Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A reprodução assistida e as relações de parentesco

Exibindo página 1 de 3

Introdução

A Reprodução Humana Assistida é um tema polêmico e atual, que desencadeia debates éticos e questionamentos jurídicos, visto que interfere no processo de procriação natural do homem, fazendo surgir situações até pouco tempo inimagináveis, que desafiam o direito, principalmente no que tange às relações de parentesco, fazendo com que o conceito de filiação seja repensado.

Primeiramente, cabe ressaltar que o Brasil ainda não possui legislação específica que regule a Reprodução Assistida, e os julgados que tratam sobre o tema ainda são raros em nosso país. Portanto, este trabalho utiliza a doutrina, as regras éticas estabelecidas pelo Conselho Federal da Medicina e o direito comparado como base para as considerações que serão expostas adiante.

O Novo Código Civil menciona algumas técnicas de reprodução assistida, mas não vai além, visto que a matéria deverá ser tratada futuramente por lei específica. O art. 1.597, que trata da filiação, é um exemplo, pois além das hipóteses de presunção de paternidade previstas no código vigente, com a inserção dos incisos III, VI e V, também se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos de fecundação artificial homóloga, inclusive a post mortem, de fecundação in vitro (homóloga), e inseminação artificial heteróloga, com a prévia autorização do marido.

Tal dispositivo resolverá inúmeras dúvidas relativas à filiação e a reprodução assistida, contudo, deixará outras tantas sem solução. Em relação a esse problema, Silvio de Salvo Venosa1 lembra : "O Código Civil de 2002 não autoriza e nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador."


Conceito e técnicas de reprodução assistida

A Reprodução Humana Assistida é, basicamente, a intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com problema de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade.

Ressalta-se que a esterilidade e a infertilidade são doenças devidamente registradas na Classificação Internacional de Doenças (pela OMS) e, como tal, podem ser tratadas.

Embora a Reprodução Assistida não ataque diretamente a doença (esterilidade ou infertilidade), alguns doutrinadores defendem que ela deve ser entendida como uma terapia. Nesse sentido, afirma o autor espanhol Marciano Vidal "A esterilidade é uma doença ou conseqüência de uma doença, com seus componentes físicos, psíquicos e, inclusive, sociais. Deste ponto de vista, qualquer procedimento dirigido a remediá-la, desaparecendo ou não a causa que a origina, deve ser entendido como uma terapia."2

As principais técnicas de reprodução assistida são: a inseminação artificial (homóloga, post mortem ou heteróloga), a fecundação in vitro e as chamadas "mães de substituição".

Dependendo da técnica aplicada, a fecundação poderá ocorrer in vivo ou in vitro. Na inseminação artificial, a fecundação ocorre in vivo, com procedimentos que são relativamente simples, consistentes na introdução dos gametas masculinos "dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, dentro do útero, ou dentro do abdômen." (Eduardo Oliveira Leite, p. 38). No caso da Fecundação in vitro, o processo é mais elaborado e a fecundação ocorre em laboratório, de forma extra-uterina.

Dependendo da origem dos gametas, a inseminação ou fecundação será homóloga ou heteróloga. Será homóloga quando a fecundação se der entre gametas provenientes de um casal que assumirá a paternidade e a maternidade da criança. Será heteróloga, quando o espermatozóide ou o óvulo utilizado na fecundação, ou até mesmo ambos, são provenientes de terceiros que não aqueles que serão os pais socioafetivos da criança gerada.


Evolução histórica

Desde tempos remotos o homem pensou na possibilidade de fecundação fora do ato sexual. A mitologia é rica em casos de mulheres que engravidam fora do ato sexual, como por exemplo: Ates – filho de Nana, filha do Rei Sangário, que teria colhido uma amêndoa e colocado em seu ventre (Grécia), Kwanyin – deusa que possibilitava a fecundidade das mulheres que lhe prestassem culto (China); Vanijiin – deusa da fertilidade, mulheres que se dirigiam sozinhas a seu templo retornavam grávidas (Japão), Maria mãe de Jesus (Bíblia); no Brasil é conhecida a lenda do boto que engravida as mulheres que lhe dirigem o olhar.

Os avanços tecnológicos permitiram que o sonho mítico viesse a se tornar realidade. As modernas técnicas de inseminação e fertilização assistida tornaram esse "milagre" praticamente um fato "normal", não fossem as dúvidas sobre o desrespeito aos ritmos naturais da vida humana e a valores éticos.3

Dados Históricos4:


Inseminação artificial homóloga e post mortem

A inseminação artificial homóloga, quanto à filiação, não gera maiores problemas, pois o material genético utilizado no procedimento é fornecido pelo próprio casal que se submete à reprodução assistida e que ficará com a criança. Portanto, haverá uma conciliação entre a filiação biológica e a afetiva.

Entretanto, no caso da inseminação artificial post mortem, surgem algumas dúvidas no que tange à filiação, visto que a esposa (ou companheira) será inseminada com os gametas de seu marido (ou companheiro) já falecido.

Pelo Código Civil vigente, não cabe a presunção do art. 338, II, para registrar a paternidade da criança gerada através desta técnica, se a criança nascer após os 300 dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte. Superado esse lapso temporal, a única maneira para o reconhecimento é a ação de investigação de paternidade.6

Entretanto, o Novo Código Civil, em seu artigo 1.597, inciso III, ao dispor que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo se falecido o marido, assegura a filiação à criança gerada através da realização da inseminação post mortem, independentemente de quando ocorrer o nascimento.

Importante ressaltar que a presunção do art. 1.597. do Novo Código Civil diz respeito apenas ao casamento, não abrangendo, portanto, a União Estável. Devendo, nesse caso, o reconhecimento da criança ser realizado através de qualquer das hipóteses legais para o reconhecimento de filhos, visto que o art. 1609. do Novo Código Civil dispõe expressamente que o reconhecimento pode preceder o nascimento do filho.

Contudo, mesmo resolvida a questão da filiação, surgem dúvidas no campo do direito sucessório, visto que, no caso da inseminação post mortem, a criança será concebida após o falecimento de seu pai.

Pelo atual Código Civil, a criança nascida através da inseminação post mortem não teria capacidade para suceder, conforme artigo 1.577, que assim dispõe:

"Art. 1.577: A capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, que se regulará conforme a lei então em vigor"

Na opinião de Moreira Filho7, pelo fato da concepção se dar após o falecimento da pessoa que forneceu o gameta, não há que se falar em direitos sucessórios à criança. Entretanto, o referido autor lembra que existem correntes doutrinárias que defendem os direitos sucessórios à criança, desde que o de cujus assim lhe assegure através de testamento.

Justamente a sucessão testamentária foi a solução encontrada pelo Novo Código Civil para garantir os direitos sucessórios da criança nascida através de inseminação post mortem, conforme previsão do artigo 1799, inciso I, que dispõe:

"Art. 1.799. - Na sucessão testamentária, podem ainda ser chamados a suceder:

I – os filhos ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;"

Portanto, pelo NCC, a criança havida por inseminação post mortem somente terá direitos sucessórios se o de cujus assim os garantir através de testamento. Tal solução, com certeza, ainda irá gerar muita polêmica, em razão do tratamento distinto que o NCC confere à criança nascida através desta técnica, visto que os filhos naturais, os adotivos, os havidos de inseminação heteróloga e até de fecundação in vitro terão direito à sucessão hereditária, enquanto que os havidos de inseminação post mortem somente terão direito à sucessão testamentária.

Pela análise que acabamos de fazer, fica evidente que o Novo Código Civil admite e protege a realização da inseminação post mortem. Pessoalmente, entendemos que a legislação deveria proibir a referida técnica, visto que a reprodução assistida deve ser utilizada com o objetivo de realização de um projeto parental, e, principalmente, deve resguardar os interesses da criança, o que não ocorre quando da utilização da inseminação post mortem, onde o interesse que prepondera é o da viúva e de seus familiares, que movidos pelo sofrimento da perda, procuram em tal técnica um meio de "ressuscitar" o de cujus.

DIREITO COMPARADO

A inseminação post mortem é proibida em países como a Alemanha, a Suécia, a França e a Espanha, entretanto, neste último, os direitos do nascituro serão garantidos quando houver manifestação expressa do falecido nesse sentido, por escritura pública ou testamento. Já a Inglaterra permite a inseminação post mortem, mas não garante direitos sucessórios à criança, a não ser que o falecido tenha deixado documento expresso manifestando que essa seria sua vontade.


Inseminação heteróloga, o novo código civil, a presunção de filiação no casamento e o consentimento informado

A inseminação artificial heteróloga gera dúvidas no que tange à filiação, visto que a criança gerada através dessa técnica possuirá um pai biológico diverso daquele que irá lhe registrar e lhe acolher.

Em relação a essa técnica, a inclusão do inciso V do art. 1.597. do Novo Código Civil foi extremamente importante, porque reforça o entendimento de que ao dar o consentimento, o marido assume a paternidade, não podendo, após, impugnar a filiação.

O consentimento informado é fundamental para inseminação de mulheres casadas ou vivendo em União Estável, conforme estabelece a Resolução nº 1.358/92 do CFM: "Em caso de mulheres casadas ou vivendo em União Estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou companheiro, após processo semelhante de consentimento informado."

Quanto à forma do consentimento, a Resolução do CFM, de 1992, assim dispõe:

"O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil."

Entretanto, por se tratarem de normas éticas, e, portanto, sem caráter cogente, não podemos descartar a hipótese da realização de inseminação heteróloga em mulher casada, sem o consentimento do marido. A partir daí surge a seguinte questão: Terá o cônjuge da mulher inseminada com sêmen de terceiro o dever de assumir a criança?

Para José Roberto Moreira Filho8, nesse caso, se a mulher casada se submeter a uma fertilização com sêmen do doador (heteróloga) sem o consentimento do marido, a paternidade não poderá lhe ser imputada e constituirá até mesmo causa de dissolução do vínculo matrimonial e de ação negatória de paternidade cumulada com anulação do registro de nascimento, se houver sido feita enganadamente. Em tais casos, ressalta Moreira Filho, "além da falta do querer ser pai, ou seja, da filiação socioafetiva, há a presença da fraude e da deliberada intenção de levar a erro."

Para o referido autor, a mulher, ao submeter-se à inseminação heteróloga, sem o consentimento de seu marido ou companheiro, comete um ato atentatório ao casamento (injúria grave, violação dos deveres do casamento, insuportabilidade da vida em comum, violação ao dever de lealdade, etc.), restando, dessa forma, a possibilidade de o marido contestar a paternidade do filho se já o houver registrado, tendo em vista que foi levado a erro ao registrá-lo.

Ainda em relação ao art. 1.597. do Novo Código Civil, é importante ressaltar que a presunção não se aplica aos filhos havidos na União Estável, visto que o referido artigo trata especificamente do casamento. Entretanto, sobre essa questão, entendemos que o consentimento também irá gerar o reconhecimento incontestável da paternidade por parte do companheiro, pois ao consentir, o companheiro reconhece a paternidade da criança, tendo plena consciência que não será seu pai biológico. Situação semelhante a que ocorre na chamada "adoção à brasileira". Ademais, tendo em vista a proteção dos interesses do menor, seria inadmissível que o companheiro pudesse rever seu consentimento, e conseqüentemente contestar a paternidade da criança.

DIREITO COMPARADO

Em países como a Austrália, Alemanha, muitos estados dos EUA, Espanha, França e Canadá o consentimento é fundamental e o casal, após consentir não poderá impugnar a filiação.


A importância da filiação socioafetiva

O conceito de filiação e sua definição no mundo jurídico têm evoluído, de modo que a filiação socioafetiva tem preponderado, muitas vezes, sobre a filiação biológica. A doutrina tem entendido que, nos casos de inseminação heteróloga, para se definir o parentesco, deverão ser considerados somente o pai ou a mãe socioafetiva, desconsiderando-se a paternidade ou maternidade biológica, à semelhança do que ocorre na adoção.

Na opinião de Guilherme Calmon Nogueira Gama9, o direito de família sofreu direta repercussão dos avanços tecnológicos na área de reprodução humana, mormente envolvendo as fontes da paternidade, maternidade e filiação, e todas essas transformações permitiram a ocorrência de um importante fenômeno, denominado "desbiologização", ou seja, a substituição do elemento carnal pelo elemento biológico ou psicológico.

Para Regina Fiuza Sauwen e Severo Hryniewcz10, atualmente, as sociedades, em sua maioria, já não consideram a filiação somente sob o aspecto biológico, devendo esta ser compreendida também quanto ao elemento cultural.

Segundo José Roberto Moreira Filho11, pela atual orientação doutrinária, o pai e a mãe não se definem apenas pelos laços biológicos que os unem ao menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, de então assumir independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres em face da filiação, com a demonstração de afeto e de bem querer ao menor. Para o referido autor, partindo dessa premissa, poderemos definir a filiação do nascituro concebido por técnicas reprodutivas artificiais, tanto pelo aspecto biológico quanto pelo aspecto socioafetivo, levando-se em conta sempre o melhor interesse da criança.

Tânia da Silva Pereira12 entende que, para a formação da família e a existência de filiação, é fundamental que haja o consentimento dos cônjuges, e assim ocorrendo, todo e qualquer filho gerado dentro do casamento, ou união estável, por meio de relações sexuais ou da utilização das técnicas de reprodução assistida, será tido como de ambos os cônjuges, independentemente de a técnica utilizada ter sido homóloga ou heteróloga.

Gustavo Tepedino13, no mesmo sentido, entende que, uma vez estabelecida a paternidade e a maternidade do casal de quem encomendou o material genético, é indiferente a origem genética do esperma doado, para efeito de estabelecimento da filiação. Portanto a doação anônima de esperma não acarreta vínculo de parentesco ao doador.


Inseminação de mulheres solteiras, viúvas ou divorciadas

Quanto à inseminação de mulheres solteiras, viúvas ou divorciadas, ainda não existe disposição expressa na legislação brasileira. Tudo indica que será permitida, pois a Resolução nº 1.358/92 do CFM, que é utilizada como base para os projetos de lei que estão em tramitação, permite tal procedimento ao estabelecer:

"Quanto aos usuários das técnicas de RA ficou estabelecido que toda mulher capaz, nos termos da lei, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado."

Sobre o tema, defende Guilherme Calmon Nogueira Gama14 que não existe razão para se proibir tal procedimento, visto que a própria Constituição Federal reconhece em seu art. 226, parágrafo 4º a família monoparental. Utiliza ainda, como argumento, o fato de a lei brasileira permitir a adoção de crianças por apenas um adotante (um pai ou uma mãe), devendo, por analogia, ser estendido esse direito às mulheres que pretendem submeterem-se a inseminação artificial com a finalidade de formar uma família monoparental.

Opinião contrária possui Eduardo de Oliveira Leite15, por entender que a inseminação deve atender a um projeto parental e não impessoal. Alega o autor, que nesses casos, a criança seria órfã de pai desde o início do projeto, e isso contraria o direito fundamental da criança ao biparentesco, como vocação natural e legítima de ter um pai e uma mãe, e de ser educada por ambos.

Sendo admitida a inseminação de mulheres solteiras, separadas ou viúvas, como fica a situação da criança gerada, quanto à filiação? Nesses casos não é possível, segundo Moreira Filho16, atribuir-se ao doador qualquer vínculo de filiação. Sustenta ainda, o referido autor, que deve ser usada analogia ao instituto da adoção, devendo a criança ser registrada somente em nome da mãe, mas podendo no futuro requerer o reconhecimento de seu vínculo genético de filiação biológica. Ressalta, ao final que: "Isto, porém, não acarretará ao doador quaisquer obrigações ou direitos relativos à criança, uma vez que, ao doar seu sêmen ele abdica voluntariamente de sua paternidade, da mesma forma que o faz quem entrega uma criança para adoção ou quem perde o poder-familiar."

DIREITO COMPARADO

Na França, Suécia e Alemanha, a reprodução assistida é permitida somente a casais, enquanto que na Espanha, a possibilidade de inseminação artificial está aberta àqueles que não se encontram unidos pelo vínculo matrimonial, sem prejuízo de eventual ação de reconhecimento de paternidade.

Sobre as autoras
Andrea Aldrovandi

Advogada. Professora do Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul - UCS. Especilista em Direito de Família e Sucessões - ULBRA. Mestre em Direito - UCS/RS.

Danielle Galvão de França

advogada em Canoas (RS), especialista em direito público pela PUC/RS, pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões da ULBRA/RS - Canoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALDROVANDI, Andrea; FRANÇA, Danielle Galvão. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3127. Acesso em: 21 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!