Muito já se falou sobre a chamada "Teoria da Despersonalização da Pessoa Jurídica", que nada mais é do que a aplicação, no Brasil, da doutrina mercantil inglesa do disregard of legal entity, ou seja, descortina-se a personalidade jurídica empresarial, atingindo-se os bens dos sócios, em caso de má administração, abuso de direito ou fraude à execução.
O presente estudo sobre o qual nos propusemos a firmar enfatiza a aplicação da sobredita "Teoria da Despersonalização" em âmbito trabalhista, onde vem sendo largamente utilizada sob a primordial justificativa segundo a qual o empregado não corre o risco do empreendimento, atribuição esta de exclusiva responsabilidade do empregador.
Cumpre observar, desde já, que o principal sustentáculo dessa justificativa encontra fundamento na não participação do empregado nos lucros auferidos pela empresa, hipótese esta imensamente já superada, uma vez que vem se tornando comum empresas - pequenas, médias e grandes – que possibilitam a efetiva participação dos empregados em seus lucros.
A nosso ver, a despersonalização da pessoa jurídica no processo do trabalho, então aplicada indiscriminadamente com base no artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor, bem como pelo disposto no Decreto n.º 3.708/19, não pode ser efetivada sem levar em conta os aspectos subjetivos ensejadores da "fraude", "abuso de direito" ou "má-administração" da pessoa jurídica, pré-requisitos da disregard doctrine.
Outrossim, como comprovar, por exemplo, a má administração ou a fraude empresarial?
Será que o simples fato de a empresa não possuir bens suficientes para, em fase de execução, responder por seus débitos trabalhistas, chega a caracterizar má-administração, abuso de direito ou fraude? Não será possível ocorrer o insucesso empresarial em virtude, por exemplo, da forte imposição das leis de mercado? Ou em virtude da concorrência, muitas vezes até desleal? Como desvendar a vontade supostamente ilícita manifestada pela pessoa jurídica? É possível desconsiderar a personalidade jurídica quando, mesmo havendo insucesso empresarial, não se desvirtua o objetivo social da empresa? Quais as condutas exercidas pelos sócios aptas a configurar a chamada "má administração"?
Numa atitude confortável, quando se posicionam alheios a todas as indagações acima formuladas, inúmeros magistrados nacionais, em seus julgados, simplesmente aplicam a despersonalização da personalidade jurídica, sem qualquer aferição criteriosa dos requisitos legais e obrigatórios para tal procedimento, como também sem mergulhar no íntimo das definições e causas do pretenso abuso de direito no uso da pessoa jurídica, já que a relatividade do direito da personalização jurídica nos leva, inarredavelmente, à teoria do abuso de direito, então forjada pela jurisprudência dos tribunais franceses.
Diga-se de passagem que o novo Código Civil, em seu artigo 50, além de estender a desconsideração da pessoa jurídica também aos administradores da empresa, impõe a despersonalização em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Mas, como pode haver o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial sem analisar-se os elementos da fraude e do abuso de direito? Poderemos aplicar tal linha objetivista [1], entabulada por Fábio Konder Comparato [2], ao processo do trabalho?
Entendemos que não. Sem a devida comprovação do elemento subjetivo e intencional, com a clara finalidade de ocultar a ilicitude ou a fraude, não há como, a nosso ver, aplicar a disregard doctrine em âmbito trabalhista, alcançando os bens dos sócios, por ausência de expresso dispositivo legal nesse sentido, aplicável especificamente à Justiça do Trabalho.
Isso porque, o disposto no artigo 2.º, da CLT, que considera empregador a empresa, individual ou coletiva, que assume os riscos da atividade econômica, deve ser interpretado com temperamentos, pelo menos em relação à desconsideração da pessoa jurídica. A uma, porque, como dito, as empresas já vêm adotando efetivas formas de participação nos lucros para os empregados, dividindo, com isso, os riscos da atividade econômica. A duas, porque tal dispositivo legal deve ser aplicado nos casos em que há necessidade de se descobrir quem é o efetivo empregador, inclusive, porque elenca, logo em seguida, hipóteses de pessoas equiparadas aos empregadores, sem, no entanto, e de forma clara e expressa, mencionar a possibilidade de despersonalização jurídica.
Assim, utilizar o sobredito dispositivo laboral para descortinar o véu da pessoa jurídica é uma verdadeira ignomínia, uma vez que não há sequer qualquer relação entre a desconsideração da personalidade jurídica e a norma encartada no artigo 2.º, da CLT. Pensar o contrário, consiste em um enorme e pouco aconselhável esforço hermenêutico.
Por outro giro, utilizar o parágrafo único, do artigo 8.º, da CLT ("o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste"), como fundamento à desconsideração da pessoa jurídica em foro trabalhista, não deve prevalecer, uma vez que o próprio artigo 20, do ainda vigente Código Civil, pela mesma linha de raciocínio, igualmente aplicável, dispõe que "as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros". Independentemente disso, não entendemos ser possível caracterizar o desvio de finalidade, descortinando a personalidade jurídica, sem a conseqüente e detida análise jurídica acerca da clara ocorrência dos institutos da "fraude", "abuso de direito" e "má-administração", requisitos estes que, hodiernamente, vêm sendo esquecidos e menosprezados em diversas decisões trabalhistas.
Deve-se ressaltar, entretanto, que, com o presente estudo, não estamos tentando desqualificar o crédito trabalhista, eminentemente de natureza alimentar e dotado de superprivilégio (art. 100, da CF, e art. 186, CTN), mas apenas objetivando expor a real problemática em torno da despersonalização da pessoa jurídica, na seara trabalhista, bem mais complexa do que pensam alguns.
Por outro lado, concordamos com a aplicação da disregard doctrine nas relações de consumo, tendo em vista a existência de norma jurídica específica a tais relações, então encartada no artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), desde que integralmente estejam preenchidos todos os requisitos capitulados nesse artigo.
Notas
1. Conforme o seguinte julgado paradigma: "Execução trabalhista. Responsabilidade objetiva dos sócios. Despersonalização do empregador. No Processo do Trabalho, a responsabilidade dos sócios é objetiva, respondendo os mesmos com seus respectivos patrimônios no caso de descumprimento de obrigações trabalhistas, de forma a obstar o locupletamento indevido do trabalho alheio. É facultado ao Juiz, nesse caso, adotar a teoria da despersonalização do empregador, insculpida no "caput" do art. 2º da CLT, de modo que o crédito trabalhista persegue o patrimônio para onde quer que vá, como um direito de seqüela. Se o patrimônio da empresa desaparecer, pouco importando a causa, os sócios, diretores e dirigentes respondem com seus patrimônios particulares." (TRT/SP, 8ª Turma, Processo 029603117006, Ac. 02970004580, DOJ, 16-1-1997)
2. COMPARATO, Fábio Konder. "O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 3.ª ed., Rio de Janeiro, 1983, p. 284-6.
Bibliografia
OLIVEIRA, Francisco Antonio de. "Manual de Penhora – Enfoques Trabalhistas e Jurisprudência". Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo.
MARTINS, Sérgio Pinto. "Direito do Trabalho". 14.ª ed., Atlas, 2001, São Paulo.
GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. "Novo Curso de Direito Civil", Vol. I - Parte Geral, Saraiva, São Paulo, 2002.
CAHALI, Yussef Said. "Fraudes Contra Credores", 2.ª ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999.