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"Por uma sociedade sem manicômios":

advento da Lei nº 10.216/2001

Agenda 26/12/2014 às 15:55

Analisam-se as inovações trazidas à aplicação das medidas de segurança ao inimputável pela Lei Antimanicomial.

Conhecer o mundo dos inimputáveis, a sua realidade carcerária e seu tratamento enquanto “preso”, surpreende qualquer pesquisador, aliás qualquer humano. Entretanto, a realidade vista nas penitenciárias, hospitais e colônias é bem diferente do que a lei requer atualmente.

Porém, todos estes questionamentos e espantosas percepções fizeram surgir historicamente o Movimento Antimanicomial, que levantava a bandeira pela fuga do modelo hospitalocêntrico de expurgação social e exílio do louco infrator, em prol de um modelo que, ao revés, buscasse a reinserção do insano em sociedade, com o tema: “Por uma sociedade sem manicômios”.

Esse Movimento da Reforma Psiquiátrica estimulou o legislativo a construir um conjunto de normas voltadas a dar efetividade aos dispositivos constitucionais que garantem a dignidade ao ser humano, independentemente de sua higidez mental.

Nesse sentido, é que a Lei 10.216/2001, mais conhecida como Lei Antimanicomial, representa um avanço, uma tentativa válida de emprestar dignidade e atenuar as limitações sociais e econômicas e as discriminações impostas às pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, trazendo grandes novidades ao ordenamento, ora vigente.

Inobstante todas as mudanças trazidas por esta lei, a problemática não fora solucionada, não há aplicabilidade prática das inovações e os insanos continuam submetidos a tratamentos inadequados e desumanos.

Portanto, faz-se mister a analise das inovações trazidas à aplicação das medidas de segurança ao inimputável pela Lei Antimanicomial e a demonstração do adequado tratamento a ser aplicado ao inimputável, de acordo com as inovações oriundas da publicação da Lei 10.216/2001.

Primeiramente, reassalta-se que há um logo histórico conhecido como “Movimento da Reforma Sanitária e Psiquiátrica” que estimulou o legislativo a construir um conjunto de normas voltadas a dar efetividade aos dispositivos constitucionais que garantem a dignidade ao ser humano, independentemente de sua higidez mental. Nesse sentido, é que a Lei da Reforma Psiquiátrica representa um avanço, uma tentativa válida de emprestar dignidade e atenuar as limitações sociais e econômicas e as discriminações impostas às pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, trazendo grandes novidades ao ordenamento, ora vigente.

A Lei Antimanicomial tem como sujeitos básicos os inimputáveis e semi-imputáveis, e, por adotar um novo modelo, se desfaz de antigos conceitos concebidos como palpáveis, como, por exemplo, a comprovação da cessação da periculosidade para se findar a medida de segurança. Além disso, a fim de garantir-lhe efetividade, expõe um rol de direitos a ser garantidos aos insanos.

Há uma mudança de paradigma psiquiátrico, diante de inexistência de evidências científicas no tratamento empregado na execução das medidas de segurança, como especial tratamento curativo. Assim, do ponto de vista clínico-psiquiátrico, assiste-se recentemente a uma mudança de paradigma da “perigosidade” para o de “risco de violência”. “Risco de violência” seria um continuum, passível de ser classificado em risco baixo, médio ou alto, que se revela da maior importância na avaliação clínico-psiquiátrica.[1]

A condicionante legal de cessação da periculosidade pode vir a condenar uma pessoa com transtorno mental em conflito com a lei a viver “ad aeternum” num hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Acrescenta-se que a agressividade é inerente ao ser humano e não apenas à pessoa com transtorno mental, e por isso, todos os homens, independente de sua higidez mental são, potencialmente, perigosos e não há conhecimento científico que saiba precisar, com absoluta segurança, quão se é perigoso, para quem se é perigoso, quando se é perigoso e quando se deixa de sê-lo[2].

Percebe-se que a exigência de cessação da periculosidade remete para o futuro, tornado-se descabida, na medida em que o Poder Judiciário solicita uma “pré-visão”, um “prógnóstico” ao perito, pois no laudo, o profissional deverá atestar que a pessoa com transtorno mental não mais voltará a representar um perigo para si ou para a sociedade.

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Enquanto as penas imputadas aos criminosos fixam-se no fato pretérito, ou seja, são estabelecidas em razão da prática de um ato contrário à lei, na época em que fora praticado, e, assim, uma vez cumprida a pena, o criminoso está livre, por já ter pago seu débito para com a sociedade. Em outra ponta, a pessoa com transtorno mental, dentro da racionalidade penal ainda adotada pelo legislador pátrio e aplicada pelos operadores do direito, se aplica uma punição futura, indeterminável, que só poderia findar-se quando houvesse a cessação da periculosidade.

Portanto, após o advento da Lei 10.216/2001 a utilização da periculosidade como base de imposição da medida de segurança restou por superada, já que diante de suas modificações, o tratamento psiquiátrico em hipótese alguma pode basear-se na periculosidade.

Vale ressaltar, que a Lei da Reforma Psiquiátrica concedeu a pessoas com transtorno mental direitos bem definidos e expressos em seus artigos 1º, 2º e 3º.

Ademais, pelo caráter não retribuitivo da medida de segurança, a internação e o tratamento ambulatorial seriam recursos terapêuticos, objetivando a reinserção social do inimputável ou semi-imputável e não um castigo, explicitada esta diretriz, no artigo 4º da Lei 10.216/2001.

Qualquer descumprimento aos direitos garantidos ao paciente pode configurar crime de tortura. Observa-se que há expressamente na redação do art. 4º, § 3º, da Lei n.10.216/2001, sequer se cogita do recolhimento da pessoa com transtorno mental submetida à medida de segurança em cadeia pública ou qualquer outro estabelecimento prisional.

Entretanto, tal situação muitas vezes é tolerada tento em vista a não implementação de políticas públicas de atenção à saúde mental, além de violar frontalmente o modelo assistencial instituído pela Lei da Reforma Psiquiátrica, constitui ainda crime de tortura, por ele respondendo também aquele que se omite quando tinha o dever de evitar ou apurar a conduta, que é agravada quando praticada por agente público.

Nesse contexto, sobressai a responsabilidade da autoridade penitenciária, do juiz, do Promotor de Justiça, além do diretor técnico, do diretor clínico e das equipes de saúde que prestam assistência às pessoas com transtorno mental, profissionais que devem fazer valer as disposições da Lei n. 10.216/2001, zelando pelo efetivo respeito à dignidade da pessoa submetida à medida de segurança, sob pena de responder criminalmente em caso de violação dos seus direitos, inclusive por omissão, conforme já explicitado.

Cumpre resgatar que a Lei 10.216/2001 surgiu como resposta aos Movimentos Antimanicomiais, que buscavam um modelo humanizador de tratamento ao louco infrator e que, embora, haja muita contradição sobre o tema, a medida de segurança não tem a natureza retributiva como a pena; pelo contrário, a internação compulsória e o tratamento ambulatorial aplicados ao inimputável objetivam, exclusivamente, a sua recuperação e jamais a expiação de castigo. Isto porque a internação, embora de caráter não retributivo, acaba por condenar o inimputável a prior das penas: a morte social.

Entretanto, esse novo modelo de atenção psicossocial, ainda alcança a possibilidade de internação determinada pela justiça, isto é, a internação compulsória, conforme o seu artigo 6º, parágrafo único, III.

Portanto, o agente inimputável ou semi-impultável, pode ser submetido à medida de segurança por intermédio do juiz, que deve observar, porém, a preferência ao tratamento ambulatorial, aplicando a internação, só e somente, “quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (artigo 4º caput, Lei nº 10.216/2001).

Isso demonstra que, embora o fato seja punível com reclusão, o magistrado deve preferir a medida de segurança não-detentiva, somente quando mostrar-se, comprovada e estritamente, necessária. Caso a medida exta-hospilatar seja insuficiente, o juiz determinará a internação obedecendo aos limites esposados pela Lei da Reforma Psiquiátrica, dentre eles a obrigatoriedade de “laudo médico circunstanciado que caracteriza seus motivos”, conforme o artigo 6º, caput, Lei nº 10.216/2001, ou seja, é vedada a internação sem que haja recomendação médica de sua real necessidade.

Há, porém uma grave contradição quanto à duração do período de internação pelas dificuldades que existem, do ponto de vista constitucional, em dirigir a um inimputável um direito penal, que embora, puna uma ação realizada no passado lança um juízo para um futuro: a periculosidade social[3]. Fato que resulta em vários questionamentos, quando a justiça e constitucionalidade da imposição dessa medida, por exemplo: Como pode se culpar quem é legalmente irresponsável? A pessoa com transtornos mentais que tenha cometido um delito é absolvida e depois apenada? Não deveria a Constituição prescrever explicitamente a possibilidade de alguém mesmo absolvido ser internado compulsoriamente?

Devido à grande insegurança jurídica causada pela discrepância da absolvição imprópria e imposição de restrição de liberdade por intermédio de uma internação compulsória, há de se considerar o frágil liame entre a manutenção “justiça e segurança social” e as centenas de injustiças individuais que podem ocorrer em nome daquela, pelo desrespeito aos direitos e garantias fundamentais explicitados no artigo 5º, da Carta Magna e aos dispositivos sopesados pelo Pacto de São José da Costa Rica e Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Esta discussão acerca da internação compulsória como sanção penal implica proceder à indagação a respeito de qual deve ser o lugar da loucura no direito, qual a vinculação existente entre os saberes médicos e jurídicos. E em meio aos mais diversos questionamentos é que o hospital psiquiátrico surge como sinônimo de instituição legitimadora da violência[4]. A internação compulsória constitui um retrocesso e termina por exigir do direito a resolução do grande desafio pela busca da desinstitucionalização da loucura.

A Lei Antimanicomial veio apresentar um novo paradigma, com a reforma do antigo Código Penal de 1940, que determinava aos inimputáveis tratamento austero, direcionada a uma frustrada tentativa de preservação a “segurança social”. Prosperamente, passadas sete décadas, a concepção é outra: o objetivado agora é a reinserção dos pacientes em sociedade, o tratamento que se requer é humanizador, e a pretensão é a preservação real da saúde publica e da ordem social.


Referências

BRASIL, Ministério Público Federal. Parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico sob a perspectiva da Lei 10.216/2001. Brasília: MPF, 2011.

JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e Reforma Psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008.

JÚNIOR, Waldeci Gomes Confessor. Internação compulsória no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira. Jus Navegandi, publicado em 06/2010. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/14967/a-internacao-compulsoria-no-contexto-da-reforma-psiquiatrica-brasileira. Acesso em: 18 de abril, 2014.

LATAS, António João; VIEIRA, Fernando. Notas e comentários à lei de saúde mental. Coimbra: Coimbra, 2004.


Notas

[1]LATAS, António João; VIEIRA, Fernando. Notas e comentários à lei de saúde mental. Coimbra: Coimbra, 2004.

[2]BRASIL, Ministério Público Federal. Parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico sob a perspectiva da Lei 10.216/2001. Brasília: MPF, 2011.

[3]JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e Reforma Psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008.

[4]JÚNIOR, Waldeci Gomes Confessor. Internação compulsória no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira. Jus Navegandi, publicado em 06/2010. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/14967/a-internacao-compulsoria-no-contexto-da-reforma-psiquiatrica-brasileira. Acesso em: 18 de abril, 2014.

Sobre o autor
Rafaela Rodrigues

Advogada. Pós graduanda em Processo Civil e Ciências Penais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Rafaela. "Por uma sociedade sem manicômios":: advento da Lei nº 10.216/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4195, 26 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31782. Acesso em: 5 nov. 2024.

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