Resumo: O objetivo do presente trabalho é demonstrar parte da extrema dificuldade que os/as transexuais possuem de terem algumas de suas garantias reconhecidas pelo Estado Democrático de Direito. Frisa-se a burocracia para que estas pessoas tenham efetivadas suas pretensões para a mudança de nome civil, mormente após a cirurgia de transgenitalização. Para entender os mecanismos utilizados pelo Poder Judiciário – tendo em vista a mora do Poder Legislativo nas regulações a ele obrigadas –, aplica-se o que na Ciência Jurídica se chama de analogia, para evitar que lacunas ou ausências totais de leis regulatórias impeçam que cidadãos e cidadãs tenham garantidos direitos equivalentes a todos. Busca-se explanar a complexidade existente no momento de se exigir a modificação do nome civil de nascimento pelo social, no registro da pessoa que se transgenitalizou, devendo o Estado corroborar para tal mudança, a fim de evitar injúrias, chacotas e situações de horror ao/à interessado/a na alteração do seu nome civil. A maneira encontrada pelos atores do Direito é formar precedentes judiciais no sentido de que homens e mulheres, após transgenitalizados, obtenham a segurança jurídica cabível para o exercício pleno das garantias professadas pela atual Constituição da República, no que diz respeito à dignidade da pessoa humana e demais princípios dela decorrentes. Por óbvio, a breve reflexão trazida não esgota a necessidade de aprofundamento do tema em futura pesquisa.
Palavra-chave: transexual; transgenitalização; analogia; registro civil; dignidade da pessoa humana.
Introdução
As questões que envolvem a sexualidade dos seres humanos são, ainda, alvo de tabus e discriminação, seja por fatores religiosos ou, até mesmo, moralistas. Ser heterossexual na sociedade atual é guarnecer-se de garantias jurídicas nem sempre permitidas aos demais que detêm sexualidade diversa. Por mais que a Constituição da República seja cidadã e iguale formalmente todos os indivíduos brasileiros, a materialização desta igualdade não é, por total, vista e sentida por aqueles que são discriminados em virtude da diferente orientação sexual que têm. As lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, os LGBTs, estão no rol de pessoas ainda chacoteadas e taxadas de anormais.
Presume-se que as pessoas transexuais são discriminadas com mais intensidade, pois a característica sexual, de tão peculiar, exalta a vontade de ser, pois já se sentem, de gênero diverso. As consequências jurídicas para as pessoas que se utilizam do procedimento clínico e cirúrgico de mudança de sexo biológico são as mais variadas. Logo, o Estado não deve se calar diante dessas novas situações que têm impacto forte na vida da pessoa que se transgenitalizou, dos seus familiares e na sua própria convivência com os demais indivíduos do meio social em que está inserida.
Não há que se falar em atecnia, ou utilizar-se da ausência de lei regulatória para não dar respaldo jurídico a situações fáticas, como o que se pretende explanar. O Direito fornece meios para que os investidos pelo Estado, os magistrados, não fujam jamais da incumbência dada a eles de pôr fim a litígios e garantir direitos a quem quer que se sinta lesado.[2]
Todo ser humano, ao nascer, tem direito a um nome que é escolhido por seus genitores, ou, em caso de adoção, por seus adotantes. A lei confere essa possibilidade e, inclusive, é a partir deste registro que esses novos indivíduos começam sua vida civil,[3] como incapazes. A força do registro é tamanha que, em tese, reveste-se de imutabilidade. A todos, a possibilidade de troca do nome requer decisão judicial. A fundamentação para se garantir essa troca aos/às transexuais é a sua nova identidade, para que ela seja aceita, respeitada e vista como legítima e, portanto, para que eles/as exerçam plenamente seus direitos sexuais, consagrados pela dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da Constituição Federal/88).
As garantias advindas por meio de decisões judiciais e doutrina formadas permitem aos/às transexuais a possibilidade de ter proteção jurídica nos seus anseios e, em via reflexa, constroem um comportamento social com vistas a diminuir o preconceito e firmar o princípio constitucional da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, IV c/c art. 5º, XLI da Constituição Federal/88). Vale ressaltar o escólio de Sabadell (2002, p. 98), ao lecionar que “[q]uanto mais aberto, flexível e abstrato é o sistema jurídico, mais fácil será operar uma mudança social através de sua interpretação”. E é pelo viés hermenêutico que se averiguará a possibilidade jurídica de alteração, nos registros funcionais, do nome civil pelo social à pessoa transgenitalizada.
As diversas características sexuais
As características sexuais são as que determinam o ser humano em suas vontades e desejos e, também, na manutenção da espécie. Há muito cultivou-se, e ainda se cultiva, a ideia de se permitir relações sexuais apenas para a reprodução, tornando-se inadmissível a utilização dos atos sexuais para satisfazer a libido. Nesse sentido, ressalta Levy (2004) que, frente ao discurso moderno, o instituto do casamento é o conceito escolhido pela modernidade para subpor o sexo feminino ao masculino. Isso porque a função primeira do casamento é a procriação, a qual distribui os papéis aos atores da relação, ao homem e à mulher, considerando-se os aspectos biológicos destas pessoas.
São variados os fatores para não se aceitar uma sexualidade[4] diversa, um deles é o religioso. O cristianismo, em suas escrituras, revela que atos sexuais homossexuais são reprimidos pela religião e que se configuram como pecado.[5] Segundo Levy (2004), a socialização feita a um indivíduo pela família, escola e por outras instituições, como a igreja, faz com que esta pessoa “adquir[a] determinadas capacidades, determinadas motivações e aspirações e interioriz[e] um conjunto de normas e regras de modo a adaptar-se àquilo que a sociedade considera ‘próprio’ e em con-formidade”, em se considerando a função procriativa do casamento.
A força da religião e os padrões comportamentais androcêntricos[6] fizeram a sociedade brasileira, com grande número de cristãos e machistas, preconceituosa, a ponto de segregar os que fogem às regras de ‘normalidade’. Seguindo a linha de raciocínio de Levy (2004), a postura masculina e a feminina são desenhadas pela heteronormatividade que abrange não só os desejos sexuais tidos como aceitáveis, fundados na premissa da procriação, como determina também o comportamento de macho e fêmea no contexto social.
Partindo-se para as diferenças básicas entre as características sexuais,[7] têm-se:
- Homossexual: é a pessoa que sente atrações física e sexual por seres humanos de sexo semelhante ao seu, sem, contudo, odiar ou entrar em conflito psíquico com a sua figura física, ou seja, a lésbica se enxerga e aceita seu sexo feminino-biológico e o gay se vê como tal e também aceita o seu sexo masculino-biológico;
- Heterossexual: trata-se de característica sexual em que pessoas sentem atrações física e sexual por pessoas do sexo oposto;
- Transexual: é caso mais delicado, uma vez que as características de homo e heterossexual podem ser confundidas. Basicamente, é a pessoa que tem a sensação de ser de gênero diverso ao seu e, de forma odiosa, reprime sua condição física atual, entendendo que deveria ter nascido com sexo diferente;
- Bissexual: aquele ou aquela que sente atração por pessoas de ambos os sexos; e
- Travesti: é o homossexual que se veste e se conduz como se do gênero oposto fosse.
O ordenamento jurídico brasileiro não faz distinção de sexo e gênero quanto à preservação de direitos. A norma é expressa ao expor que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, caput da Constituição Federal/88).
O/A transexual e a transgenitalização
Talvez a característica sexual mais atacada com preconceito seja a transexualidade. Isso porque, para o senso comum, ainda é inadmissível suportar a ideia de alguém se relacionar com outro do mesmo sexo. Acentua-se mais quando uma pessoa quer se portar como sendo do gênero oposto, na vida quotidiana. Mutatis mutandi, ocorre uma espécie de homofobia,[8] porém direcionada aos transexuais que, por neologismo, pode-se classificar como ‘transfobia’.
O fenômeno da transexualidade é de enorme complexidade, pois o ser humano, psiquicamente, se vê como se de outro sexo/gênero fosse. Os casos se agravam a ponto de ele ou ela se mutilar em razão do desprezo pela condição física que possuem. Por inferência, não é simplesmente sentir desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo, antes da transgenitalização. É sentir nojo de si, por ter um sexo biológico que não corresponde ao que a psique entende como seu.
O mecanismo clínico e cirúrgico encontrado para satisfazer essas pessoas, na materialização da mudança física de órgão sexual, é a transgenitalização. Trata-se, em linhas gerais, de procedimento médico de remoção da genitália masculina ou feminina e consequente formação de similar do sexo biológico oposto. O tema é regulado pela Resolução 1652/2002, do Conselho Federal de Medicina - CFM,[9] e, recentemente,[10] a normatização do procedimento pelo Sistema Único de Saúde - SUS foi estabelecida por meio da Portaria nº 859/2013, do Ministério da Saúde - MS.
E apesar de haver instrumentos normativos abordando o tema e as técnicas de como se proceder à cirurgia de transgenitalização, o Poder Legislativo não regulou a matéria no sentido de dar orientações de como inserir a nova identidade do transgenitalizado na sociedade da qual faz parte. Há, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n° 70-B/1995[11] que até hoje percorre os corredores e sessões dessa Casa, sem qualquer decisão e consequente formação de lei.
A solução, então, é a procura do/a transexual pelo Poder Judiciário, para, após sentença favorável, modificar registros civis para inserir o nome social adequado à sua nova situação de pessoa transgenitalizada.
A intervenção do Poder Judiciário, por meio da analogia
Não pode o Judiciário jamais desviar-se de sua função social e soberana de proteger os direitos de seus cidadãos. O sistema jurisdicional brasileiro é complexo, pois traz consigo mecanismos de conceder posicionamentos jurídicos, mesmo que não haja lei para aplicar e/ou interpretar num caso concreto.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42) trouxe solução para conferir efetividade ao direito pleiteado quando da não existência de legislação. O seu artigo 4°[12] preleciona que ao magistrado deve ser dada condição de solucionar a controvérsia, seja pela lei, analogia, uso da doutrina e jurisprudência e pela utilização dos princípios gerais do Direito. Ora, com essa possibilidade ampliada, não pode o juiz eximir-se de cumprir sua função.
Tais meios de solução, dados pela referida Lei, reforça a necessidade de se restabelecer a paz quando há conflito de interesses e quando se devem resguardar direitos. E em se tratando da transexualidade, a Lex Mater de 1988 traz insculpida em seu artigo inaugural a “dignidade da pessoa humana”. É princípio de difícil definição, presente e base do ordenamento jurídico brasileiro, que pode ser entendido como a autoria de direitos por uma pessoa, apenas por sê-la pessoa. Este princípio tem impulsionado os julgamentos levados ao Supremo Tribunal Federal - STF, v.g.:
A extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria CR (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. (...) O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (...)
(RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-8-2011, Segunda Turma, DJE de 26-8-2011. Sem grifos no texto original)
Nos casos dos/as transexuais que se submetem à cirurgia de transgenitalização, não ser concedido direito de modificar seu assentamento de registro civil é tolhê-los/las na sua condição peculiar, degradá-los/las a situações ridículas e que trariam chacotas e danos imensuráveis à sua imagem, privacidade e honra. O caput do artigo 5º da Carta Magna e seu inciso X[13] trazem à tona a imagem, a honra, a privacidade e a intimidade, logo, são direitos constitucionalmente previstos, que também seriam atacados. Se a própria Constituição Federal os alberga, é dever do Estado garanti-los.
A analogia é um dos meios utilizados pelos magistrados para, nessas hipóteses, conferir aos artigos 57 e 58 da Lei dos Registros Públicos (nº 6.015/1973)[14] interpretação extensiva, no caso de transexuais, uma vez que o nome civil não deve servir de motivo uno de ironias e torturas verbais e sociais, já que é o meio de identificação da pessoa. O magistério de Reale (2001, p. 278), o qual afirma que a analogia se dá quando se estende a um caso, originariamente não previsto pelo legislador, aquilo que este previu para caso semelhante, em igualdade de razões, explica o fato motivador para estender, via hermenêutica jurídica, a possibilidade de alteração do nome civil pelo social. Traz à tona, inclusive, o brocardo jurídico: “ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio” (REALE, 2001, p. 278).[15]
Apesar de haver resistência do senso comum, quem deve decidir em prol dos que estão sob ameaça de direito é o Poder Público. Os cartórios vêm aceitando - a partir de decisões judiciais deferidas, já que ao registro civil prevê-se a imutabilidade -, a possibilidade de modificação do nome civil. Exemplo disso é uma decisão do Juiz Carlos Eduardo Batista dos Santos (2004)[16], do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT, que permitiu a J.R.S.G. a utilização de nome feminino e também a alteração em seu registro civil. Diz o entendimento do magistrado:
Forçoso é concluir-se que [a] transexuali[dade] não é mero estado de espírito ou opção sexual de uma pessoa, seja homem, seja mulher. Ao reverso, seria um profundo sentimento de inadequação e auto-rejeição das características sexuais externas, que, segundo a doutrina médica, conduz em número considerável de episódios, ao suicídio e auto-mutilação dos que o portam.
Nessa senda, importa salientar a doutrina de Coelho (2002, pp. 57-60), ao afirmar que as exigências sociais devem ser absorvidas pelo intérprete-jurídico, além de por ele racionalizadas, para que haja o que denomina de “novas leituras”, ou seja, “leituras tão inovadoras que chegam a criar modelos jurídicos inteiramente novos”. Com isso, o autor enuncia ser lícito concluir que, a partir de experiências jurídicas, quando juízes e tribunais emprestam novos sentidos às mesmas normas jurídicas, produzem, na verdade, novos enunciados sem, contudo, alterar o texto legal da norma. Dessas novas leituras surgem as “viragens de jurisprudência”, com o poder de regenerar o sistema jurídico e preservar a sua força normativa. Para o jurista, os atores do Direito são “instâncias heterônomas de criação abreviada do direito, sem que [...] estejam eles a usurpar a função privativa do poder legislativo” (COELHO, 2002, pp. 57-60).
Essa materialização de direitos, pela hermenêutica jurídica, garante ao/à transexual o acolhimento de sua dignidade humana e barra qualquer forma de tolhimento, haja vista sua nova identidade. Ao/à transexual não é defeso demonstrar sua nova identidade, mesmo sob qualquer forma de repressão.
Conclusões
O tema é emblemático por diversas razões culturais, religiosas e de moralismos arcaicos. A transexualidade é uma realidade de aparente inexistência, haja vista ser necessário aos/às transexuais se esconderem pela enormidade de preconceito e falta de aceitação pelos demais indivíduos da sociedade.
O intuito de se possibilitar ao/à transexual a mudança de nome é, tão somente, permitir-lhe o reingresso no meio social, sem que, para isso, ele ou ela necessite sofrer chacotas e injúria, esta última reprimida pelo Código Penal Brasileiro, em seu artigo 140.[17]
Ao Poder Judiciário conferem-se maneiras diversas de se julgar um caso concreto, tendo como premissa a salvaguarda de direitos de quem chama o Estado para pôr fim a um litígio. Analogia e formação de doutrina[18] e jurisprudência possibilitam sedimentar raciocínios sobre determinados temas, até que o poder elaborador de leis cumpra a sua função de regular os assuntos de interesse social.
Interpretar a Constituição Federal, e as normas jurídicas sob sua égide, é ver transcender nela o espírito humanista, pois não se pode conferir direitos apenas a alguns indivíduos. A luz constitucional, regada de princípios que garantem ao intérprete-aplicador do Direito a libertação a normas fechadas, faz com que o julgador, tendo-a como fonte incandescente, chegue o mais próximo da Justiça, que, segundo MacCormick (2006), é estabelecida por princípios básicos de direitos humanos, sendo estes assim identificados para serem tratados como irrevogáveis diante de outras reivindicações de princípio ou de política.
Por fim, a intenção de proteger esses direitos, aparentemente simples, aos/às transexuais, vai muito além de uma cédula de registro geral nova, pois concretiza a trajetória de um novo caminho traçado por eles/elas e com a força protetiva do Estado contra quaisquer formas de ataque, seja verbal, físico ou por outro meio violento, contra si, porque buscam apenas o reconhecimento e a felicidade como eles/elas são.