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Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia

Agenda 01/08/2002 às 00:00

Sumário:1. Evolução Histórica. 2. O surgimento da fiducia no direito romano. 3. O surgimento do Trust Receipt. 4. O negócio fiduciário no direito positivo brasileiro. 5. Da ação de busca e apreensão. 6. Da conversão da ação de busca e apreensão em ação em depósito e da prisão civil do devedor


Evolução Histórica

Nos primórdios da civilização ocidental, autorizados pela Lei das XII Tábuas, detinham os credores da sociedade romana o direito de matar e apoderar-se do cadáver do devedor que não cumprisse com a obrigação devida, de forma que o devedor romano respondia com sua vida e liberdade pelos seus débitos. Importante que se diga que somente foi alterado esse costume a partir do alastramento da doutrina cristã e das mudanças oriundas do aparecimento do Estado Moderno, quando se transferiu o ônus pelo não adimplemento da dívida do corpo do devedor para o seu patrimônio material, sendo então facultado ao credor apoderar-se dos bens de propriedade do devedor assim que impagas fossem as suas obrigações.

Eis então que, diante da impossibilidade da coerção corpórea, viu-se o credor em situação de grande vulnerabilidade frente às não raras manobras protagonizadas pelo devedor para que não pagas fossem as suas obrigações. Diante de tal panorama e devido à incidência reiterada de fraudes e simulações que denegriam a credibilidade das operações creditícias, criou-se, para a proteção do crédito, duas espécies de garantia, quais sejam, a garantia pessoal ou fidejussória e a garantia real ou material.

Na primeira um terceiro se comprometia a pagar o valor devido, caso o devedor principal não o fizesse; na segunda, o próprio devedor empenhava parte de seu patrimônio e o entregava ao credor a fim de assegurar o adimplemento da obrigação contraída, lhe restando o direito de reaver a coisa assim que adimplida fosse a sua obrigação.


O surgimento da fiducia no direito romano

Como perfeito exemplo de garantia real, temos a fiducia cum creditore, instituto criado no direito romano pelo qual o credor recebia do devedor a propriedade e a posse de um bem fungível, a fim de que garantido fosse o cumprimento de uma obrigação principal, lhe restando o dever de restitui-lo tão logo fosse adimplida a obrigação pelo devedor.

De forma e procedimento semelhantes observa-se também no ordenamento jurídico romano a presença do fiducia cum amico, que nada mais era que um contrato de confiança em que o fiduciante alienava seus bens a quem confiasse, para que estes ficassem guardados, como em um depósito, até que cessadas fossem as circunstâncias que ensejaram o receio do proprietário pela perda ou extravio dos bens, como por exemplo, em caso de guerras, viagens, etc.

No entanto, grande inconveniente se fazia presente nestes dois procedimentos, posto que nestes casos eram os alienantes que se viam sob grande vulnerabilidade. Em ambas as situações, não dispunha o alienante de remédio jurídico hábil a fazer com que o credor restitua a coisa alienada quando adimplida a sua obrigação, sendo que o único recurso a que podia o alienante socorrer-se era a actio fiduciae [1], que ainda assim não podia impor que o fiduciário restituísse a res alienada.

Anos mais tarde, observou-se no ordenamento jurídico germânico uma grande evolução ao instituto de garantia real romano, ao possibilitar que o alienante se valesse de uma ação de natureza real que possibilitava que fosse o fiduciário alemão despojado do bem se não agisse conforme o pactuado. Assim, poderia o alienante obrigar o fiduciário a entregar a coisa alienada em garantia assim que quitada fosse a dívida assegurada.

Ainda, prevendo a possibilidade de ocorrência de ardil por parte do fiduciário, previu o legislador alemão a possibilidade do que hoje se entende por direito de seqüela, ou seja, poderia o alienante reivindicar a coisa alienada, mesmo que na posse de terceiros, de forma que, ainda que viesse o fiduciário a se desfazer da coisa, poderia o alienante exercer seu direito sobre ela.


O surgimento do Trust Receipt

Ocorre então que, a partir da Revolução Industrial e do desenvolvimento do capitalismo financeiro, tornaram-se as formas de garantia existentes à época, tais quais o penhor, a hipoteca e a anticrese, inadequadas frente à nova sociedade que se formava, posto que a morosidade inerentes a elas obstavam a eficácia destas modalidades frente ao ritmo acelerado que se imprimiu na circulação das riquezas.

Para que fossem atendidos tais anseios por meios mais céleres de execução de devedor, recriou-se o negócio fiduciário nos moldes delineados pelo fiducia cum creditore, relegado e esquecido desde o período Justiniano. Contudo, embora o retorno da fidúcia representasse grande avanço no que se refere à agilidade processual, ainda assim era eivado dos mesmos inconvenientes observados no instituto romano que o originara,vez que ainda permitia flagrante vulnerabilidade do fiduciante frente ao fiduciário.

Observou-se então, na Inglaterra e nos demais países cujo direito se baseia no sistema do common law, o surgimento do trust receipt, instituto que nada mais é do que uma evolução do fiducia cum creditore romano e do negócio fiduciário germânico, de forma e objetivo muito semelhantes e cuja principal distinção reside no fato de que, neste, os bens alienados fiduciariamente não se transferem da propriedade nem da posse do fiduciante ao fiduciário, ou seja, não passam a integrar o patrimônio ativo do credor.

No trust receipt, os bens alienados em garantia são meramente afetados por restrição quanto à sua disposição, de maneira que ao devedor é defeso dele se desfazer, a fim de que possam efetivamente responder pelo inadimplemento de suas obrigações, sem, no entanto, lhe desapossar do bem dado em garantia.

Em sendo inadimplidas as obrigações garantidas pela alienação fiduciária, aí sim se transfere a propriedade do bem ao fiduciário credor.


O negócio fiduciário no direito positivo brasileiro

Foi então, nos moldes do trust receipt, introduzido o negócio fiduciário no ordenamento jurídico brasileiro, a partir do advento da Lei de Mercados Capitais (Lei nº 4.728 de 1965, artigo 66), assumindo a expressão Alienação Fiduciária em Garantia como seu designador.

Possui a versão brasileira do negócio fiduciário como objetivo principal, garantir as operações de concessão de crédito para a aquisição de utilidades móveis realizadas pelas empresas de crédito, financiamento e investimentos.

Assim, assumiu este instituto em nosso direito pátrio a forma de um contrato de garantia, destinado a proteger de maneira mais efetiva os financiamentos para aquisição de bens móveis que os instrumentos de garantia real mais tradicionais, tais quais o penhor, a hipoteca e a anticrese [2], que, como já foi dito antes, já não mais ofereciam a segurança que as relações comerciais exigiam.

E, de fato, veio a alienação fiduciária em garantia a atender em cheio aos anseios das entidades financeiras e também dos consumidores, eis que facilitou inegavelmente a concessão de crédito direto ao comprador, oferecendo ao financiador garantia efetiva do ressarcimento do seu crédito, sem, no entanto, retirar do financiado seu direito de posse sobre a coisa alienada, lhe assegurando o uso e gozo, podendo usufruí-lo da forma como entendesse.

Em sua forma, configura a alienação fiduciária um negócio jurídico bilateral em que uma das partes (fiduciante) aliena a propriedade de um bem ao financiador (fiduciário), até que se extinga a relação contratual pelo adimplemento ou pela inexecução de qualquer das obrigações contratuais. Assim, através deste contrato, transfere-se ao credor ou fiduciário o domínio resolúvel da coisa alienada e a posse indireta do bem dado em garantia independente de efetiva tradição da coisa, tornando-se o alienante ou devedor em mero possuidor direto e, por força da lei, depositário do bem alienado.

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Em outras linhas, pode se dizer que se trata a alienação fiduciária de um contrato de garantia em que o devedor aliena um bem a fim de assegurar o pagamento de uma dívida até que adimplido seja este débito, quando retorna o bem ao patrimônio do fiduciante.

Destarte, embora permaneça o bem dado em fidúcia na posse do alienante, é atribuído ao fiduciário o domínio resolúvel sobre tal bem, que se resolve mediante o pagamento integral das obrigações do devedor, de maneira que é facultado ao credor reivindicar sua possessão quando inadimplida for a prestação garantida. Contudo, tão logo receba o credor valor de seu crédito, fica obrigado a restituir o bem alienado em garantia ao alienante, ou seja, a transmitir ao devedor a propriedade definitiva do bem [3].

No ensejo, há que se dizer que, ao editar a Lei 4728/65, não visou o legislador introduzir em nosso ordenamento jurídico uma simples espécie de negócio jurídico a ser usado de maneira cômoda para o atendimento de interesses individuais dos contratantes em toda e qualquer relação de direito privado, mas procurou dotar especificamente as operações de concessão de crédito da segurança necessária para que elas cumpram com seu papel na nossa economia.

Assim, para que a alienação fiduciária cumpra com os objetivos a que se destina, tratou o legislador de impor restrições ao seu uso, restrições que estas vão desde as sociedades habilitadas a operar com o contrato de alienação fiduciária, quanto à forma com que se dá a firmação do contrato e a execução de seus efeitos.

Quanto às partes contratantes da alienação fiduciária, tem-se que somente foram habilitadas a conceder financiamento assegurado por contrato de alienação fiduciária, as sociedades de crédito, financiamento e investimento, de funcionamento autorizado pelo Banco Central do Brasil. Para tanto, impende ressaltar que a Lei 4.728/65, introdutora da alienação fiduciária no direito brasileiro, foi editada especificamente para disciplinar o mercado de capitais e dar a segurança necessária às empresas de concessão de crédito direto ao consumidor.

Importante se atentar ao fato de que operam estas sociedades financeiras com capital proveniente eminentemente das poupanças populares, sendo, então, o mote da alienação fiduciária, a garantia eficiente e imediata da integridade destas poupanças populares pelos dispositivos trazidos pelo instituto.

Em adendo, ressalta-se que através do Decreto 70.951, de 09/08/1972, que regula a atuação das administradoras de consórcios de bens móveis duráveis, foi estendida a autorização a estas empresas de consórcios utilizar-se também da alienação fiduciária em suas operações de concessão de crédito, eis que também visam a concessão de crédito para a aquisição de bens e que, a exemplo das demais instituições financeiras, também subsistem graças à injeção de capital popular.

Também com o fim de inibir a má utilização da alienação fiduciária em garantia por parte dos contratantes, vedou o legislador no § 7º, artigo 66, da Lei 4.728/65 a incidência do que se conhece por pacto comissório [4] (5), instituto, que dá ao credor o poder de avocar para si a coisa dada em garantia face ao não pagamento do preço pelo comprador, lhe sendo obrigatório, portanto, vender o bem para que restituído seja o valor do débito. Tal vedação foi posteriormente ratificada pela edição do Decreto-Lei 911/69 que em seu artigo 1º, § 6º declarou nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no seu vencimento.

Muito embora o bem fiduciariamente alienado, em via de regra, seja aquele cuja aquisição o financiamento de destina, já sumulou a mais alta corte infraconstitucional deste país que o contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor (súmula 28 do STJ) [6]. Assim, não necessariamente deve recair o ônus pelo pagamento da dívida sobre o bem adquirido com o saldo do financiamento, podendo recair sobre qualquer bem de propriedade do fiduciante.


Da ação de busca e apreensão

Eis então que, devidamente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, provocou a alienação fiduciária em garantia grande celeuma entre os juristas acerca da ação cabível para a obtenção da execução da propriedade fiduciária. Neste sentido, considerando que ficava a posse direta do bem fiduciariamente alienado com o devedor, passou-se a se perguntar qual o procedimento adequado a ser tomado pelo fiduciário em caso de inadimplemento do fiduciante, para que possa obter a posse direta do bem alienado em fidúcia.

Tal dúvida se dava porque não fazia o artigo 66 da Lei 4.728/65 qualquer referência explícita quanto ao procedimento adequado para a efetivação da consolidação da posse da coisa pelo credor. Observa-se que, enquanto que o § 2º [7] dava a entender o cabimento da ação reintegratória, o § 8º [8] subentendia a ação reivindicatória e até a ação de imissão na posse como instrumentos adequados para a consolidação da posse em nome do credor fiduciário.

Para que sanada fosse tal imprecisão, adveio a edição do Decreto-Lei 911 em 1º de outubro de 1969, que impôs nova redação ao artigo 66 da Lei 4.728/65 e, entre outras coisas, pacificou o processo autônomo de busca e apreensão como sendo o mecanismo adequado a efetivamente assegurar o ressarcimento do crédito pelo fiduciante.

Dispôs o referido Decreto-Lei, em seu artigo 3º, que poderá o proprietário fiduciário requerer contra o devedor a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, requerimento este que será deferido liminarmente, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor. Para tanto, observa-se que a mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento, e sua comprovação se dará por meio de carta registrada expedida por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos ou pelo simples protesto do título.

Salienta-se que, a exemplo do que acontece no direito germânico, é facultado ao credor brasileiro apreender o bem fiduciariamente alienado, mesmo que este se encontre na posse de terceiros (direito de seqüela), desde que esteja o contrato de alienação fiduciária devidamente registrado em Cartório de Títulos e Documentos.

Impende lembrar que ao ser a busca e apreensão deferida in limni, será ela executada independentemente de oitiva da parte devedora. Não obstante isso, não se considera que seja este procedimento determinado pelo Decreto-Lei 911/69 eivado de inconstitucionalidade e infrator dos preceitos assecuratórios da isonomia, da ampla defesa e do devido processo legal.

Para tanto, atenta-se com devido rigor à importância da notificação do devedor de sua situação de inadimplência, sendo esta comprovação da mora do devedor pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo de busca e apreensão (TJRS – AC 70.000.844.225). Nesse sentido, já consolidou o STJ entendimento que "A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente" (Súmula 72).

Outro ponto que merece consideração, tange à restrição oferecida pelo Decreto-Lei 911/69 às matérias a serem argüidas pelo devedor em contestação. Segundo o disposto no artigo 3º, § 2º [9], só poderá ser suscitado pelo devedor nas razões contestatórias da ação de busca e apreensão o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais, imposição esta que também, segundo o entendimento jurisprudencial e doutrinário, não representa cerceamento de defesa de forma que não é permitido ao devedor, em nível destas ações estender o conteúdo da contestação (TJSC – AC nº 97.06244-3).

Observe-se, que o legislador, ao determinar os pressupostos e o modo de execução do processo de busca e apreensão de bem fiduciariamente alienado, retirou deste procedimento o caráter acautelatório que, em via de regra, veste as ações de busca e apreensão.

O provimento cautelar tem pressupostos específicos distintos daqueles elencados pelo Decreto-Lei 911 para sua concessão. São eles: o risco de ineficácia do provimento principal e a plausibilidade do direito alegado (periculum in mora e fumus boni iuris), que, presentes, determinam a necessidade da tutela cautelar e a inexorabilidade de sua concessão, para que se protejam aqueles bens ou direitos de modo a se garantir a produção de efeitos concretos do provimento jurisdicional principal [10].

A ação de busca e apreensão de bem fiduciariamente alienado, por sua vez, prescinde da existência destes pressupostos, admitindo como único requisito para sua concessão a comprovação da mora, o que, por certo, diferencia este procedimento da demanda cautelar.

Tem-se então que constitui a busca e apreensão de bem fiduciariamente alienado um processo autônomo, de procedimento específico, determinado por regramento próprio.

Indo um pouco além, é de se observar que, também neste caso, faz-se desnecessário o ajuizamento de qualquer ação posterior, como acontece em via de regra com as demandas cautelares. Na busca e apreensão de bem alienado em fidúcia, a sentença de mérito, por si só, consolida a propriedade do bem sob litígio ao credor, satisfazendo-se, portanto, a pretensão do Requerente sem a necessidade de ingresso de novo processo principal.

Uma questão de grande importância e que merece nossa consideração, refere-se à possibilidade de o preço obtido pela venda do bem apreendido não bastar para o pagamento integral da dívida, verificando-se após isso um saldo remanescente a ser pago pelo devedor, saldo este que, como parece óbvio, não conta com qualquer garantia real pelo pagamento.

Nesta hipótese, como bem ensina Sylvio Capanema de Souza [11], a prioridade dada pelo credor à garantia real, não necessariamente implica em renúncia à garantia fidejussória. Como refere o emérito desembargador, desde que se dê ciência ao fiador de que se procederá a alienação extrajudicial do bem, nada impede que ele efetue o pagamento, caso lhe interesse a sub-rogação, adquira extrajudicialmente a coisa alienada, podendo ele, por certo, proceder à remição da dívida como devedor solidário e sub-rogar-se na garantia real.

Tem-se, então, que em não sendo eficaz a garantia real, dada a insuficiência da alienação do bem e em havendo no instrumento de alienação fiduciária a contratação de outra garantia, no caso a fidejussória, não poderá o credor ser inibido de se valer dela, sendo irrelevante que tenha preferido antes exercer a garantia real.


Da conversão da ação de busca e apreensão em ação em depósito e da prisão civil do devedor

No entanto, a polêmica maior provocada pelo Decreto-Lei 911/69, reside no contido em seu artigo 4º, segundo o qual, ao credor fiduciário é facultado, na hipótese de não vir o bem objeto do financiamento a ser encontrado na posse do devedor inadimplente, requerer a conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, na forma prevista pelo Capítulo II, Título I do Livro IV do Código de Processo Civil.

Assim, em sendo ao devedor fiduciante atribuída a condição de depositário da coisa alienada e então imbuído de todas as responsabilidades e encargos previstos em lei, possibilita-se que seja ele compelido a depositar o objeto da alienação fiduciária mediante pena de prisão civil por infidelidade no depósito, na forma do que dispõe o parágrafo único do artigo 904 [12] de nosso CPC.

Encontra-se a possibilidade de prisão civil do depositário infiel expressa no artigo 5º, LXVII, de nossa Constituição Federal de 1988, que em seu texto torna defesa a prisão por dívida, excepcionando-se, no entanto, nos casos de inadimplemento de obrigações alimentares e de infidelidade no depósito.

Eis então que, em sendo possibilidade de prisão civil por infidelidade no depósito prevista em nossa carta constitucional, tem-se por óbvio que não pode esta faculdade ser obstada pela redação do artigo 7º, nº 7 do Pacto de San José da Costa Rica, posto que não pode este tratado internacional, incorporado em nosso direito nacional confrontar diretamente preceito expresso em nossa Carta Magna.

Observa-se que inexiste em nosso modelo jurídico constitucional qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo às normas de âmbito constitucional. A ordem constitucional em voga hoje no Brasil, em hipótese alguma pode sofrer transgressão qualquer pela normatividade que emerge dos tratados internacionais, pois estas além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos na redação da Lei Constitucional.

Nesse sentido já se pronunciou o STF, ainda sob a Égide da Carta de 1967/69, que é "inadmissível a prevalência de tratados e convenções internacionais contra o texto expresso da Lei Magna". Esse entendimento veio a ser reiterado pelo STF, desta vez na vigência da Constituição atual, ao referir que "No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição Federal da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política".

Desta forma, age a prisão civil como meio de coerção imposto pela lei à inexecução das obrigações contratuais, fazendo com que o devedor cumpra com o que lhe é cominado, no caso, fazer a entrega do bem alienado fiduciariamente, ou depositar o valor equivalente ao seu saldo devedor, sob pena de lhe ser decretada pena de prisão civil.

A possibilidade de prisão civil do devedor tido mesmo que fictamente como depositário infiel nas hipóteses de alienação fiduciária, apesar da grande divergência doutrinária e jurisprudencial, vem sendo entendida pelo Supremo Tribunal Federal como em acordo com a Constituição Federal de 1988, como ficou claro a partir do hábeas corpus nº 72.131, sessão de 23 de novembro de 1995, garantido então a aplicabilidade desta hipótese.

Assim, afirmou a Suprema Corte deste país que inexiste diversidade entre a condição jurídica do devedor na alienação fiduciária e a do depositário infiel, de maneira que a prisão de quem foi declarado, por decisão judicial, como depositário infiel, é constitucional, seja quanto ao depósito regulamentado no Código Civil seja no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária [13].

Conclui-se então pela possibilidade da prisão civil do devedor fiduciário, como forma de, primeiramente, coagir o devedor a adimplir com o que é por ele devido e, em uma segunda análise, prover o instituto da alienação fiduciária da credibilidade necessária para que ofereça o mercado de capitais da segurança de que precisa para poder operar de maneira eficaz e consistente.

Como já foi exaustivamente mencionado neste ensaio, possui a alienação fiduciária em garantia o objetivo de dinamizar os negócios, estimulando a compra e venda e facilitando a circulação do capital. O novel legislativo ensejou a ampliação dos contratos de mútuo destinados à aquisição de bens móveis, sem, no entanto, perda de segurança fundamental à existência do mercado de capitais.

Ao assumir a alienação fiduciária tão imponentes compromissos, mostra-se imprescindível que seja ela dotada de efeitos que garantam sua efetividade sob pena de que caia o instituto em total descrédito face à sua inoperância. Em se considerando inadmissível a prisão civil do devedor fiduciário, abre-se a possibilidade de que venha o negócio fiduciário a sofrer dos mesmo malefícios que eivam as demais modalidades de garantia real e pessoal.


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Notas

1. Tratava-se a actio fiduciae de uma ação de cunho pessoal contra o credor, na hipótese de o mesmo deixar de restituir a coisa ou não lhe dar a destinação contratada. Assim, em tendo o credor vendido a coisa a terceiro, poderia o devedor, ao invés do desfazimento do negócio, obter indenização pelo não cumprimento do pacto de restituição da coisa.

2. São as garantias reais representadas por uma coisa que pertence ao devedor ou a terceiro, e de cujo valor se serve o credor para ressarcimento, não se realizando o pagamento. No sistema atual do direito brasileiro, são garantias reais o penhor, a anticrese, a hipoteca e a alienação fiduciária. Já, as garantias pessoais, entre as quais estão a fiança e o aval, aquelas em que uma terceira pessoa se compromete perante o credor a pagar a obrigação, se não o fizer o devedor.

3. PARIZZATO, João Roberto. Alienação Fiduciária: Doutrina, Jurisprudência e Prática Forense, Ouro Fino- MG: Edipa, 1998.

4. Consagrado no artigo 1.163 do Código Civil Brasileiro, é o pacto comissório ente comum aos contratos de compra e venda e faculta ao credor desfazer o contrato, se não cumprido até certo dia pelo devedor, ficando de pleno direito com a coisa passados dez dias do vencimento da obrigação.

5. Importante que se saliente que é o pacto comissório também vedado às demais modalidades de garantia real, tais quais o penhor, a anticrese e a hipoteca, na forma do que dispõe o artigo 765 do Código Civil: "É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário, a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento".

6. "O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor".

7. "O instrumento de alienação fiduciária transfere o domínio da coisa alienada, independentemente da sua tradição, continuando o devedor a possuí-la em nome do adquirente, segundo as condições do contrato, e com as responsabilidades de depositário".

8. "O proprietário fiduciário, ou aquele que comprar a coisa, poderá reivindicá-la do devedor ou de terceiros, no caso do § 5° deste artigo".

9. "Na contestação só se poderá alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais".

10. (STJ – MC 3791 – MG – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 18.03.2002)

11. Considerações Sobre a Cumulação das Garantias Pessoais e Reais, na Alienação Fiduciária.

12. "Não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão do depositário infiel".

13. Morais, Alexandre – Direito Constitucional, pág. 128, 129.

Sobre o autor
Giorgio Forgiarini

acadêmico de Direito na UNIFRA/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FORGIARINI, Giorgio. Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3108. Acesso em: 24 dez. 2024.

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