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Monismo e dualismo no sistema brasileiro:

A hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro

Agenda 01/02/2015 às 09:22

Com relação às teorias monista e dualista do Direito Internacional, não se pode dizer que a jurisprudência segue fielmente uma delas, pois, na realidade, carrega traços de ambas, criando uma terceira teoria.

1. INTRODUÇÃO

No ano de 1795, o prussiano Immanuel Kant já exarava orientações gerais para conciliação das ordens jurídicas dos diversos Estados (Zum ewigen Frieden, “À paz perpétua”).

Por ter fortes influências jusnaturalistas e, portanto, acreditar em direitos inerentes a todo ser humano, o provinciano de Königsberg afirmava que o direito positivo instituído pelo Estado existe para organizar o exercício do direito natural no mundo empírico [1]. Assim, conquanto reconhecesse a existência de mais de uma ordem jurídica incidente sobre um povo que houvesse optado por aderir a tratados internacionais [2], afirmava que a dignidade humana deveria ser tratada como imperativo categórico e defendida transnacionalmente [3]. Mais tarde, essa noção resultará no reconhecimento da chamada r2p, ou responsibility to protect, tema amplamente debatido na contemporaneidade [4].

Durante o século XIX, foi invocada a expressão “international law is part of the law of the land” [5], defendida por Hersch Lauterpacht e combatida por Heinrich Triepel, em sua obra Völkerrecht und Landesrecht (1899) [6].


2. HISTÓRICO E CONCEITOS

O dualismo é a corrente segundo a qual há duas ordens jurídicas impostas sobre o Estado que participa do Direito Internacional: interna e externa (internacional), plenamente independentes. Os tratados unicamente vinculariam determinado Estado em âmbito internacional, nas relações com os demais Estados, mas nunca poderiam ter força dentro do território, ou criar vínculo obrigacional, verbi gratia, entre o povo e governo (enquanto Administração interna).

Vê-se que, assim, a teoria sai em defesa da soberania dos Estados, razão pela qual trazia a necessidade de se reproduzir internamente as normas contidas nos tratados firmados para que estas pudessem vigorar neste âmbito. É a teoria da incorporação, formulada por Paul Laband [7].

Em 1934, o austríaco Hans Kelsen publicou sua maior obra, chamada "Teoria Pura do Direito" (Reine Rechtslehre), na qual defendia a exitência de uma só ordem jurídica, de forma que a interna seria subordinada à internacional. Buscava o jurista alertar para a “crescente centralização da unidade organizada de uma comunidade universal de direito mundial, ou seja, a formação de um Estado mundial” [8]. Eis a essência do monismo.

Para o austríaco, o monismo seria mera “consequência gnoseológica” da teoria pura do direito [9], visto que considera:

(...) impossível afirmar que o ordenamento jurídico estatal singular e o direito internacional e ainda dois ordenamentos jurídicos estatais, lado a lado, sejam sistemas normativos válidos, ao mesmo tempo. [10]

Assim, pelo prisma da teoria pura do Direito, deve haver uma única ordem jurídica, com respeito à hierarquia dentre as normas, visando a evitar-se “contradições insuperáveis” [11].

Há ainda ramificações de ambas as correntes. O dualismo é também defendido na forma de dualismo radical ou dualismo moderado, segundo o qual basta um procedimento diferenciado pelo Legislativo, com vênia do Executivo, para que o tratado seja incorporado no direito nacional[12].

O monismo, por sua vez, pode ser subdivido em monismo nacionalista, segundo o qual o sistema é uno mas a norma nacional (sobretudo a Constituição) é soberana, defendida, v.g., por Friedrich Hegel; e monismo internacionalista, pelo qual as normas de Direito Internacional se sobrepõe às internas, em grau hierárquico, defendida por Kelsen.


3. APLICAÇÃO NO BRASIL

A teoria dualista era firmemente seguida no Brasil, até a década de 1970. As normas de Direito Internacional deveriam ser, embora aprovadas pelo Congresso Nacional, posteriormente reproduzidas para viger internamente.

Entretanto, através do Recurso Extraordinário de nº 71.154/71, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar sobre a aplicabilidade do prazo prescricional para cobrança de cheques. O art. 15 da pretérita lei sobre o título de crédito determinava que seria de cinco anos; o art. 52 da Lei Uniforme de Genebra, por sua vez, ordenava o prazo de seis meses. Da seguinte forma foi a decisão, de relatoria do Min. Oswaldo Trigueiro:

LEI UNIFORME SOBRE O CHEQUE, ADOTADA PELA CONVENÇÃO DE GENEBRA. APROVADA ESSA CONVENÇÃO PELO CONGRESSO NACIONAL, E REGULARMENTE PROMULGADA, SUAS NORMAS TÊM APLICAÇÃO IMEDIATA, INCLUSIVE NAQUILO EM QUE MODIFICAREM A LEGISLAÇÃO INTERNA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. [13]

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Assim, passou-se a adotar uma terceira corrente, conforme a qual seria necessária anuência do Poder Legislativo nacional, embora desnecessária a reprodução da norma. Gize-se que atualmente o uso do cheque é regulamentado pela Lei nº 7.357, de 2 de setembro de 1985, que dispõe acerca do prazo prescricional de igual forma que a Convenção de Genebra (seis meses).

A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, adota a teoria do monismo internacionalista, quando, em seu artigo 27, dispõe que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

O tema no direito pátrio, contudo, deve ser analisado através do método hermenêutico-concretizador, proposto por Konrad Hesse, pelo qual deve o intérprete partir da norma constitucional para a resolução do problema, com apoio, máxime, dos princípios da unidade da Constituição (Einheit der Verfassung), da força normativa da Constituição (normative Kraft der Verfassung), da concordância prática (praktischen Konkordanz), e da eficácia integradora [14]. Para o Supremo Tribunal Federal:

É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. [15]

Neste sentido se posicionam as normas de Direito Internacional no ordenamento jurídico brasileiro, atualmente de forma peculiar.

Os tratados comuns, sem quaisquer nuances ensejadoras de tratamento diverso, são incorporados ao ordenamento interno como normas infraconstitucionais, após negociação, assinatura, ratificação pelo Poder Executivo autorizado pelo Congresso Nacional e entrada em vigor [16].

Por força do art. 5º, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Aqueles que não passarem pelas formalidades exigidas para serem considerados normas constitucionais, mas, ainda assim, tratarem de direitos humanos, são considerados, pelo Supremo Tribunal Federal, normas supralegais. Senão, veja-se:

Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do CC de 1916 e com o DL  911/1969, assim como em relação ao art. 652 do Novo CC (Lei  10.406/2002). [16]

No caso exposto, o Tribunal considerou o Pacto de São José da Costa Rica norma supralegal. A consequência foi o engessamento de toda ordem normativa infraconstitucional, vez que, conquanto a Constituição da República permita a prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII), as demais normas não poderão infringir o tratado. Daí o chamado controle de convencionalidade, defendido por Valério Mazzuoli [18].

Ainda, o art. 98 do Código Tributário Nacional dispõe que “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. Por conseguinte, em matéria tributária, aplica-se igual sistemática: no direito tributário, os tratados internacionais se encontram em posição superior à legislação ordinária, orbitando entre estas e as leis complementares. Seria impossível conclusão diversa, considerando que a norma que as deu referido status é lei com roupagem complemenar - o Código Tributário de 1966, recepcionado como lei complementar pela Constituição de 1967.

Por fim, Paulo Henrique Gonçalves Portela ressalta uma terceira possibilidade de harmonização da ordem jurídica interna com a internacional: a primazia da norma mais favorável [19], sobretudo quando o tema é direitos humanos.


4. CONCLUSÃO

Vê-se, neste sentido, determinada consolidação jurisprudencial e homogeneidade quanto à aplicabilidade das normas de tratados no direito brasileiro. Não se pode dizer, assim, que a jurisprudência segue a teoria monista ou dualista, mas sim que carrega traços de ambos, criando uma teoria tertia.


REFERÊNCIAS E Notas

 [1] BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UnB, 1984, p. 88.

[2] KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução por Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 33/34.

[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 58.

[4] BELLAMY, A. J. (2008), The Responsibility to Protect and the problem of military intervention. International Affairs, 84: 615–639. doi: 10.1111/j.1468-2346.2008.00729, p. 615. Ainda, Early warning, assessment and the responsibility to protect. Report of the Secretary-General. Sixty-fourth session. General Assembly, United Nations, on July 14th, 2010.

[5] “The doctrine that International Law is part of the law of the land is a rule of positive law.  For that reason alone, it ought not to be lightly abandoned.  From a more general point of view it must be regarded as a beneficent doctrine inasmuch as it brings into prominence the fact that the obligations of International Law are, in the last resort, addressed to individual human beings.  To that extent it serves as yet another explanation of the reason why the general principles of law and morality must also lie at the basis of rules of International Law”. OPPENHEIM, Lassa Francis Lawrence. LAUTERPACHT, Sir. Hersch. MACNAIR, Baron Arnold Duncan. Treatise, I, Seventh Edition. Publisher:   Longmans, Green & Co.: London, 1948. Pp. 41-42.

[6] CICCO FILHO, Alceu José. A lei internacional na ordem jurídica intera: os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In Revista da AGU – Advocacia-Geral da União. Ano XII – Número 35 – Brasília-DF, 2013, p. 15. Disponível em <http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/18004447>. Acesso em 20 de agosto de 2014.

[7] PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário. 6ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p. 56.

[8] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução: J.Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 144.

[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução: J.Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 148.

[10] Opera citatum.

[11] Op. Cit.

[12] PEREIRA, Bruno Yepes. Curso de direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 48.

[13] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 71154/PR. Ministro Relator: Oswaldo Trigueiro. Julgado em agosto de 1971. Disponível em: <http://redir.stj.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=166999>. Acesso em: 20 de agosto de 2014

[14] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 92.

[15] ADI 1480 MC, Relator (a): Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997, DJ 18-05-2001. PP-00429 EMENT VOL-02031-02 PP-00213.

[16] PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário. 6ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p. 138-143.

[17] RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009, com repercussão geral. No mesmo sentido: RE 349.703, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. Vide: AI 601.832-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-3-2009, Segunda Turma, DJE de 3-4-2009; HC 91.361, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 6-2-2009.

[18] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 7ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

[19] PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário. 6ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p. 59.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA NETO, Jurandi Ferreira. Monismo e dualismo no sistema brasileiro:: A hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4232, 1 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31184. Acesso em: 22 dez. 2024.

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