Resumo: O presente trabalho aborda a realização de sacrifícios de animais nas religiões afro-brasileiras, diante da proteção constitucional à liberdade de culto e das práticas culturais afro-brasileiras, e em oposição à vedação à crueldade e maus-tratos aos animais, considerando os aspectos legais envolvidos. Para isso, utilizam-se fontes bibliográficas e artigos na internet, onde se busca examinar as religiões afro-brasileiras e destacar a sua importância enquanto manifestação cultural. Além disso, analisa-se o direito à liberdade religiosa e os aspectos envolvidos no direito animal, que tem conquistado cada vez mais adeptos, para, desse modo, chegar a uma conclusão, observando o sistema normativo brasileiro, de que a prática dos sacrifícios se reveste de legalidade.
Palavras-chave: Direito Ambiental. Direito dos Animais. Sacrifícios de animais. Religiões Afro-Brasileiras. Maus-tratos a animais.
Sumário: 1. Introdução. 2. Objetivo. 2.1. Geral. 2.2. Específicos. 3. Metodologia. 4. Referencial teórico. 5. Religiões afro-brasileiras. 5. 1. Perspectiva histórica. 5.2. Características dos cultos. 6. Proteção constitucional ao patrimônio cultural e às manifestações culturais afro-brasileiras. 6.1. Manifestações culturais. 6.2. Tutela jurídica das manifestações culturais afro-brasileiras. 6.3. Religiões afro-brasileiras enquanto parte integrante do patrimônio e manifestações culturais. 7. Proteção à liberdade de culto. 7.1. Regulamentação constitucional. 7.2. Implicações na legislação infraconstitucional. 7.3. Abrangência do direito à liberdade religiosa. 8. Direitos dos animais no ordenamento jurídico brasileiro. 8.1. Animal como sujeito de direito e direito animal. 8.2. Proteção legal aos animais. 9. Uso de animais em sacrifícios rituais nas religiões afro-brasileiras. 9.1. Finalidade dos sacrifícios. 9.2. Modo de realização. 9.3. Possibilidade legal de realização dos sacrifícios. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo trata da utilização de animais não humanos para sacrifícios em religiões afro-brasileiras. Objetiva-se, com isso, analisar a questão sob o ponto de vista legal, abordando os direitos a liberdade de culto e a proteção conferida às manifestações culturais afro-brasileiras em confronto com o resguardo dos direitos animais presentes no ordenamento jurídico pátrio.
No Brasil, as religiões afro-brasileiras são bastante difundidas em vários estados da federação. Tratando-se, o sacrifício de animais, de prática de algumas destas religiões, tem-se que a quantidade de animais mortos sob essa justifica é significativa. A presente pesquisa se reveste de importância na medida em que, ao analisar a legalidade da morte de animais em rituais religiosos no ordenamento jurídico brasileiro, verificará se os praticantes estarão infringindo o direito à proteção jurídica que a Constituição Federal lhes conferiu.
Para isso, inicialmente, deverá ser feita uma abordagem acerca do processo de formação das religiões brasileiras de matriz africana. O tráfico de pessoas repercutiu diretamente no Brasil, país que recebeu um grande contingente de escravos originários do continente africano, que, ao se estabelecerem aqui, influenciaram, não apenas com sua cultura, mas também com suas crenças, o modo de vida do povo que aqui vivia.
Haja vista tratar-se de tema que envolve questões religiosas, é necessário adentrar no tema da liberdade de culto, direito assegurado pela Constituição Federal brasileira vigente, em seu artigo 5º, inciso VI, posto que este poderia ser uma daz razões a permitir o sacrifício de animais, do ponto de vista legal.
Diante do histórico envolvendo as religiões afro-brasileiras, enquanto pertencentes a um contexto cultural protegido também pela constituição, no artigo 215, § 1º, ao incluir a proteção às manifestações culturais afro-brasileiras, pode-se ter outro amparo legal para o livre exercício dos cultos, incluindo os sacrifícios de animais, enquanto manifestações culturais, motivo pelo qual esta questão será debatida.
Por outro lado, os animais tem assegurado, igualmente na CF/88, em seu art. 225, § 1º, VII, a sua proteção, sendo vedadas práticas cruéis contra os mesmos. Será feita, portanto, uma análise dos direitos atribuídos aos animais pela legislação pátria, com relação ao seu exercício, sua extensão e quais os direitos a eles (ou à sociedade) atribuídos.
Tem-se delineado, portanto, um conflito entre bens juridicamente protegidos. Diante do exposto, deverá ser avaliado se o sacrifício de animais em rituais religiosos poderia ou não ser caracterizado como crime, devendo ou não o direito de liberdade de culto e de manifestação cultural se sobrepor ao direito de proteção que é dado aos animais. Far-se-á, portanto, um exame aprofundado da legislação nacional e da doutrina, na medida do possível, a fim de verificar a extensão da proteção e o limite às liberdades religiosas e culturais, bem como do direito animal, inclusive à luz das concepções éticas que norteiam a legislação neste aspecto, posto que de fundamental importância para o deslinde da questão.
Por fim, deve-se identificar a forma como é tratado o sacrifício dos animais nas religiões afro-brasileiras, a sua finalidade e modo de realização, na medida em que estes elementos constituem aspectos de salutar interesse para que se chegue a uma conclusão a respeito do problema exposto.
2. OBJETIVOS
2.1. Geral
· Analisar o direito à proteção assegurado aos animais diante de seu uso para sacrifícios em rituais religiosos sob a luz do direito à liberdade de culto e o direito às manifestações culturais assegurados pelo Constituição Federal de 1988 às religiões afro-brasileiras.
2.2. Específicos
Compreender o direito à liberdade de culto garantido pela Constituição Federal de 1988 e suas implicações;
Analisar o livre exercício das práticas religiosas afro-brasileiras enquanto manifestação cultural;
Evidenciar a proteção jurídica conferida aos animais e sua extensão, em especial nas vedações impostas pela lei a condutas que impliquem maus-tratos e morte;
Verificar a forma como se dá o sacrifício de animais em religiões afro-brasileiras e identificar quais dessas religiões adotam essa prática;
Analisar os dispositivos legais que asseguram o exercício dos direitos em conflito na Constituição Federal de 1988 e dispositivos legais infraconstitucionais;
Identificar as concepções éticas que norteiam a legislação ambiental pátria a fim de interpretar as normas que tratam do assunto abordado e exercer atividade valorativa dos bens em conflito.
3. METODOLOGIA
A presente pesquisa, do tipo exploratória, utilizará o método categórico-dedutivo, pretendendo-se utilizar uma abordagem qualitativa, do tipo teórico-documental orientada para a análise da preponderância dos bens jurídicos objetos deste estudo.
Utiliza-se, com este fim, fontes bibliográficas e artigos disponíveis na internet, elaborando-se as análises a partir do entendimento que se fizer do material coletado. As fontes bibliográficas a serem utilizadas não serão somente aquelas que possuam temática específica sobre o assunto, mas todas aquelas que possuam conteúdo que se relacione com o estudo em questão.
4. REFERENCIAL TEÓRICO
Esta pesquisa se apoia em alguns autores, em especial, para seu desenvolvimento, embora muitos outros tenham contribuído para sua realização.
Inicialmente, para que se possa ter um maior entendimento sobre as religiões afro-brasileiras, utilizando-se, principalmente, da obra de Edison Carneiro, Candomblés da Bahia (5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977), que busca estabelecer uma relação entre as religiões brasileiras de matriz africana, apontando características comuns a todas eles e demonstrando o processo de formação das mesmas.
Em seguida, ao abordar a proteção legal conferida ao patrimônio cultural afro-brasileiro e a caracterização deste patrimônio, recorreu-se ás ideia de autores como Luciano Rocha Santana e Thiago Pires Oliveira, em seu artigo “O patrimônio cultural imaterial das populações tradicionais e sua tutela pelo Direito Ambiental” (Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 750, 24 jul. 2005) e de Sérgio Luiz da Silva de Abreu, em “O afro-brasileiro e os direitos culturais face à globalização” (disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=5021).
A obra de Fábio Dantas de Oliveira, “Aspectos da liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro” (Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2966, 15 ago. 2011), foi citada de forma recorrente ao realizar-se o exame dos aspectos legais envolvidos na proteção á liberdade religiosa, analisando-se, ainda, a extensão deste direito.
Do mesmo modo, ao tratar das complexidades envolvendo o status moral dos animais diante dos seres humanos e os direitos a eles assegurados, usou-se como fonte, autores como Edna Cardozo Dias, com as obras “Biodireito e isonomia jurídica para a natureza não humana” (Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 63, abr 2009) e “Tutela jurídica dos animais” (Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000), bem como de Daniele Gomes, com “A legislação brasileira e a proteção aos animais” (disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5595/A-legislacao-brasileira-e-a-protecao-aos -animais) e Roberto Medeiros da Silva Júnior, com o trabalho “A influência da filosofia ecologista no direito ambiental brasileiro” (Graduação em Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, 2012, Barbacena).
Por fim, com o objetivo de esclarecer o modo como são realizados os sacrifícios de animais nas religiões afro-brasileiras e entender sua finalidade, o estudo de Nivaldo A. Léo Neto, Sharon E. Brooks e Rômulo R. N. Alves, “From Eshu to Obatala: animals used in sacrificial rituals at Candomblé "terreiros" in Brazil” (Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, 2009) foi essencial, além de que os argumentos de Thiago Oliveira Catana e Sergio Tibiriçá Amaral, em “Liberdade religiosa e seus conflitos” (Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, nº 198, out 2006), serviram para amparar as conclusões obtidas com este estudo.
5. RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Exu Caveira comedor de carne crua
Espera o seu lá no meio da rua
Exu Caveira comedor de carne crua
Espera o seu lá no meio da rua.
Portão de ferro cadeado de madeira
O dono da calunga ainda é o exu caveira
Exu Caveira comedor de carne crua
Espera o seu lá no meio da rua
Pois o seu povo te chamou pra trabalhar
Exu Caveira comedor de carne crua
Espera o seu lá no meio da rua.
( Canção de Umbanda)
5.1. Perspectiva histórica
A origem das religiões de matriz africana no Brasil remete ao período em que país, sob o regime escravocrata, recebeu um grande contingente de grupos étnicos provenientes, principalmente, da costa ocidental africana (SANT’ANNA, p. 01). O Brasil recebeu escravos de diferentes nações, como Guiné Portuguesa, com pessoas das tribos fulas e mandingas, (que possuíam influência islâmica; Angola e Congo, de onde provinham os negros de língua banto; Costa de Mina, com representantes das tribos nagôs, jêjes, fantis, axantis, gás, tsis; entre muitos outros que foram forçados ao trabalho escravo. Todas as tribos africanas que forneceram escravos ao Brasil tinham suas religiões particulares (CARNEIRO, 1977, p. 16-18).
Carneiro aponta que a grande concentração de nagôs (e de jêjes, que professavam culto semelhante ao destes) na Bahia favoreceu para que sua religião fosse estabelecida como padrão para todas as religiões dos povos vizinhos:
Como reflexo do estado social que haviam atingido na África e do conceito que deles se fazia no Brasil, os nagôs da Bahia logo se constituíram numa espécie de elite e não tiveram dificuldade de impor à massa escrava, já preparada para recebê-la, a sua religião, cm que esta podia manter fidelidade com a terra de origem, reinterpretando à sua maneira a religião católica oficial. (1977, p. 19)
Além da grande concentração, Sant’Anna (p. 04-05) aponta a existência de uma número significativo de libertos e escravos de ganhos, que tinham uma mobilidade maior do que os outros escravos, tendo maior facilidade de se associarem a outros negros e propagar sua cultura. Tendo os escravos jêje-nagô chegado ao Brasil num período em que praticamente os escravos banto não eram mais trazidos, estando estes mais integrados à cultura do país, houve um momento propício – aliado à crise na sociedade escravista e ao uso da língua ioruba entre os africanos recém-chegados – para o florescimento da cultura jêje-nagô.
A influência da religião de outras tribos também se deu em outros lugares do país, como aquela praticada em Pernambuco, que se irradiou para o Nordeste ocidental e a do Maranhão, que influenciou a região amazônica. A religião dos nagôs também se misturou com as formas de expressão semirreligiosas correntes nos estados do Sudeste, além do Rio Grande do Sul, mais tardiamente, já no século XXI (CARNEIRO, 1977, p. 20).
Jensen (p. 02) afirma que as religiões afro-brasileiras – com a assimilação dos cultos africanos pela sociedade brasileira, constituindo religiões nacionais –, são um fenômeno relativamente recente na história religiosa do Brasil (datando o primeiro terreiro de Candomblé, na Bahia, do ano de 1830) e que estas novas religiões surgiram primeiramente na periferia urbana brasileira, em virtude da maior liberdade de movimento dos escravos, permitindo que pudessem se organizar em nações.
Diante de tal configuração, várias religiões afro-brasileiras, com diferentes denominações, predominam em localidades distintas no país. Na Bahia, há grande concentração de praticantes do Candomblé; no Rio de Janeiro da Macumba[1]; no Amazonas o Babaçuê e o Batuque; no Maranhão o Tambor de Mina e o Tambor de Nagô; em Pernambuco o Xangô; no Rio Grande do Sul o Batuque, termo usado por estranhos ao culto, chamado de Pará pelos crentes (CARNEIRO, 1977, p. 20-21). Carneiro (1977, p. 28-31) salienta que os cultos não apresentam uniformidade para apresentação de tipos absolutos, mas propõe uma área de identificação relativa à influência das tribos. A primeira, zona de influência dos jêjes-nagôs, seria formada pelo Rio Grande do Sul (Batuque ou Pará) e pela área estendida entre a Bahia e o Maranhão, podendo ser subdividida nas subáreas do Candomblé (leste setentrional), Xangô (Nordeste Oriental) e Tambor (Nordeste Ocidental). A segunda zona seria compreendida pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, com a Macumba, de grande influência das tradições de Angola. Por último, a região da Amazônia, com influência dos grupos jêjes e nagôs – se maior influência do primeiro, chamada de babaçuê e de batuque, se do segundo –, mesclados a uma expressão religiosa típica da região, a pajelança. Tal configuração é um reflexo do movimento que as tribos tiveram no interior do país em virtude do tráfico interno de escravos.
Conforme já mencionado anteriormente, houve grande aproximação das religiões afro-brasileiras com a religião católica. Isso porque o catolicismo era a única religião tolerada no país, de forma que era uma maneira de os escravos e, posteriormente, os negros livres, se legitimarem socialmente. Desse modo, mesmo praticando suas religiões africanas, os negros se diziam e frequentavam os ritos católicos, estabelecendo paralelos entre suas divindades africanas e os santos católicos, adotando seu calendário de festas, valorizando seus ritos e sacramentos, de modo que adotaram um verdadeiro sincretismo religioso, característica presente nas várias denominações religiosas afro-brasileiras já citadas (PRANDI, p. 02).
Embora a religião católica fosse a única permitida e os escravos fossem proibidos, por consequência, de praticar suas religiões nativas, Jensen (p. 02-03) afirma que os escravos conseguiram transmitir e desenvolver sua cultura e tradições religiosas em virtude da continuidade do uso de suas língua materna, da presença de líderes religiosas em seu meio e da chegada constante de novos escravos. Afirma, ainda, que a interação das religiões afro-brasileiras com o Catolicismo se deveu, principalmente, a uma estratégia de sobrevivência, uma vez que os terreiros eram constantemente visitados pela polícia e a inclusão de elementos católicos fortalecia a imagem de praticantes da religião oficial perante as autoridades.
Sant’Anna (p. 03-04) assevera que a Igreja Católica se relaciona diretamente com a origem de religiões afro-brasileiras, citando o Candomblé, ao dizer que, no início, as primeiras irmandades negras se organizaram em forma de confrarias ou irmandades religiosas católicas, como forma de controle dos escravos. Estas organizações contribuíram para a preservação dos costumes tradições africanas.
Com a instauração da República, foi elaborado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (instituído pelo Decreto 847, de 11 de junho de 1890) que não era favorável às práticas religiosas que não estivessem nos cânones da tradição judaico-cristã, apesar da Constituição de 1891 consagrar a liberdade de culto, tornando-se um arcabouço para que o Estado Brasileiro tangenciasse acerca do campo religioso de matriz africana (SILVA, p. 02).
A Constituição de 1934 também tinha artigo específico sobre questões do campo religioso, consagrando a liberdade de culto, mas não era favorável às religiões de matriz africana na medida em que condicionava a tal liberdade a obediência à ordem pública e bons costumes, que na verdade referiam-se aos costumes de origem burguesa, ocidentais e cristãos. Contudo, foi durante a década de trinta, sobretudo após a implantação do Estado Novo de Vargas, as perseguições aos praticantes de religiões de matriz africana se tornaram implacáveis. (SILVA, p. 02-03).
A partir da década de sessenta houve um interesse de um segmento da intelectualidade para com o universo religioso afro-brasileiro o que contribuiu para que determinadas casa fossem mais toleradas, em especial as que foram objeto de estudo da ciências, embora as perseguições continuassem. No final da década de setenta, o movimento negro brasileiro tinha como uma de suas causas a defesa da religiosidade matriz africana, enquanto que na década de oitenta, passados os anos de chumbo do regime militar, com a reorganização efetiva dos movimentos sociais, a religiosidade de matriz africana ganhou mais visibilidade, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988 (SILVA, p. 05).
5.2. Características dos cultos
Os cultos no Brasil possuem características distintas dos cultos africanos, que “são dinásticos, familiares, tribais ou circunscritos a determinadas localidades” (SANT’ANNA, p. 03). Aqui os terreiros reúnem num mesmo lugar cultos de divindades diversas que eram dispersos no território africano, um fruto da escravidão, que reunia pessoas de vários grupos distintos.
Nos cultos religiosos afro-brasileiros não existe uma autoridade eclesiástica comum, capaz de manter uma unidade. Não existem ordens sacerdotais, hierarquia ou relação entre os cultos, mesmo dentro da mesma denominação religiosa:
cada culto se dirige por si, independentemente, sem dever obediência a nenhum outro de modo que o aprendizado da teogonia e da liturgia se faz dentro dele, para servi-lo, ao sabor das conveniências e dos conhecimentos do seu chefe. (CARNEIRO, 1977, p. 31)
Entretanto, em virtude do tráfico de escravos, houve a promoção entre o intercâmbio linguístico, sexual e religioso entre escravos e ex-escravos, provenientes das diferentes nações já citadas (CARNEIRO, 1977, p. 17). A isso se deve a observância de características que podem ser encontradas em todas as religiões afro-brasileiras. Parte dessa “unidade” se deve, ainda, como já dito, à grande concentração de jêjes e nagôs na Bahia, que acabaram por imprimir sua hegemonia cultural aos outros povos (SANT’ANNA, p. 03).
No que diz respeito às divindades, nos cultos negros de origem africana sempre se admitiu a existência de um único ser supremo, que possui todas as qualidades do Deus de religiões monoteístas universais como o cristianismo e o maometismo. Essa divindade é chamada de Ôlôrún (Senhor do Céu) pelos nagôs e de Zâmbi ou Zâmbi-ampungo (chamado de Zânia-pombo no Brasil) pelos falantes da língua banto e não possui culto organizado, altares, nem pode ser manifestado materialmente, isso porque, após criar o céu e a Terra, jamais voltou a intervir na criação, tendo sido seu filho, Oxalá, quem gerou a humanidade. Por essa razão, raramente é citado entre os adeptos de quaisquer destas religiões aqui já citadas.
Pode-se dizer, dessa forma, que são religiões monoteístas pelo que fato de que, além de possuírem um único Deus, todas as demais divindades presentes situam-se em posição hierárquica notavelmente inferior à dele, como agentes do Deus supremo e são chamados, aqui, de ôrixás ou vôdúns (vocábulos nagô e jêje, respectivamente), caboclos, santos, guias, dentre outros (CARNEIRO, p. 22-23).
As divindades cultuadas nas religiões afro-brasileiras tem origem tanto da África como do Brasil, embora apenas uma pequena parte das divindades existentes na África tenha se fixado no Brasil e tenham perdido o escalonamento hierárquico que possuíam na sua origem. Já as divindades nacionais costumam ser de dois tipos: caboclos, que são idealizações românticas, indianistas, dos antigos habitantes do país, como Pena Verde, Tupinambá e Sete Serras; e negros, geralmente velhos escravos santificados pelo sofrimento vivido, a exemplo de Pai Joaquim, Velho Lourenço e Maria Conga. Há uma certa variabilidade acerca dessas divindades entre as denominações religiosas afro-brasileiras. A esse respeito, diz Carneiro (1977, p. 23) que muitas delas assumem outros nomes e identificações dependendo do lugar, da orientação do culto, da popularidade de santos católicos ou da existência de tradições semelhantes.
Uma outra característica apontada é que as divindades africanas não tem uma representação antropomórfica ou zoomórfica, mas costumam ser representadas por sua moradia favorita ou suas insígnias. As figuras que se costuma encontrar nos cultos não representam diretamente as divindades, mas sim humanos que por elas foram possuídos. Nos cultos do Rio de Janeiro e São Paulo, entretanto, há esculturas representando diretamente as divindades caboclas e negras, nascidas no Brasil, mas continuam seguindo o costume de não representar as divindades africanas.
Para se identificar cultos brasileiros de origem africana, Carneiro (1977, p 25) afirma que é preciso identificar ainda outras características muito importantes, por ele elencadas. A primeira delas é a possessão pela divindade. Nos cultos de matriz africana, a divindade se apossa do corpo do crente, servindo-se dele como instrumento para a sua comunicação com os mortais. Destaque-se que o crente é possuído pela própria divindade, não por espíritos de mortos, como no espiritismo, e essa possessão pode se dar nos agentes em geral, diferentemente da pajelança, em que só o pajé, o líder espiritual, serve de instrumento.
A possessão se exerce sobre crentes eleitos, especialmente do sexo feminino. Há ainda o caráter pessoal da divindade. Cada pessoa tem uma divindade protetora velando por si. Na África cada divindade rege um aspecto da natureza e uma família em particular. Já no Brasil, como a escravidão acabou por separar as pessoas de suas famílias, as divindades se tornaram protetores dos indivíduos (JENSEN, p.02).
Servir de instrumento à divindade (a isso chamam cavalo) é privilégio de alguns crentes, que precisam iniciar-se (o que chamam assentar o cavalo, que prepara o crente como devoto e altar) para recebê-la. Os outros devem se submeter a determinadas cerimônias para servi-la de outra forma. Cada cavalo está preparado para receber apenas a sua divindade (ou divindades, dependendo do culto) protetora e nenhuma outra.
A dedicação a uma única divindade já não é uma característica geral, mas mantém seu caráter pessoal em todos os cultos afro-brasileiros. Mesmo que seja Ôgún, Ômòlu ou Iemanjá, é essa divindade de cada um, não igual à divindade de outro, mesmo que também seja um Ôgún, Ômòlu ou Iemanjá.
As outras duas características apontadas estão intimamente ligadas: consulta ao adivinho e despacho de Êxu. Isso porque se referem a dois personagens presentes em todos os cultos – Ifá, o oráculo, e Êxu, o mensageiro celeste, que são seres intermediários entre as divindades e os humanos e estabeleceram entre si uma associação inseparável.
Ifá se situa em posição hierárquica superior a Êxu, pois traz aos homens as palavras das divindades, enquanto Êxu transmite às divindades os desejos dos homens.
As cerimônias religiosas se iniciam com momentos dedicados a Êxu para que ele transmita às divindades os desejos daqueles que as celebram, sempre com sua homenagem obrigatória, o despacho ou ébó. O despacho pode ter várias formas – entre elas sacrifícios de animais. No Brasil, o despacho deve ser depositado numa encruzilhada, que é domínio de Êxu.
Ifá chegou ao Brasil na sua forma mais modesta: interpretação de búzios, dispostos em rosários ou soltos. Essa forma de consulta foi corrompida, com a consulta às divindades sendo feita não mais por um sacerdote especial, mas por chefes de culto, como mais uma de suas atribuições. Essa consulta, no Brasil, pode ser realizada diante de outras formas, como um copo d’água ou vela acesa, uma influência da cultura europeia, com o espiritismo e o ocultismo, onde se vê o futuro do consulente, estando o adivinho possuído por uma divindade.
Assim funcionam as relações entre as duas entidades: o consulente pergunta ao adivinho, Êxu manda a mensagem e Ifá transmite a resposta das divindades ao sacerdote, que interpreta. Carneiro, a respeito de ambos, comenta:
Se a consulta às divindades nem sempre se faz sob a invocação de Ifá, a sua associação ao despacho de Êxu dar-nos-á a confirmação de que se trata de uma das facetas mais importantes do modelo nagô. (1977, p. 28)
E conclui:
“Em suma, estas características, comuns a todos eles – a possessão pela divindade, o caráter pessoal desta, a consulta ao adivinho e o despacho de Êxu – demonstram que esses cultos constituem realmente uma unidade, que assume formas diversas em cada lugar” (1977, p. 28)
Assim, embora não sejam cultos uniformes, com características e influências distintas, pode-se encontrar traços comuns, que fornecem uma identidade às religiões brasileiras de matriz africana.
Antes de adentrar no tema do uso de animais em sacrifícios nas religiões afro-brasileiras, necessário analisar o tratamento conferido ao exercício de práticas religiosas pelos adeptos, enquanto manifestação de sua religiosidade, pelo ordenamento jurídico brasileiro.