1.1 Origem histórica do silêncio administrativo - Sistema de contencioso administrativo e herança francesa
O parco volume de estudos no Brasil a respeito do silêncio administrativo talvez se explique pela própria origem da doutrina sobre as consequências de omissões da Administração, que se confunde, impreterivelmente, com o sistema de controle jurisdicional dos atos administrativos adotado, por diversas circunstâncias, nos mais diferentes países, mas não no Brasil republicano.
Com efeito, os dois sistemas de controle jurisdicional da Administração (ou sistemas administrativos), o contencioso administrativo (ou sistema francês) e o judiciário (ou jurisdição única, ou sistema inglês), possuem características que os diferenciam intrinsecamente e cuja análise ajuda a entender o natureza e a evolução da doutrina do silêncio administrativo.
O contencioso administrativo nasceu na França, em agosto de 1790, ainda durante o movimento revolucionário iniciado em 14 de julho do ano anterior, por intermédio da Lei n. 16-24, que separava as funções administrativas e judiciárias:
“As funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas; os juízes não poderão, sob pena de crime funcional, perturbar seja de que maneira for as operações dos corpos administrativos, nem citar perante si os administradores em razão de suas funções”
Essa separação é resultado de uma concepção de tripartição de poderes peculiar ao momento revolucionário francês, durante o qual a preocupação em se conservar os valores da nova classe dominante ocupava os que pensavam novos modelos institucionais.
Por essa lógica, ao judiciário, sempre associado ao conservadorismo da nobreza e frequentemente avesso aos princípios da Revolução, não deveria ser dado avaliar a conduta dos administradores: o medo de retrocesso foi traduzido, numa espécie de eufemismo institucional, na criação da jurisdição administrativa, em que os juízes dos atos do Poder Executivo seriam seus próprios membros.
Assim, criou-se um sistema de auto-julgamento,[1] também conhecido como sistema do administrador-juiz, no qual a Administração apreciava as demandas propostas contra ela mediante recurso hierárquico,[2] perdurou até que Napoleão assumisse o controle do Estado francês, terminando o processo revolucionário, em 1799.
Naquele mesmo ano foram criados os Conselhos de Prefeitura (hoje denominados Tribunais Administrativos) e o Conselho de Estado, este funcionando como revisor das decisões daqueles e das decisões dos ministros que continuavam a atuar como primeira instância da jurisdição administrativa.
Essa mudança é parte do processo de amadurecimento institucional do Estado francês e das transformações do próprio direito administrativo, sendo responsável pela separação entre a função administrativa propriamente dita e a função jurisdicional da Administração.[3]
Nesse cenário institucional - adotado também, não sem vicissitudes, na Espanha, na Itália, na Finlândia, na Grécia e na Turquia, dentre outros - o querelante que buscava a justiça administrativa deveria levar ao julgador, em termos gerais, o ato da autoridade subalterna que lhe teria ferido direito.
Dessa forma, estipulava-se a regra da decisão prévia, que, conforme exposição de Jean Rivero,[4] é resquício histórico da teoria do administrador-juiz, já que a criação do Conselho de Estado não teve o condão de eliminar a necessidade de o administrado recorrer previamente ao ministro de estado para então socorrer-se do Conselho.
Fato é que, assim sendo, bastava que a Administração não respondesse ao requerente para que o administrado se visse diante de uma situação de prejuízo inadmissível e sem possibilidades reais de discussão da querela levada a autoridade pública: daí a clarividente importância de se estudar o silêncio da administração.
Como ensina o professor André Saddy:
“Por isso, ante tal perigo, ou seja, diante do fato de não haver ato prévio a impugnar e, consequentemente, impraticável qualquer revisão judicial, surgiu a doutrina do silêncio administrativo.” [5]
Em 1864, o legislação francesa iniciou, então, o tratamento do silêncio, com que a jurisdição administrativa já se defrontava há algum tempo, através do Decreto de 2 de novembro, que determinou, em seu artigo 7, que petições endereçadas a ministros não respondidas pelo requerido em 4 meses seriam consideradas negadas.
Algumas outras normas infralegais se sucederam, mas somente em 1900, com a edição da Lei de 17 de julho, é que se passou a entender que qualquer pretensão deduzida em face da Administração Pública francesa que não obtivesse resposta em 120 dias estariam implicitamente rejeitadas.
A regra da rejeição implícita, ou do silêncio negativo, começou a ser revertida a partir da segunda metade do século XX, [6] mas a tendência a considerar o silêncio administrativo como aceitação do pedido formulado pelo particular à Administração Pública sofreu mudança a partir de 1995, através de várias alterações legislativas que culminaram na Lei 2000-321, de 12 de abril de 2000, segundo a qual, não havendo decisão da Administração em dois meses após a protocolização do requerimento, considera-se o pedido rejeitado.[7]
O pioneirismo do direito francês tem suas explicações históricas e sociais atreladas aos movimentos revolucionários e a intensa produção doutrinária dos primórdios da construção do Estado Liberal, mas isso não quer dizer que o fenômeno esteve restrito àquele ordenamento.
1.2 O silêncio administrativo em outros ordenamentos com jurisdição administrativa
Outros países que também possuem jurisdição administrativa fornecem-nos bons exemplos de pioneirismo em enfrentamento do silêncio administrativo.
Na Itália, em fins do século XIX, o Consiglio di Stato já utilizava-se da noção de silêncio-recusa (silenzio-rifiuto) para analisar casos de omissão da Administração. O tratamento legislativo, contudo, só veio em 3 de março de 1934, com o Decreto Real que promulgou a Lei Comunal e Provincial segundo a qual não havendo resposta ao jurisdicionado 120 após a consulta ela será considerada rejeitada.
Interessante destacar a Lei número 205, de 21 de julho de 2000, que prevê a possibilidade de o juiz, seguro quanto ao silêncio da Administração, fixar prazo de até 30 dias para que o poder público supra a falta de manifestação. Estipula essa lei, além disso, que, findo o prazo estabelecido, estará o magistrado autorizado a nomear comissário para a prática do ato. [8]
A Espanha, que possui um arcabouço institucional bastante semelhante ao francês, em especial no concernente ao contencioso administrativo, foi a primeira a editar norma sobre a técnica envolvendo o silêncio administrativo com o Real Decreto de 20 de setembro de 1851 que, entretanto, só veio a obter caráter geral com o Estatuto Municipal de 8 de março de 1924. [9]
Mais tarde, a Lei da Jurisdição Contencioso-Administrativa, de 27 de novembro de 1957, minorando o obstáculo da via administrativa como pressuposto processual, [10] estabelece que, findo um prazo de 30 dias sem qualquer resposta da Administração, pode o requerente socorrer-se diretamente do judiciário.
Atualmente, a Lei número 30, de 26 de novembro de 1992, estabelece casos em que o silêncio administrativo terá efeitos negativos ou positivos - ou seja: casos em que a não-ação da Administração importará em denegação ou aprovação do pedido.
Como se pode perceber, o desenvolvimento legislativo e jurisprudencial do silêncio administrativo é associado à existência do contencioso administrativo exatamente por ter imposto, em seus primórdios, o esgotamento via administrativa como requisito para a admissibilidade do recurso contencioso-administrativo.
No entanto, isso não quer dizer que a ausência de obrigatoriedade da jurisdição administrativa elimine os perigos do silêncio do poder público, tampouco que países cujo ordenamento jurídico autorize a via direta não enfrentem problemas com o não-ato estatal.
Pelo contrário, a história mostra um esforço crescente em entender o que significa e como o direito deve responder ao silêncio da Administração, mesmo quando os impulsos iniciais desse esforço parecem não existir mais, o que nos mostra que a vida institucional dos diversos modelos de Estado reclama a correção da conduta administrativa para conseguir materializar os objetivos que colima.
O Estado brasileiro, de peculiares dificuldades para diminuir a tardança de suas ações, não é menos sujeito a críticas por sua não-ação porque o administrado pode, a qualquer tempo, socorre-se do judiciário: essa ferramenta não acoberta as consequências do silêncio, conforme se verá.
1.3 Silêncio administrativo no direito brasileiro
Muitas das razões pelas quais o direito brasileiro, historicamente, não trata com profundidade o silêncio administrativo, reside no fato de que o ordenamento jurídico pátrio não impõe a regra do ato prévio para que o administrado se acuda do judiciário em casos de ilegalidade cometida pela Administração Pública. [11]
De fato, a pequena experiência que o sistema jurídico brasileiro teve com o contencioso administrativo, que, em geral, foi resultado de um esforço abusivo do executivo para controlar a atividade jurisdicional, [12] não foi suficientemente estável para suscitar a preocupação com o fenômeno da omissão administrativa.
Ademais, como o nascimento da doutrina do silêncio administrativo está intrinsecamente ligada ao processo administrativo, não há como esquecer que o Estado brasileiro nunca deu, pelo menos não por um longo período de tempo, grandes exemplos de opções democráticas, razão pela qual fazia pouco sentido buscar a correção das ilegalidades da Administração perante ela mesma.
Nem por isso os legisladores deixaram de tratar do tema e de nos fornecer exemplos interessantes que indicam, não en-passant, o posicionamento geral da ordem jurídica.
Com efeito, o aclamado administrativista brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, em monografia pioneira sobre o assunto datada de 1939, reconhece a ausência de referencial legal para se interpretar os sentidos da omissão da Administração, extraindo de outros ordenamentos exemplos para compor a teoria do silêncio administrativo que propõe.
De todo modo, desde então alguns diplomas normativos ajudam a ilustrar como o direito brasileiro naturalmente incorporou os valores que restringem a discricionariedade da Administração na produção de manifestações perante os administrados.
É o caso do §1º, do artigo 11, do Decreto Federal 61.244/1967 que impõe a aprovação tácita do Ministério da Fazendo quando esse órgão não responde ao pedido de audiência da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) em processos que analisam a concessão de benefícios fiscais a novos produtos oriundos da Zona Franca de Manaus.
No mesmo sentido, o pedido de baixa nos registros das empresas de pequeno porte, regidas pela Lei Complementar 123/2006, considera-se deferido ultrapassados 60 do pedido nos órgãos federais, estaduais e municipais (art. 11).
Além desses, citem-se outras hipóteses legais que exemplificam o chamado “silêncio administrativo interno”, que acontece quando há a necessidade de que um órgão ou ente público se manifeste sobre a produção de outro, como nos seguintes casos casos: sanção de lei do chefe do Executivo (art. 66, § 3o, da CRFB e art. 30 da Lei Federal no 6.448, de 11 de outubro de 1977); manifestação do Congresso a respeito de medida provisória; o estágio probatório (art. 41, § 4o, da CRFB); parecer da comissão técnica em projeto de lei (art. 20 do Regimento Comum do Congresso Nacional - Resolução no 1, de 1970-CN); convênio para a concessão de fomento tributário (art. 4.o da, de 07 de janeiro de 1975).
Notas
[1] Mais tarde, foi reforçado pelo Decreto de 2 de setembro de 1795 que estipulava: “Proibições iterativas são feitas aos Tribunais de conhecerem dos atos da Administração, seja de que espécie forem”
[2] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros: 2011.
[3] RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Coimbra: Almedía, 1981.
[4] Idem.
[5] SADDY, André. Silêncio Administrativo: origem, requisitos e efeitos. Revista Síntese - Direito Administrativo, Ano VIII, n. 96, dez. 2013, p. 38.
[6] CHEVALLIER, Jacques. A reforma do Estado e a concepção francesa de serviço público. Revista dos Serviço Público, vol. 120, n. 3, Brasília: ENAP, set/dez 1996, ano 47.
[7] Anota-se, oportunamente, que Fernando Marcelo Mendes noticia a existência de um projeto de lei tendente a atribuir efeitos negativos ao silêncio administrativo como forma de descomplicar a função jurisdicional da Administração e construir uma relação de confiança entre o Estado e o cidadão. MENDE S, Fernando Marcelo. Discricionariedade administrativa e os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação no controle judicial do silêncio administrativo. Dissertação de Mestrado, PUC/SP, 2005.
[8] TOMELIN, Georghio Alessandro. Silêncio. Inadimplemento no processo administrativo brasileiro. in TÁCITO, Caio (dir.) Revista de Direito Administrativo, vol 226, out./dez. 2001. Rio de Janeiro, Renovar: 2001.
[9] SADDY, André. Silêncio Administrativo: origem, requisitos e efeitos. Revista Síntese - Direito Administrativo, Ano VIII, n. 96, dez. 2013
[10] O direito administrativo espanhol, muito embora se apresente pioneiro no estudo dos efeitos dos atos da Administração, ainda não eliminou por completo, como o fizeram França e Itália, a via administrativa como requisito prévio do recurso contencioso-administrativo.
[11] Há duas célebres exceções a essa regra: a primeira é a inscrita no artigo 217, parágrafos 1 e 2 da Constituição Federal (pelo qual fica estabelecida a necessidade de esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva previamente ao recurso ao judiciário); a segunda compõe a hipótese de cabimento da Reclamação Constitucional, estipulada no artigo 7, parágrafo 1, da Lei n. 11.417/2006. Ambos os casos recebem nomes variados por parte da doutrina, mas, no geral, são chamados de “jurisdição condicionada” ou "contencioso administrativo vinculado”, todos eles a denotar sua excepcionalidade dentre os princípios de acesso ao judiciário.
[12] CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Administrativo do Brasil, vol. v. São Paulo-SP: Revista dos Tribunais, 1962.