INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende abordar uma relevante questão na prática dos operadores do direito, especialmente daqueles afetos ao direito tributário. A questão, apesar de não ser nova, ainda é atual e relevante.
Trata-se da análise do Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU), mais especificamente, a possibilidade de incidência do tributo sobre propriedades imobiliárias de Autarquias Federais, quando referidos imóveis estiverem locados a terceiros.
Como deve ser interpretada a imunidade prevista no artigo 150 da Constituição Federal? A finalidade do imóvel é relevante para fins de incidência do IPTU?
São essas as questões que pretendemos responder. Note-se que o tema proposto toma relevância quando se percebe que a Administração Municipal (competente para instituição do IPTU), muitas vezes, possui entendimento diverso dos Tribunais.
Para obter as respostas às questões propostas, foi feita uma abordagem, ainda que de forma sumária, sobre os principais aspectos do IPTU. O arquétipo constitucional do tributo, além de não ter sido esquecido, foi o ponto de partida de toda a explanação.
A imunidade tributária, especialmente a chamada ‘imunidade recíproca’ também foi objeto de estudo.
Note-se, por fim, que a questão é de extrema importância para a Administração Pública, na medida em que eventual incidência de IPTU sobre os imóveis locados a terceiros pode impactar no orçamento da entidade e na viabilidade do contrato firmado com o particular.
1 DA AUTARQUIA FEDERAL
Antes de abordar os conceitos de direito constitucional envolvidos no tema em debate, é importante fixar o conceito de Autarquia Federal. Isso porque, conforme se verifica da introdução do presente, o foco principal é a possível incidência de IPTU sobre imóvel de propriedade de Autarquia Federal, quando locado a terceiro.
Assim, para deslinde da questão, é imprescindível a elucidação do conceito de Autarquia Federal. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Há certo consenso entre os autores ao apontarem as características das autarquias: 1. Criação por lei; 2. Personalidade jurídica pública; 3. Capacidade de autoadministração; 4) especialização dos fins ou atividades; 5) sujeição a controle ou tutela.
[...]
Com esses dados, pode-se conceituar a autarquia como a pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade de autoadministração, para o desempenho de serviço público descentralizado, mediante controle administrativo exercido nos limites da lei[1].
Diogenes Gasparini, ao tratar do tema, faz uma ressalva importante sobre o conceito de Autarquia:
As autarquias são detentoras, em nome próprio, de direitos e obrigações, poderes e deveres, prerrogativas e responsabilidades. Ademais, em razão de sua personalidade, as atividades que lhe são trespassadas, os fins e interesses que perseguem são próprios, assim como são próprios os bens que possuem e venham a possuir[2].
O conceito de Autarquia revela que o referido ente é autônomo em relação aos entes federados dos quais se originam. Ou seja, as Autarquias são pessoas jurídicas públicas autônomas.
Vale dizer, há autonomia, inclusive no que tange à titularidade de bens e direitos, entre as Autarquias Federais e a União Federal.
A referida característica (autonomia) é fundamental para o deslinde do tema proposto.
2 DO IMPOSTO SOBRE PROPRIEDADE PREDIAL E TERRITORIAL URBANA
A Constituição estabelece a competência dos Municípios e do Distrito Federal para a instituição do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU):
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana;
[...]
§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
A Constituição Federal estabeleceu o âmbito de incidência do IPTU. Determinou, dentre outros aspectos, que o critério material da hipótese de incidência será a propriedade predial e territorial urbana. Como a Constituição não cria tributos, cabe ao ente federado competente a tarefa de, respeitando o arquétipo constitucional, definir os itens da norma matriz de incidência (instituir, em abstrato, o tributo).
É preciso, portanto, analisar a expressão propriedade predial e territorial urbana para compreender quais os fatos que podem ser eleitos pelo legislador ordinário para legitimar a imposição tributária.
O primeiro objeto de análise é o termo propriedade. Maria Helena Diniz afirma que propriedade é “o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de uma coisa corpórea ou incorpórea, bem como de reivindicar de quem injustamente a detenha”[3].
Ao tratar do direito de propriedade, Carlos Roberto Gonçalves afirma que “pode ser definido como o poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos [...] é aquele que afeta a coisa direta e imediatamente, sob todos ou certos respeitos, e a segue em poder de quem quer que a detenha”[4].
Pode-se afirmar que a propriedade é o direito que determinado sujeito possui de, segundo a legislação vigente, usar e dispor da coisa, opondo-se a todos os demais.
É preciso, ainda, definir os limites da expressão predial e territorial urbana. Isto é, diferenciar a propriedade urbana da propriedade rural, de modo a fixar os exatos contornos do critério material da regra matriz de incidência do IPTU.
O Código Tributário Nacional (CTN) que, com fundamento no artigo 146 da Constituição, foi recepcionado como a Lei Complementar destinada a estabelecer normas gerais em matéria tributária, veicula os seguintes preceitos sobre a incidência do IPTU:
Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
§ 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:
I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II - abastecimento de água;
III - sistema de esgotos sanitários;
IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;
V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.
§ 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.
Segundo referido diploma, a propriedade urbana será caracterizada diante de, no mínimo, dois dos elementos indicados no §1 do art. 32 do CTN. Há, ainda, uma equiparação legal contida no §2º do art. 32 do CTN.
Pode-se afirmar, portanto, que o CTN estabeleceu que o território urbano é aquele localizado na zona urbana (critério topográfico), sendo certo que será considerada zona urbana a área com, pelo menos, duas melhorias públicas indicadas no art. 32.
Mas a análise do CTN não basta para a solução da questão. O Decreto-lei 57/66 modificou a sistemática eleita pelo CTN e passou a utilizar a destinação (utilização) como critério definidor da natureza urbana ou rural do terreno:
Art 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, incidindo assim, sobre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrados.
A conclusão é que referido Decreto-lei ainda permanece em vigor. O art. 12 da Lei 5.868/1972, que revogava o art. 15 do Decreto-lei 57/66, foi julgado inconstitucional pelo STF (RE 140.773/SP) e o Senado Federal elaborou a Resolução 9/2005, concedendo efeitos erga omnes à referida decisão.
Portanto, o art. 15 do Decreto-lei 57/66 deve ser considerado como norma vigente. Esta conclusão parece ter sido acolhida de forma dominante, conforme se verifica do julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferido com fundamento no art. 543-C do CPC:
TRIBUTÁRIO. IMÓVEL NA ÁREA URBANA. DESTINAÇÃO RURAL. IPTU. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 15 DO DL 57/1966. RECURSO REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. 1. Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966). 2. Recurso Especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ. Indexação[5].
Assim, além do critério topográfico eleito pelo CTN, é preciso indagar a destinação do imóvel, uma vez que, se o imóvel localizado em área urbana for utilizado para exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, não haverá incidência do IPTU, mas sim do Imposto Territorial Rural (ITR).
Sem prejuízo da explanação sobre a vigência do Decreto-lei 57/66, é importante citar os argumentos em sentido contrário.
Hugo de Brito Machado, ao tratar do tema, afirma:
não ser legítima a alteração feita pelo Decreto-lei n. 57, de 18.11.1966, e pela Lei n. 5868, de 12.12.72, que modificou o mencionado decreto-lei. Em se tratando de disciplinar conflito de competência tributária, o instrumento hábil é a lei complementar. Já na vigência da Constituição anterior era assim, por força de seu art. 18, §1, e continua sendo assim atualmente, por força do estipulado no art. 146, inciso I, da Constituição Federal de 1988[6].
O STJ, em novembro de 2000, também já se posicionou pela impossibilidade de modificação do CTN pelo Decreto-lei 57/66:
TRIBUTÁRIO. IPTU. CARACTERIZAÇÃO DO IMÓVEL. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO. D.L. 57/66. PREVALECIMENTO DO CTN COMO LEI COMPLEMENTAR. PRECEDENTE DO STF. 1. Consoante fixado pela Excelsa Corte, o Código Tributário Nacional é Lei Complementar que não pode ser alterado por Decreto-lei. Assim, para efeito da incidência do IPTU o que importa é a localização do imóvel, como previsto no artigo 32, §1, do CTN e não sua destinação. 2. Recurso especial conhecido, porém, improvido. (STJ. Resp. 169924. Rel. Min. Francisco Peçanha Martins. Segunda Turma. DJE 04/06/2001).
Contudo, como já dito, prevalece a vigência do Decreto-lei 57/66 para fixação do limite da incidência do IPTU.
Pois bem, definido o critério material da hipótese de incidência, será necessário analisar a imunidade tributária e seus efeitos sobre a regra matriz de incidência.
3 DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA
O estudo do direito tributário revela diversas definições de imunidade tributária. Paulo de Barros Carvalho traz definição precisa:
A classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, que estabelecem de modo expresso a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno, para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas[7].
Conforme afirmou Aliomar Baleeiro é "como uma exclusão da competência de tributar, proveniente da Constituição"[8].
Importante destacar a lição de Hugo de Brito Machado que, ao definir imunidade tributária, discute se a imunidade pode ser considerada limitação ao poder de tributar, ou se trata de norma estrutural, que apenas define os limites da própria competência tributária:
Imunidade é o obstáculo decorrente de regra de Constituição à incidência de regra jurídica de tributação. O que é imune não pode ser tributado. A imunidade impede que a lei defina como hipótese de incidência tributária aquilo que é imune. É limitação de competência tributária.
Há quem afirme, é certo, que a imunidade não é uma limitação da competência tributária porque não é posterior à outorga desta. Se toda atribuição de competência importa uma limitação, e se a regra que imuniza participa da demarcação da competência tributária, resulta evidente que a imunidade é uma limitação dessa competência.
O importante é notar que a regra de imunidade estabelece exceção. A Constituição define o âmbito do tributo, vale dizer, o campo dentro do qual pode o legislador definir a hipótese de incidência da regra de tributação. A regra de imunidade retira desse âmbito uma parcela, que torna imune. Opera a regra imunizante, relativamente ao desenho constitucional do âmbito do tributo, da mesma forma que opera a regra de isenção relativamente à definição da hipótese de incidência tributária[9].
Pode-se afirmar, portanto, que imunidade é a norma constitucional que, ao estabelecer a incompetência tributária do ente federado sobre determinadas situações, fixa os limites da competência tributária.
Entende-se que a norma que veicula imunidade não limita o poder de tributar. Afinal, por se tratar de disposição da própria Constituição, referida norma apenas define o contorno (ou limite da competência tributária). Afinal, se a norma de imunidade é um dos elementos que define a competência tributária, não pode, ao mesmo tempo, limitá-la.
Contudo, tendo em vista que eventual classificação da imunidade como limitação do poder de tributar não influenciará a conclusão do presente estudo, a natureza jurídica da imunidade tributária não será objeto de análise mais aprofundada.
O estudo da imunidade e das normas de competência permite concluir, ainda, que a Constituição não cria tributos. A Constituição apenas fixa a competência legislativa para criação do tributo por cada ente federado.
Mas é preciso atentar que a imunidade não é um fim. A finalidade da imunidade é positivar garantias ao contribuinte. Pretende garantir que as limitações impostas pelo Constituinte originário não sejam alteradas pelo próprio ente que institui o tributo. Neste sentido, manifestou-se o Ministro Celso de Mello nos autos do RE nº 253.747-1:
Não se pode desconhecer, dentro desse contexto, que as imunidades tributárias de natureza política destinam-se a conferir efetividade e a atribuir concreção a determinados direitos e garantias fundamentais reconhecidos e assegurados às pessoas e às instituições.
[...]
O instituto da imunidade tributária não constitui um fim em si mesmo. Antes, representa um poderoso fator de contenção do arbítrio do Estado, na medida em que esse postulado fundamental, ao inibir, constitucionalmente, o Poder Público no exercício de sua competência impositiva, impedindo-lhe a prática de eventuais excessos, prestigia, favorece e tutela o espaço em que florescem aquelas liberdades públicas.
No mesmo sentido, é a lição de Ives Gandra da Silva Martins:
A imunidade, portanto, descortina fenômeno de natureza constitucional que retira do poder tributante o direito de tributar, sendo, pois, instrumento de política nacional que transcende os limites fenomênicos da tributação ordinária. Nas demais hipóteses desonerativas, sua formulação decorre de mera política tributária do poder público, utilizando-se de mecanismos ofertados pelo Direito.
Na imunidade, portanto, há um interesse nacional superior a retirar, do campo de tributação, pessoas, situação, fatos considerados de relevo, enquanto nas demais formas desonerativas há apenas a veiculação de uma política transitória, de índole tributária definida pelo próprio Poder Público em sua esfera de atuação[10].
Há mais. Para a plena compreensão do tema, é preciso verificar as diversas espécies de imunidade. As imunidades dividem-se em subjetivas, objetivas ou mistas, conforme digam respeito a pessoas, coisas, ou ambas.
As imunidades subjetivas são as que alcançam as pessoas, em função de sua natureza jurídica. Cite-se o artigo 150, VI, “a”, da Constituição Federal, que se refere ao patrimônio, renda ou serviços da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Já as imunidades objetivas são aquelas conferidas em função de determinados fatos, bens ou situações, e não pelas características específicas das pessoas beneficiadas, ou pelas atividades que desenvolvem. É a imunidade aos “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.
A terceira categoria é a das imunidades mistas. Tais imunidades são revestidas tanto do aspecto objetivo, porque conferidas em função de uma realidade de fato, quanto do aspecto subjetivo, uma vez que abrangem o patrimônio, a renda e os serviços de pessoas, na sua parcela que esteja ligada a tais realidades de fato.
Note-se que o texto constitucional é expresso ao afirmar que a imunidade refere-se aos impostos e não outras espécies de tributos[11].
É importante destacar, ainda, que o §2º do artigo 150 da Constituição Federal determina que:
A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
A primeira conclusão relevante para o presente estudo é que as Autarquias Federais ostentam imunidade tributária sobre o patrimônio, a renda e os serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
Diferentemente do artigo 150, VI, ‘a’ da Constituição Federal, as Autarquias Federais somente ostentam imunidade se o patrimônio, renda e serviços estiverem relacionados às finalidades essenciais (ou delas decorrentes).
4 DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DOS IMÓVEIS DAS AUTARQUIAS FEDERAIS LOCADOS A TERCEIROS
No presente item, será estudada a questão principal proposta: há imunidade de IPTU sobre imóvel de propriedade de Autarquia Federal, quando locado para terceiros?
Conforme artigo 150 da Constituição Federal, as Autarquias Federais somente ostentam imunidade se o patrimônio, renda e serviços estiverem relacionados às finalidades essenciais (ou delas decorrentes).
A leitura do texto constitucional poderia implicar a conclusão de que, uma vez locado a terceiros, não seria possível falar em imunidade de IPTU. Afinal, se o imóvel está sendo utilizado por terceiros, seria evidente que não estaria direcionado à atividade-fim da Autarquia.
Logo, se o imóvel não está destinado à atividade-fim, não há que se falar na imunidade do art. 150, VI, ‘a’, §2º, da Constituição Federal.
Contudo, diante de uma interpretação sistemática da Constituição, essa não parece ser a melhor conclusão.
O Supremo Tribunal Federal, em casos análogos, reconheceu a imunidade quando os valores obtidos em decorrência de locação ou outra fonte de receita são aplicados na atividade-fim. Vale dizer, apesar do imóvel não estar diretamente aplicado na atividade essencial da entidade, a imunidade deve ser mantida, quando a renda gerada pelo imóvel é aplicada.
A premissa adotada pelo STF é que, além da aplicação direta do imóvel na atividade-fim, a imunidade também incide quando a renda é aplicada. Ou seja, quando, indiretamente, o imóvel é aplicado na atividade-fim.
Na sessão de julgamento de 21/05/2008, o plenário do STF decidiu o RE 578562 (envolvendo a questão da imunidade de templo de qualquer culto), no qual foi Relator o Ministro Eros Roberto Grau (recurso já transitado em julgado).
No caso, a Sociedade da Igreja de São Jorge e Cemitério Britânico, obteve ordem judicial reconhecendo que o IPTU não poderia incidir sobre o terreno no qual foi construído um cemitério. A questão que se colocava é: o cemitério, anexo ao templo, ostenta a imunidade deferida aos templos de qualquer culto?
O Relator, Ministro Eros Grau, deu início ao voto resumindo os argumentos utilizados pela recorrente:
A recorrente diz que desde o início do século XIX está situado na Ladeira da Barra, em Salvador, imóvel onde existe uma Capela destinada ao culto da religião anglicana e um cemitério – Cemitério Britânico – no qual há aproximadamente quinhentos túmulos. [...] A recorrente, entidade filantrópica sem fins lucrativos, é titular do domínio útil do imóvel, preservando a Capela, o Cemitério Britânico e jazigos, bem assim o culto da religião anglicana professada nas suas instalações.
Embora aqui se trate de questão de direito, ela é conformada pelas circunstâncias do caso, a situação a que respeita este recurso. Esta Corte procede, no exercício do controle difuso de constitucionalidade, inicialmente à interpretação de textos normativos e da realidade, desde então produzindo normas jurídicas gerais, posteriormente cogita da aplicação dessas normas jurídicas gerais ao caso, definindo, então, a norma de decisão do caso. O modo sob o qual os acontecimentos que compõem o caso se apresentam pesará de maneira incisiva na produção das normas a ele aplicáveis e, em seguida, na definição da norma de decisão.
Essas observações são relevantes porque diversa da que se há de aplicar aos cemitérios que consubstanciam extensões de entidades de cunho religioso é a norma de decisão que calha a situações nas quais empresas exploram a atividade de locação e/ou venda de jazigos. Vale dizer: no julgamento do presente recurso esta Corte não dirá, simplesmente, que cemitérios em geral estão abrangidos, ou não estão abrangidos, pela imunidade; diversamente, decidiremos se cemitérios que consubstanciam extensões de entidades de cunho religioso estão, ou não estão, por ela alcançados.
Pois é evidente que jazigos explorados comercialmente, por empresas dedicadas a esse negócio, não gozam da proteção constitucional de que se cuida. Ainda que a família e amigos próximos do ali enterrado possam cultuar a sua memória diante do jazigo. No caso se trata de situação diversa daquela a que nesse apartado voto faço alusão.
[...]
No caso destes autos o cemitério é anexo à Capela na qual o culto da religião anglicana é praticado; trata-se do mesmo imóvel, parcela do patrimônio, da recorrente, abrangido pela garantia contemplada no artigo 150”.
Verifica-se que o referido julgamento utiliza-se da premissa já fixada no RE 325822, que definiu que a imunidade não abrange apenas os prédios destinados ao culto, mas também o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades religiosas.
O mesmo raciocínio deve ser utilizado no caso de imóveis das Autarquias, que estejam locados a terceiros. Isto é, a imunidade não abrange apenas os imóveis aplicados diretamente na atividade-fim, mas também o patrimônio, a renda e os serviços direcionados à realização da atividade-fim.
Ao tratar da imunidade contida no artigo 150, VI, ‘c’ da Constituição Federal (“patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”), o STF editou súmula (Súmula 724) no seguinte sentido:
Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, "c", da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades.
Note-se que, apesar de não tratar especificamente das Autarquias Federais, a premissa fixada na Súmula 724 do STF é inteiramente aplicável no caso em comento. Isso porque a finalidade do texto magno, nesse ponto, é idêntica. Vale dizer, o dispositivo que confere imunidade para as Autarquias possui a mesma finalidade da imunidade veiculada no art. 150, VI, "c", da Constituição. Logo, a conclusão da Súmula 724 do STF é inteiramente aplicável para as Autarquias Federais. O STF já acolheu o raciocínio aqui exposto, no RE 357824 AgR/MG – Rel. Min. Eros Grau, Julgado em 12/06/2007.
Portanto, para o reconhecimento da imunidade, é importante que o dinheiro advindo da locação de imóveis seja destinado à atividade-fim da Autarquia Federal.
No caso das Autarquias, a destinação da renda do aluguel à atividade-fim é presumida, pois agem sob os ditames da lei e eventuais desvios de finalidade devem ser provados.
Ou seja, todo dinheiro obtido por uma Autarquia Federal deve ser aplicado na sua destinação constitucional, conforme orçamento. A destinação da renda de aluguel para sua finalidade essencial é presumida e decorre de imperativo legal. Na verdade é o desvio da utilização dos referidos recursos que deve ser provado.
A jurisprudência do STJ ressalta a presunção quanto ao destino dos recursos derivados do patrimônio das Autarquias:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. IPTU. PRESUNÇÃO DE QUE O IMÓVEL SE DESTINA AOS FINS INSTITUCIONAIS DA ENTIDADE AUTÁRQUICA. ÔNUS DA PROVA EM CONTRÁRIO. INCUMBÊNCIA DO PODER TRIBUTANTE.
1. Conforme a orientação jurisprudencial predominante no STJ, presume-se que o imóvel de entidade autárquica esteja afetado a destinação compatível com seus objetivos e finalidades institucionais. Portanto, o ônus de provar que o patrimônio da autarquia está desvinculado dos seus objetivos institucionais e, portanto, não abrangido pela imunidade tributária prevista no art. 150 da Constituição, recai sobre o poder público tributante. Com efeito, assim como cabe ao executado-embargante o ônus da prova de sua pretensão desconstitutiva, incumbe ao embargado, réu no processo de embargos à execução, a prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (REsp 447.649/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 1º.3.2004, p. 125). Precedentes citados. 2. Agravo regimental não provido[12].
Verifica-se que os imóveis pertencentes a Autarquias Federais, mesmo que locados a terceiros, ostentam imunidade tributária. Logo, não é possível a incidência de IPTU sobre referidos imóveis.
Note-se, contudo, que é necessário provar que a renda auferida com a locação do imóvel é destinada à atividade-fim da entidade. No caso das Autarquias Federais, objeto do presente estudo, a destinação dos recursos para as finalidades institucionais é presumida.