomes, Antônio García- Pablos de Molina e Alice Bianchini nos ensinam que

“Quem não tem capacidade de discernimento (inimputáveis) ou quem não podia comportar-se de forma distinta, não pode ser penalmente responsabilizado. O princípio da culpabilidade na atualidade, em suma, significa: (a) que não há pena sem culpabilidade; e (b) que está proibida a responsabilidade penal de quem não podia agir de modo diverso (inimputabilidade, erro de proibição etc.). Todas as causas de exclusão da culpabilidade (inimputabilidade por loucura, erro de proibição etc.), que são chamadas de eximentes ou dirimentes, afetam a possibilidade de agir de modo diverso (leia-se: a exigibilidade de conduta diversa)” [20].

Por fim, há de destacar que esse princípio também atua como limite para a aplicação da pena, isto significa que o agente irá responder pela conduta injusta e culpável na medida de sua culpabilidade.

3.6 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

A Constituição Federal de 1988 prevê o princípio da presunção de não culpabilidade ou presunção de inocência no inc. LVII do art. 5º que assim determina: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Com a sua habitual precisão, Renato Brasileiro afirma que

“Consiste no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório)”[21].

Esse postulado se encontra sedimentado em nosso ordenamento jurídico e assenta uma norma principiológica que impede o Poder Público de atuar e de se proceder, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já tivessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário.      

De fato, a Constituição Federal dispõe que somente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória pode afastar o caráter inicial proposto por esse princípio.

Demais disso, deve-se compreender que desse postulado derivam duas regras fundamentais: a primeira regra é a probatória, que recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória.

Segundo esta concepção, a presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo, isto porque, na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois este não tem obrigação de provar que não praticou o delito. Com efeito, o in dubio pro reo só incide até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Já a segunda regra é a de tratamento, que estabelece que ninguém poderá ser considerado culpado, senão depois de sentença condenatória com trânsito em julgado. O princípio da presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de culpabilidade.

Por conseguinte, observam Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

“O caráter normativo do âmbito de proteção dessa garantia confere ao legislador um papel importante na conformação da garantia. Tal como já observado, o princípio da não culpabilidade não obsta a que o legislador adote determinadas medidas de caráter cautelar, seja em relação à própria liberdade do eventual investigado ou denunciado, seja em relação a seus bens ou pertences”[22].

Nesse sentido, podemos concluir que o princípio da presunção de inocência é de uma garantia constitucional presente no Estado Democrático de Direito que importa em dizer que todo acusado é presumido inocente até que seja declarado culpado por sentença condenatória penal.

Sobre a autora
Annelise Freitas Macedo Oliveira

Advogada. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Annelise Freitas Macedo. A inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4219, 19 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31075. Acesso em: 2 nov. 2024.

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