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Teorias sobre as relações entre Direito e Moral

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Agenda 04/09/2014 às 08:23

Uma concepção razoável das relações entre direito e moral deve levar em conta que se trata de fenômenos sociais distintos, apesar de a hipótese normativa prevista em um poder repetir-se em outro em determinados casos.

Resumo: O estudo discorre sobre as teorias que buscam explicar as relações entre Direito e Moral, analisando as perspectivas da separação absoluta, separação relativa, integração absoluta e integração relativa.   

Sumário:  1. Introdução. 2 A conceituação da moral ante o direito: critérios de distinção. 2.1. A questão do “foro interno” da moral. 2.2. A alteridade das ordens normativas. 2.3. Autonomia do direito, heteronomia da moral. 3. Modelos teóricos de articulação entre direito, moral e política. 3.1. Separação absoluta. 3.2. Separação relativa. 3.3. Integração absoluta . 3.4. Integração relativa. 4. A problemática da ética como ordem objetiva e a politização da moral. 5. Conclusão. Notas. Referências.

Assuntos: Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito.


1. Introdução

A distinção entre moral e direito é um dos problemas mais complexos da filosofia jurídica. Com efeito, Ihering o denominou o “Cabo Horn” da ciência do Direito [1], associando a discussão à região de difícil navegação, situada ao ponto mais meridional da América do Sul, cuja travessia se fazia necessária para os navios que partiam do Atlântico ao Pacífico antes da abertura do Canal do Panamá.

De fato, as relações entre moral, direito e política têm sido explicadas sob os mais variados modelos, sendo considerada por muitos fracassada a tentativa de fornecer uma clara delimitação entre a experiência jurídica e os ditames da moral. Em que pese a susceptibilidade a críticas fundamentadas, os modelos aprofundam a compreensão do objeto e, por certo, destacam aspectos verossímeis da temática em estudo. Consideram-se, aqui, quatro modelos básicos para a experiência verificada historicamente entre direito e moral: separação absoluta, separação relativa, integração absoluta e integração relativa. Antes dessas colocações, contudo, cabe o tratamento do próprio conceito de moral, o que revela o equívoco de certas concepções alardeadas na práxis jurídica. Jamais arvorando ser definitivo em suas conclusões, este texto busca esclarecer o estado atual da investigação jusfilosófica acerca do tema.


2. A conceituação da Moral ante o Direito: critérios de distinção

Basicamente, três têm sido os critérios utilizados para definir a moral frente ao direito: 1) a localização da moral no foro interno da consciência, ao passo que o direito se preocuparia com o foro externo ao indivíduo, considerando as condutas levadas a cabo pela pessoa humana; 2) a intrínseca bilateralidade ou alteridade do jurídico, oposta à unilateralidade ou individualidade da moral; e 3) o necessário caráter heterônomo do direito em contraste com a irrenunciável condição autônoma da moral. [2]

Uma reflexão mais detida, porém, revela problemas na conceituação produzida pelos critérios distintivos propostos. Analisemos cada um individualmente.

2.1. A questão do “foro interno” da moral

Ideia introduzida por Thomasius e Kant, teve por finalidade afastar a ingerência do Estado absoluto da esfera íntima da consciência. De fato, a monarquia absolutista dos séculos XVII e XVIII, inspirada na teoria do “direito divino dos Reis” [3], representava sério problema à liberdade de pensamento, na medida em que governava sem limites por um direito cada vez mais legislado. Assim, colocar a moral como ordem normativa diversa do direito, ocupada exclusivamente com o âmbito interno do indivíduo, ao passo que a lei, de responsabilidade do Estado, regularia tão somente a conduta humana passível de manifestação externa mostrou-se acepção teórica favorável à classe pensadora da época, caracterizando-se, em verdade, um “argumento de oportunidade” ante uma situação histórica assaz particular. Como bem coloca Pérez Nuño:

[...] la doctrina juídica sucesiva, al convertir en critério incuestionable de separación lo que era mero principio demarcador, incurrió en um doble extravío. En primer término, soslayó el carácter conjuntural de esa referencia al fuero interno y externo, lo que engendró el anacronismo hermenéutico de juzgar dogma absoluto lo que tan sólo era un argumento de oportunidad para una particular situación histórica. Olvidó también el sentido episódico de esa referencia en unas doctrinas como las de Thomasio y Kant que, asumidas en su integridad, entrañan una fundamentación inequívocamente ética del derecho. [4]

De fato, a concepção de direito de Thomasius e Kant apresenta significativo fundamento ético. Jean-Cassien Billier comenta esse aspecto da teoria kantiana:

Há em Kant um pensamento crítico do direito, isto é, uma crítica do direito em nome da liberdade. Nesse caso, há em certa medida uma critica “moral” do direito, uma vez que é primeiramente na forma moral do dever e do imperativo categórico que se exerce a liberdade. O problema do direito é, então, pela própria declaração de Kant em A ideia de uma história universal, o problema “mais difícil” e “aquele que será resolvido por último pela espécie humana”: este problema é o de assegurar o máximo de liberdade com um mínimo de restrições. Ora, tender a esta maximização constante da liberdade é o imperativo do direito, sua restrição moral interna, se podemos dizer. [5]

Como se vê, afirmar que o direito ocupa-se exclusivamente do “foro externo” da pessoa constitui generalização de uma tese levantada em um específico momento histórico e com uma nítida finalidade retórica. Em verdade, se a teoria jurídica prescindir do momento interno ou psíquico da conduta de um indivíduo, resulta impossível explicar qualquer comportamento relevante para o direito. Conceitos jurídicos fundamentais como “boa-fé” e “dolo”, assim como “responsabilidade” e “culpabilidade” remetem fortemente à esfera dos motivos e das intenções do “foro interno”.

De igual sorte, é também equívoco sustentar que a moral ocupa-se apenas do foro interno: a retidão de intenções que não se traduza em ação ou que se manifeste em um comportamento perverso merecerá reprovação moral precisamente por essa incoerência de sua dimensão externa. [6]

2.2. A alteridade das ordens normativas

Um segundo critério utilizado a diferenciar a moral do direito é a noção de que o jurídico é dotado de intrínseca bilateralidade ou socialidade, visto que suas normas se dirigem a regular a sociedade, ao passo que a consciência ética, ou moral, é um fenômeno essencialmente pessoal, de irrenunciável individualidade.

É necessário cautela com essa afirmação. Em verdade, a alteridade ou bilateralidade não se dá apenas no direito, mas em toda a vida prática do homem que, enquanto ethos, desenvolve-se em um quadro social. [7] A denominada “hipótese robinsoniana”, do indivíduo isolado cuja conduta pode ser objeto de consideração moral, mas não jurídica, devido à ausência de intersubjetividade, não passa de uma abstração, também do ponto de vista da moral. De fato,

El hombre histórico es social, y en la sociedad realiza su humanidad formando parte de un tejido de entes sociales y políticos en los que realiza su vida a través de relaciones intersubjetivas. Constituye uno de los aspectos más relevantes de la ética marxista el haber revelado el irrenunciable carácter social de la moral. La tesis de la unilateralidad de la moral se entronca com el individualismo ético y constituye una deformación ideológica de la naturaleza de la acción. [8]

Com efeito, a moral se desenvolve no seio da coletividade, dado que, como ordem normativa, tem por objeto comportamentos humanos que, direta ou indiretamente, se referem a outras pessoas. Os supostos “deveres do homem para consigo mesmo”, como o preceito da castidade ou da proibição do suicídio somente se manifestam na consciência de homens que vivem em sociedade. O comportamento que tais normas prescrevem dirige-se diretamente a um sujeito, mas de forma indireta, incide na sociedade – que não tem interesse na generalização da prática do suicídio ou na completa balbúrdia sexual. Como bem coloca Kelsen, “os chamados deveres do homem para consigo próprio são deveres sociais. Para um indivíduo que vivesse isolado não teriam sentido.” [9] O sujeito hipoteticamente isolado é um ser amoral. Supor-lhe a existência de deveres morais é tão absurdo quanto propor que esteja sujeito a uma ordem jurídica.

Modernamente, a moral tem sido concebida como fruto de uma ética discursiva. Postula-se que as obrigações morais se justificam através da comunicação intersubjetiva e em função de preferências ou opções conscientes e universalizantes. [10-0] De fato, o próprio conceito de moral exige referência a categorias sociais (valores, discrepâncias, acordos, conflitos, bens socialmente relevantes). Toda moral é, portanto, um fenômeno social.

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2.3. Autonomia do direito, heteronomia da moral

Busca-se, constantemente, por fim, diferenciar o direito da moral pela afirmação de que a moral é um sistema normativo autônomo, ao passo que o direito é, por natureza, heterônomo em sua formação. Significa dizer que a produção das normas morais procede do indivíduo, o qual, autonomamente, cria, pelos ditames da consciência, a regra moral; o direito, por sua vez, seria heterônomo, porquanto originado por agente externo ao sujeito.

Tal dicotomia entre imperativos autônomos e heterônomos surgiu com Kant:

Kant sostiene que la autonomía de la voluntad (Autonomie des Willens) constituye el rasgo supremo y distintivo de la moralidad. Esa autonomía de la voluntad consiste en su propriedad de ser ley para sí misma, sin depender de factores externos al proprio sujeto. Cuando el hombre, en lugar de obedecer a su propria ley, que surge de su razón, actúa em functión de estímulos o motivos ajenos a su determinación racional del bién, lo hace em functión de la heteronomía (Kant, Grundlegung zur Metaphisik der Sitten, II Abschmitt; íd., Kritik der praktischen Vernunft, I, i, 8, teorema IV). [10]

No plano jurídico, a autonomia tem sido vinculada ao conceito de livre desenvolvimento da personalidade, reconhecido como valor fundamental, podendo ser definida como 1) liberdade de atuação, 2) capacidade eletiva, 3) adequação da conduta à lei moral. [11] Valor trabalhado por distintas Constituições modernas, desdobra-se em dois grandes tipos de liberdade, a saber, a liberdade geral de ação e a liberdade informativa, referente à capacidade de autodeterminação do alcance das informações relativas à sua vida particular.

Como se observa, a autonomia, em sua pluralidade de acepções, apresenta íntima relação com uma multiplicidade de outros valores, tais como dignidade, liberdade, desenvolvimento da personalidade, autodeterminação. Logo, longe de implicar autoconfinamento do sujeito moral, diz respeito a sua incorporação a um processo de estímulos e projeções sociais. [12]

Percebe-se, daí, que é preciso encarar com reservas a célebre distinção kantiana. Em verdade, conceber a autonomia como autoconsciência do bem em si mesmo e reputar ações morais inautênticas – porque heterônomas – as decorrentes de estímulos que transcendem ao sujeito conduz ao absurdo. Segundo Agnes Heller, tal declaração “violenta toda a experiência empírica”. De fato, a convivência social revela um sem-número de situações levadas a cabo pelo sujeito em razão não de seu interesse particular, mas de verdadeiras obrigações que lhe são impostas, a despeito de não jurídicas. A conceber a moral como puramente “autônoma”, no sentido kantiano, ter-se-ia que reputar como falsas todas as formas históricas de moralidade positiva, visto que integradas por regras heterônomas.

As premissas éticas de Kant descrevem a moral e a moralidade crítica individual. A partir daí, verifica-se inadequação desse critério para diferenciar a moral do direito, vez que a moral positiva, apesar de heterônoma, não se confunde com a norma jurídica. [13]

A pretendida autonomia da moralidade é algo histórica e experimentalmente irreal, inalcançável. Enquanto ser histórico e social, o homem aprende a comportar-se moralmente em sua vida prática, que se concretiza por meio de experiências intersubjetivas. Todo sistema de moralidade já fundado consistiu na reformulação de uma moral positiva anterior, herdada.

O sentido da autonomia, portanto, não reside na possibilidade de que cada sujeito crie seu próprio sistema de moralidade, mas que sua consciência individual venha a aderir, criticamente, a normas morais heterônomas. A autonomia da moral consiste, unicamente, em que um sujeito precise reconhecer uma norma heterônoma para que tenha validade para si. [14]

De outro lado, é preciso reconhecer que o direito, por sua vez, também não reside no campo da completa heteronomia. Como ocorre nos diferentes sistemas normativos, há, no direito, diferentes graus de heteronomia. O Direito Privado, para exemplificar, é tido como o campo normativo em que prevalece a “autonomia da vontade”, expressa principalmente na forma contratual. Em outros ramos do direito, como no Internacional Público ou no Direito do Trabalho, o acordo de vontades autônomas ocupam lugar de destaque como fontes normativas (respectivamente, tratados internacionais e contratos de trabalho, acordos e convenções coletivas). Verifica-se, assim, relativa autonomia, no sentido kantiano do termo, na formação de normas jurídicas – o que rechaça a tese de que somente a moral adviria de uma produção normativa autônoma. A conclusão a que se chega é que se trata de mais um critério que não apresenta utilidade à tarefa de distinguir a moral do direito.


3. Modelos teóricos de articulação entre direito, moral e política

Tendo em vista que os critérios distintivos examinados não se prestam a solucionar o problema da delimitação teórica entre os conceitos de moral e direito, cabe considerar o que as reflexões jusfilosóficas mais recentes têm pontuado no que se refere às relações travadas entre as diferentes ordens normativas. Em sua “Teoría del derecho: una concepción de la experiencia jurídica”, Antonio-Enrique Pérez Nuño analisa quatro visões do fenômeno jurídico, cada uma das quais estabelecendo uma diferente relação com a moral e com a política, do ponto de vista de sua intersecção ou distanciamento. Analisemos cada um dos modelos propostos.

3.1. Separação absoluta

Trata-se da concepção segundo a qual moral, direito e política constituem ordens normativas autônomas e completamente independentes. A imagem sugerida é de três linhas paralelas que nunca se cruzam.

Hans Kelsen pode ser considerado o pensador mais representativo dessa linha. Sua “Teoria Pura do Direito” coloca o direito como fruto da vontade racional do homem e não das leis naturais. Propõe que a ciência jurídica deve se ocupar do direito em si, enquanto estrutura normativa autossuficiente, autorreferente e coerente. O “dever-ser” jurídico, de natureza forma-normativa, não apresenta conteúdo ético. De acordo com as premissas kelsenianas, o caráter “puro” da ciência jurídica faz com que um conceito ético, político ou sociológico do direito seja considerado metodologicamente inaceitável. [15]

Segundo Kelsen, o fundamento de validade de uma norma não pode ser mais que outra norma. Tal concepção levou-o à elaboração da teoria da “norma fundamental”, fundamento de validade de todo o sistema. A Constituição de um Estado deve ser compreendida como no ápice do ordenamento, vez que inaugura uma nova ordem jurídica. O fundamento de validade da Constituição jurídica, por sua vez, é a “norma fundamental” (Grundnorm), não positiva, situada no plano lógico-hipotético, transcendental.

A acepção de Kelsen toma a palavra Constituição em dois sentidos: no lógico-jurídico e no jurídico-positivo. De acordo com o primeiro, Constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau. [16]

A obsessão de Kelsen por uma teoria “pura” do direito levou-o, assim, a conceituar a ordem jurídica como sistema puramente normativo, livre de qualquer submissão a valores éticos transcendentais, sujeito, tão somente, a uma “norma fundamental” hipotética, situada no plano supra-jurídico, cujo conteúdo é, unicamente, o comando de prestar obediência à “primeira Constituição histórica”. Noutras palavras, o fundamento de validade da ordem positiva é a Constituição jurídica positiva, posta, reconhecida formalmente como no ápice do ordenamento; o fundamento de validade da Constituição positiva, por sua vez, é a norma supra-jurídica, não positiva, hipotética, situada no plano lógico, meramente teórico, que prescreve que se deve obedecer ao conteúdo da Constituição positiva. A norma fundamental, assim, não é norma posta, mas “pressuposta pelo pensamento jurídico”. [17]

Tal entendimento leva a sérios problemas de ordem conceitual. Do ponto de vista interno ao sistema jurídico, resuta contraditório aos pressupostos da própria teoria “pura” do direito que a norma fundamentadora do sistema de fontes jurídicas não seja uma norma posta. Na concepção kelseniana, a Grundnorm não faz parte do ordenamento positivo, constituindo mero ideal. Logo, a “pureza” do sistema resulta seriamente comprometida, na medida em que se fundamenta em um postulado fictício. [18]

Kelsen propõe ainda, em fase posterior de sua lucubração, a separação conceitual entre política e Estado e a identificação entre Estado e direito. O próprio autor reconhece, em estudos ulteriores, que o dualismo Estado-direito toma a estrutura social como mera ordem normativa; a tese remanescente, contudo, do desencontro entre Estado e política mostra-se uma contradição em termos: sendo a política tomada, historicamente, como “a arte do bem governar” – o termo “política” é derivado do grego antigo πολιτε?α (politeía), que indicava todos os procedimentos relativos à pólis, ou cidade-Estado [19] –,  não faz sentido uma compreensão de Estado enquanto ordem de direito distinta da política.

3.2. Separação relativa

Um segundo modelo abarca o conjunto de concepções que, a despeito de não abandonarem a possibilidade de uma independência conceitual entre as três ordens normativas, reconhecem entre elas determinados pontos de conexão e interferência. Concebendo uma separação relativa, a relação entre direito, moral e política seria estabelecida graficamente como uma pirâmide, tendo em seu ápice a moral, seguida do direito e apresentando em sua base a política. A moral seria o fundamento de validade do direito, que, por sua vez, validaria a ordem normativa da atividade política. Moral, direito e política seriam conceitos distintos, mas interferentes entre si, enquanto ordens éticas escalonadas em uma verticalidade hierárquica.

Tal teoria encontra representatividade na obra de Herbert Hart, considerada uma das mais interessantes revisões da doutrina kelseniana. A concepção jurídica de Hart pressupõe, em lugar da norma fundamental de Kelsen, a existência de uma “regra de reconhecimento” (rule of recognition), dotada de inquestionável conteúdo ético, porquanto representativa da aceitação da norma de direito por parte da sociedade e dos órgãos públicos. Para Hart, o “reconhecimento” da norma se faz evidente (is shown) pela efetiva aplicação da regra jurídica por parte dos cidadãos e dos agentes públicos, em particular os juízes. Logo, a validade do direito estaria sujeita, em última análise, a um juízo moral realizado pela inteira sociedade.

O positivismo moderado de Hart supõe, assim, um resquício de direito natural a ser necessariamente positivado pelos homens para que a regulação social tenha aplicabilidade efetiva:

Resulta obligado recordar en este punto que la teoría de Hart defiende y formula un contenido mínimo del derecho natural. Lo integrarían un conjunto de verdades obvias (rasgos antropológicos que defienen la naturaleza de los seres humanos, su vulnerabilidad, igualdad aproximada, limitación de su altruismo, capacidad intelectual e fuerza de voluntad, así como la propria limitación de los recursos) que deben ser tomadas en consideración para garantizar la sobrevivencia humana y la propria viabilidad de las sociedades. Si las instituiciones no quieren ser simples clubes de suicidas, tendrán que admitir reglas que, haciéndose cargo de la naturaleza del hombre y del mundo, impidan la violencia, regulen la propriedad y organicen, en suma, la cooperación social a través de normas coercitivas. [20]

O modelo peca por considerar todo o direito como fundado na moral e toda a política fundada no direito. Ao sugerir que a validade do direito decorre da aceitação do conteúdo normativo por parte da sociedade após um juízo de adequação da norma jurídica com os preceitos morais, a tese ignora o fato de que existem normas de direito, válidas e em efetiva aplicação por parte da sociedade civil e dos representantes do Estado, que não possuem qualquer conteúdo axiológico. O exemplo colocado por Miguel Reale é bastante pedagógico:

Uma regra de trânsito, como, por exemplo, aquela que exige que os veículos obedeçam à mão direita, é uma norma jurídica. Se amanhã, o legislador, obedecendo a imperativos técnicos, optar pela mão esquerda, poderá essa decisão influir no campo moral? Evidentemente que não. Há um artigo no Código de Processo Civil, segundo o qual o réu, citado para a ação, deve oferecer a sua contrariedade no prazo de 15 dias. E por que não 10, 20 ou 30? Se assim fosse, porém influiria isso na vida moral? Também não. [21]

De fato, além de normas com conteúdo moral ou imoral existem as de caráter amoral, que se colocam fora do âmbito da discussão axiológica, não cabendo, por sua natureza, um juízo de valor, quanto se representam o bem ou o mal. A regra jurídica que estabelece a maioridade penal aos 18 anos constitui mera definição do legislador, que precisava estabelecer um limite a partir do qual o tratamento dado pelo Estado ao jovem praticante de conduta típica passaria da mera orientação em instituição educacional para o cumprimento de pena em estabelecimento carcerário. Existe algum conteúdo valorativo na idade de 18 anos? O jovem com 17 anos e 11 meses é menos consciente de sua conduta que o de 18 anos completos? Por sua vez, a pessoa com 18 anos e um dia é absolutamente mais responsável por seus atos que aquele que completará a maioridade no dia seguinte? O marco dos 18 anos não contém um valor em si. Trata-se de mera definição, que precisou ser estabelecida, com o fim de solver a questão do momento biológico a partir do qual incidirão na pessoa do agente as sanções previstas no Código Penal. Há, portanto, no direito, uma zona alheia à moral, constante de normas de ordem técnica ou de mera convenção, para as quais não cabe juízo de valor.

Além disso, é preciso reconhecer, a despeito de configurar realidade contrária à intenção do direito, a existência de normas jurídicas de conteúdo nitidamente imoral – mas que, nem por isso, deixam de apresentar validade e de ostentar real efetividade pela aplicação cotidiana dentro e fora dos tribunais. O direito tolera (ou já tolerou) diversas condutas condenadas pela moral geral e religiosa, tais como a mentira e o nepotismo. O fundamento de validade dessa parte da ordem jurídica, portanto, não se encontra na moral, mas tão somente nos critérios formais de criação, a saber, a obediência a um rito específico de formação (processo legislativo) e a prolação por quem seja dotado de atribuição para tanto (regras de iniciativa e de competência legislativa), no que se aproximam da concepção kelseniana.

Assim, nem toda regra jurídica necessita de um valor moral como fundamento para que seja “reconhecida” pela sociedade ou pelos próprios órgãos do Estado. A experiência demonstra a existência de regras de direito sem conteúdo moral ou com conteúdo contrário à moral, válidas e em efetivo uso – realidade não explicada pelo presente modelo.

3.3. Integração absoluta

De acordo com esse modelo, a moral seria uma ética universal, que conteria o direito e a política. Todo direito seria necessariamente moral e toda política seria necessariamente direito. O direito seria uma moral específica e a política uma diferenciação do direito. Graficamente, ter-se-iam três círculos concêntricos, com a moral contendo os demais, como ethos universalista, e a política circunscrita a uma parte do direito.

Esta tesis ha hallado eco en el iusnaturalismo neotomista, así como em otras doctrinas iusnaturalistas de la cultura contemporánea. Suele ser um rasgo distintivo común a las diversas teorías neotomistas la convicción de que la ontología jurídica, al indagar el ser del derecho en su significación plenaria, desemboca forzosamente en la deontología; es decir, el “deber ser” jurídico. Por ello, desde la perspectiva de la estructura ontológica del derecho, el derecho natural, entendido como derecho objetivo justo, se identifica con la noción misma del derecho; es más, a tenor de este planteamiento, la propria noción misma del derecho justo constituye un plenonasmo, ya que pueden existir leyes injustas, pero no un derecho injusto. [22]

A teoria, que se reveste de premissas claramente jusnaturalistas, compreende o direito como necessariamente justo. Como coloca Gustav Radbruch, citado por Pérez Luño na obra acima referida, “no se puede definir el derecho, incluso el derecho positivo, si no es diciendo que es un orden establecido con el sentido de servir a la justicia”. Nessa ótica, uma regra positiva imoral ou injusta não poderia ser considerada direito.

A tese reflete puro idealismo. Em que pese a noção compartilhada pelos diversos sistemas jurídicos de o direito ter por intuito a realização da justiça, é dado empírico que há normas de validade, efetividade e aplicabilidade inquestionáveis que não se revestem de conteúdo ético. Se não se pode chamar de “direito” uma norma reconhecida pela comunidade jurídica e que fundamenta uma conduta levada a cabo pelo Estado mediante o uso da força, nada mais pode receber o rótulo de norma jurídica. Em verdade, conceber o direito como a norma de exclusivo conteúdo moral constitui redução da realidade jurídica a uma parcela de seu fenômeno verificável. O modelo incorre em erro semelhante ao anterior, por desconsiderar as normas jurídicas que não ostentam conteúdo ético – com um agravante: coloca o direito como em identidade com parte razoável da moral, confundindo conceitos que representam realidades ontologicamente distintas.

Ademais, tomar a política como parte exclusiva do direito também é um engano: a normativa do poder, ou as regras do governar, inevitavelmente, envolvem normas externas ao direito, de caráter puramente moral (quando lícitas) ou mesmo imoral (quando ilícitas). Tal noção peca duplamente, por 1) considerar que toda norma política é moral (porque jurídica e, logo, necessariamente moral) e 2) por entender que toda norma política é jurídica, o que ignora o fato de existirem no meio social regras de conduta política não jurídicas, que, por sua vez, podem ser morais ou imorais. De fato, ainda que toda a política fosse jurídica, não necessariamente seria moral, pois há direito amoral e imoral.

3.4. Integração relativa

Um último modelo verificável em boa parte das concepções jusfilosóficas, enxerga direito, política e moral como conceitos distintos, mas coincidentes em uma parcela. A representação se daria por três círculos secantes, com pontos de intersecção entre os três.

Essa tese representa um abrandamento da teoria anterior, que negava a condição de “direito” às legislações históricas que não correspondessem a critérios objetivos de justiça. O absolutismo do modelo anterior revela uma concepção universalizante e objetiva dos valores, tidos como sistema metafísico fechado, eterno e imutável – discurso que conduz ao risco de um determinado setor da sociedade, sentindo-se porta-voz dessa ordem axiológica objetiva, estabelecer uma “tirania de valores” sobre os demais. [23]

O modelo da integração relativa corresponde a um “jusnaturalismo moderado”: reconhece a distinção real entre moral e direito sem negar a existência de uma parcela do direito que implementa a moral objetiva. Toma a política como ordem normativa autônoma em relação ao direito, admitindo, porém, a coincidência quanto a alguns comandos normativos.

A proposta encontra guarida no pensamento de Ronald Dworkin. Para ele, a validade do direito não repousa unicamente em critérios formais; tampouco não se deve ao dado puramente fático de sua aplicação efetiva na prática social. Na teoria de Dworkin, ocupam lugar privilegiado os princípios. Para ele, o direito é constituído de regras específicas (rules), medidas ou programas políticos (policies) e princípios que entranham um imperativo de justiça (principles). [24] São os princípios, enquanto fundamentos morais da ordem jurídica e expressão dos direitos básicos dos cidadãos que estabelecem uma abertura do sistema jurídico para os imperativos da moral objetiva.

Em que pese o claro refinamento em relação aos demais modelos propostos, a teoria da integração relativa não se mostra imune a críticas. O modelo sugere que uma parte do direito se confunde com a moral. Isso é um engano, pois, o direito sempre conterá a potência da coerção, a possibilidade do uso da força, ainda que como última opção, realidade não observada nas regras morais.

O cumprimento obrigatório da sentença satisfaz ao mundo jurídico, mas continua alheio ao campo propriamente moral. Isto nos demonstra que existe, entre o Direito e a Moral, uma diferença básica, que podemos indicar com esta expressão: a Moral é incoercível e o Direito é coercível. O que distingue o Direito da Moral, portanto, é a coercibilidade. [...] Para Jhering, um dos maiores jurisconsultos da passada centúria, o Direito se reduz a "norma + coação", no que era seguido, com entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como "a organização da força". [...]. Segundo essa concepção, poderíamos definir o Direito como sendo a ordenação coercitiva da conduta humana.” [25]

Assim, ainda que uma norma jurídica seja cumprida espontaneamente, jamais se poderá dizer, com certeza, que foi realizada em razão de um comando puramente moral. A definição, aqui, dependerá do elemento volitivo íntimo do agente: se cumpriu a norma, pura e simplesmente, por reconhecimento do seu valor moral, terá sido, para ele, norma moral. Se a conduta, por outro lado, a despeito de “espontânea” (por não ter decorrido de uma imposição judicial, mas de obediência social à lei), decorreu de o agente vislumbrar a futura coerção que lhe seria imposta quando do descumprimento, tal prescrição, para ele, terá sido norma jurídica, e a realização material de sua hipótese de incidência, conduta não moral, mas efetivação de uma regra de direito.

Percebe-se, assim, que o modelo conduz ao equívoco de se pensar que há uma zona de completa indefinição entre moral e direito. Não é o caso. O elemento distintivo da coercibilidade marcará sempre o limite entre a norma de mera aceitação social e a conduta de caráter relevante para o direito. O modelo peca, portanto, por colocar em igualdade matemática conceitos que apresentarão identidade apenas quanto à hipótese normativa, mas que se mostrarão ainda distintos em sua fenomenologia integral.

Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Teorias sobre as relações entre Direito e Moral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4082, 4 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31560. Acesso em: 22 dez. 2024.

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