Resumo: O presente trabalho visa a demonstrar as diferenças existentes entre os sistemas português e brasileiro de responsabilização do produtor por danos causados por produtos defeitos. Em primeiro lugar, será abordada a responsabilidade sob a ótica do Direito Civil, em que o comprador somente pode acionar o vendedor das mercadorias, que responde nos moldes do tradicional princípio da culpabilidade. A seguir, demonstrar-se-á a evolução da doutrina, jurisprudência e legislação, que permitiram a responsabilização direta e objetiva do produtor, através da superação dos princípios da relatividade dos contratos e da culpabilidade, característicos do Direito do Consumidor. Por fim, será estudada a relação de consumo, critério para a aplicação da responsabilidade do produtor: havendo tal relação, o comprador poderá se utilizar da legislação consumerista para obtenção da reparação dos danos causados pelos produtos; caso contrário, terá que se submeter ao regime civil.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 RESPONSABILIDADE CIVIL POR COISAS DEFEITUOSAS. 3 ESPONSABILIZAÇÃO DO PRODUTOR. 3.1 Superação do princípio da relatividade dos contratos. 3.2 Superação do princípio da culpabilidade. 3.3 Legislação aplicável. 4 RELAÇÃO DE CONSUMO. 4.1 Definições. 4.2 Sujeitos da relação. 4.2.1 Produtor. 4.2.2 Consumidor. 5 CONCLUSÃO. 6 REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
A responsabilização civil do fabricante por prejuízos causados por defeitos de seus produtos sempre ocorreu. Contudo, com o advento da Revolução Industrial e, mais especificamente, no século XX, com a produção em série de mercadorias, aumentaram substancialmente os danos causados por defeitos de produtos e serviços. Acidentes de consumo começaram a proliferar: acidentes de trânsito, causados por defeitos de fabricação dos veículos, vindo a atingir pedestres, inclusive; medicamentos causando graves e inesperados efeitos colaterais; contaminação de alimentos por substâncias tóxicas, etc[1].
A efetiva reparação dos danos causados ao consumidor passou por dois óbices: a responsabilidade civil tradicionalmente era centrada no princípio da culpa, havendo a necessidade de o lesado provar que o dano foi causado pelo defeito do produto; e a impossibilidade de se imputar diretamente ao fabricante a responsabilidade pelos danos causados por seus produtos.
2 RESPONSABILIDADE CIVIL POR COISAS DEFEITUOSAS
Em Portugal, a venda de coisas defeituosas está regulada nos artigos 913° a 922° do Código Civil. Tais dispositivos têm aplicação subsidiária, pelo disposto no artigo 3° do Código Comercial[2].
Primeiramente, o legislador civil cuidou de sujeitar, no artigo 913°, ao mesmo regime o vício do produto e a falta de qualidade[3], e o fez acertadamente, de acordo com João Calvão da Silva[4].
O Código Civil brasileiro disciplina o tema nos artigos 441 a 446, cuidando apenas dos vícios redibitórios[5]. A falta de qualidade não foi objeto de apreciação pelo legislador brasileiro, que somente a abordou ao tratar da venda por amostras (artigo 484) ou da venda a contento e da sujeita a prova (artigos 509 a 512), como, aliás, também o cuidou o legislador civil português, respectivamente nos artigos 919° e 923° a 926°.
Pelo sistema brasileiro, na ocorrência de vício da coisa, o comprador tem o direito de acionar o vendedor (e apenas ele), para rescindir o contrato ou, ainda, para obter abatimento do preço[6]. Em qualquer caso, poderá obter indenização, no caso de ciência do vício pelo alienante[7].
Quanto ao prazo para exercício do direito, o código brasileiro estabelece trinta dias para bens móveis e um ano para imóveis, podendo este ser reduzido á metade se o comprador já estiver na posse do imóvel. Tais prazos, contudo, não correm no período da garantia[8].
O sistema português guarda algumas diferenças em relação ao brasileiro. Além de tratar da falta da qualidade da coisa, conforme já visto, o legislador português inovou, concedendo ao comprador duas outras ações, além das redibitória e estimatória, típicas do regime de garantia edilícia. O comprador pode exigir que o vendedor repare a coisa ou, no caso de o bem ter natureza fungível, a substitua[9]. Veja-se que a obrigação de substituição inexiste se o vendedor desconhecer, sem culpa, o vício ou a falta de qualidade da coisa[10].
A solução dada ao legislador português para a indenização é semelhante à brasileira, ou seja, depende do conhecimento do vício pelo vendedor[11].
No tocante à garantia de bom funcionamento da coisa, nova inovação legislativa portuguesa[12], com responsabilização do vendedor independente de culpa ou de erro do comprador. João Calvão da Silva entende que a parte final do artigo 914° deveria ser revogada porque permite ao vendedor recusar-se a cumprir a obrigação de reparar ou substituir a coisa, além de colidir com o disposto no artigo 921°, n° 1. Explica o autor que “o comprador que exige a reparação ou substituição da coisa está, seguramente, a manifestar a vontade de obter ainda a originária prestação a que tem direito. Pede, por isso, a condenação”[13]. No mesmo sentido está acórdão do STJ:
A garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na justa medida em que, durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida.
O direito de reparação ou de substituição do comprador, beneficiário da garantia, não depende de culpa do vendedor.
A garantia de bom funcionamento é, pois, um "mais", relativamente aos direitos conferidos ao comprador pelo art. 914º, CC, onde a prova, todavia a cargo do vendedor, de que desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade da coisa vendida é motivo de exoneração do dever de reparar ou substituir a coisa.
Os direitos de reparação e de substituição, estabelecidos no art. 921º, CC, não passam, afinal, de aspectos do direito ao cumprimento do contrato, que, obviamente, não depende de culpa do devedor.
(Portugal. Superior Tribunal de Justiça. Revista. Processo n° 04B029. Relator: Quirino Soares. Data do acórdão: 19 fev. 2004)
3 RESPONSABILIZAÇÃO DO PRODUTOR
A partir do início do século XX, com a massificação das relações de consumo, mutilicaram-se os danos causados por fatos de consumo que, regra geral, restavam sem reparação. Duas são as causas apontadas pela doutrina para a ocorrência de tais fatos: despersonalização das relações entre fornecedores e consumidores, que impedia a responsabilização direta do produtor; e a produção em série, que dificultava ao consumidor a reparação dos danos causados pelo produto, uma vez que, pelo princípio da responsabilidade civil tradicional, o ônus da prova da culpa do fornecedor ficava ao encargo do comprador[14].
O debate europeu sobre o tema esbarrou nas diferenças existentes entre os sistemas de responsabilidade civil dos diversos países, que podiam ser divididos em três grupos: a) responsabilidade objetiva – Bélgica, França e Luxemburgo; b) responsabilidade baseada no princípio da culpa – Itália; e c) responsabilidade subjetiva com presunção de culpa – Alemanha, Dinamarca, Inglaterra, Irlanda e Países Baixos. Além da diferença de sistemas, havia divergência na própria fonte da responsabilidade do produtor, que poderia ser contratual (França) ou extracontratual (Alemanha)[15].
Para a solução do problema de reparação do consumidor havia a necessidade de se estabelecer qual o modelo de responsabilidade civil deveria ser adotado. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino enumerou as questões que necessitavam de resposta:
– A responsabilidade do produtor deveria ser objetiva ou subjetiva?
– O fabricante poderia ser acionado diretamente ou deveria ser seguida a cadeia de possíveis responsáveis, iniciando-se pelo vendedor do produto?
– Um terceiro que fosse vítima de um acidente de consumo poderia acionar diretamente o fabricante com base nesse novo sistema?
– Como provar que os danos foram causados por um defeito do produto?[16]
3.1 Superação do princípio da relatividade dos contratos
O primeiro aspecto a ser considerado é o da despersonalização das relações entre fornecedores e consumidores, denominada por Calvão da Silva de “cadeia de distribuição e desfuncionalização do comércio”[17]. O consumidor final encontra-se distanciado do produtor, verdadeiro responsável pela criação e pela fabricação de produtos cada vez mais complexos.
Os revendedores – atacadistas e varejistas – desempenham papel secundário na cadeia de distribuição dos produtos e são completamente alheios, tal qual o consumidor, sobre a produção, não tendo, regra geral, qualquer espécie de controle sobre ela, na medida em que os produtos são frequentemente vendidos em embalagens de origem, lacradas. Ainda que pudesse interferir na produção, o distribuidor não tem conhecimentos científicos ou instrumentos técnicos bastantes para fazer um controle relevante, adequado e eficaz do produto[18].
Não tendo, em geral, relação direta com o produtor, como poderia o consumidor acioná-lo pelo defeito de seus produtos, ante o princípio da relatividade dos contratos? Fábio Ulhoa Coelho assevera que “em princípio, portanto, se o consumidor de produtos não pudesse identificar a relação contratual a uni-lo ao fornecedor, não poderia invocar contra ele qualquer direito”[19].
A solução foi encontrada na jurisprudência dos Estados Unidos, berço da sociedade de consumo, em um precedente referente à superação da privity of contract.
Em decisão de 1916, a Suprema Corte de Nova York deu ganho de causa a MacPherson, em demanda ajuizada contra Buick Motor Co., fabricante de veículos. Síntese da demanda: MacPherson havia adquirido, em 1910, um automóvel Buick novo junto a uma empresa revendedora de sua cidade. No ano seguinte, sofreu um grave acidente, causado pela quebra de uma das rodas do veículo, por defeito de fabricação, tendo sofrido múltiplas lesões. Promoveu ação indenizatória contra o fabricante do veículo, que alegou não ter responsabilidade direta perante o autor, havendo obrigações somente perante a revendedora, com quem manteve relação contratual. A decisão da suprema corte foi no sentido de responsabilizar diretamente o fabricante, superando, nas palavras de Sanseverino, “a privity of contract e, de outro lado, estabelecendo o dever de diligência (duty of care) ao fabricante de produtos potencialmente perigosos (dangerous things because of negligent construction)”[20].
3.2 Superação do princípio da culpabilidade
O direito comum tradicional mostra-se inadequado para solucionar a reparação dos danos causados por produtos defeituosos, na medida em que, pelo princípio da responsabilidade subjetiva, o ônus da prova da culpa fica a cargo do consumidor lesado. A causa de tal inadequação repousa na produção em série e sua especialização.
Calvão da Silva, sobre o tema, afirma que “a automatização do processo produtivo, a complexa e ‘anónima’ combinação do homem com a máquina a fazer com que seja elevada a possibilidade de aparecimento de produtos defeituosos e perigosos, devido a erros humanos e falhas técnicas, muitos dos quais escapam completamente ao mais elevado grau de diligência e cuidado do homem”[21].
Continua o autor, afirmando que ocorrem duas espécies típicas de risco: os inevitáveis, independentes de qualquer culpa, e os evitáveis, em que é quase impossível estabelecer “a prova de culpa no processo produtivo que esteve na base do defeito causador de danos – dada a diluição de tarefas por um extenso número de maquinismos e de agentes que constituem a cadeia de produção, no complexo processo de especialização e divisão de trabalho”[22].
A especialização da produção, com a fabricação de produtos cada vez mais complexos, proporcionada pelos avanços tecnológicos, igualmente dificulta a compreensão, por parte do consumidor, dos riscos causados pelo produto. A essa característica da atividade empresarial, Fábio Ulhoa Coelho dá o nome de “monopólio de informações que o empresário detém sobre o produto ou serviço objeto de sua empresa”[23].
Da especialização da produção e do monopólio de informações derivam um dos princípios do Direito do Consumidor, que é a vulnerabilidade. Dentre os diversos tipos de vulnerabilidade apontados pela doutrina, a vulnerabilidade técnica é que deve ser considerada, na medida em que o consumidor não possui conhecimentos específicos sobre os produtos e serviços que está adquirindo. Segundo Luiz Antonio Rizzato Nunes, o fornecedor “escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que consumidor, está à mercê daquilo que é produzido”[24].
A vulnerabilidade é diferente da hipossuficiência, que é, nas palavras de James Marins, “diz respeito à sua precariedade de condições culturais e materiais”[25].
A superação do princípio da culpa, característica da responsabilidade aquiliana, deu-se em duas frentes, doutrinária e jurisprudencial.
No plano doutrinário, segundo Caio Mário da Silva Pereira, a origem da “doutrina objetiva vai plantar suas raízes na obra pioneira de Saleilles e Josserand”. Mais à frente, o autor afirma que o maior valor da doutrina construída por Raymond Saleilles foi a criação da responsabilidade sem culpa[26].
O contributo de Louis Josserand, em sua obra De la responsabilité du fait des chose inanimées, está em estabelecer que seria absoluta a presunção legal de culpa, somente podendo ser atacada por motivo de força maior ou de culpa da vítima[27]. Caio Mário da Silva Pereira explica que Louis Josserand “insurge-se contra a hermenêutica literal, e propõe examiná-los sob o foco da ‘evolução’, que atua sobre a responsabilidade civil, tornando-a mais consentânea com a ordem social”[28]. Neste sentido é que entende necessário pesquisar "a que se deve a evolução constante e acelerada da responsabilidade".
A jurisprudência é apontada pelos doutrinadores como a principal fonte da responsabilidade objetiva[29]. A primeira vez que se reconheceu a responsabilidade objetiva – strict liability – do produtor por danos causados por seus produtos, foi em 1963, pelo Supremo Tribunal da Califórnia, no caso Greenman contra Yuba Powers Product Inc.[30].
3.3 Legislação aplicável
Na discussão que precedeu a edição da Diretiva n° 1985/374/CEE, mais que superar as divergências existentes entre os diversos sistemas nacionais de responsabilização do produtor, os juristas chegaram a um consenso de que havia a necessidade de harmonização do direito comunitário nos seguintes pontos: a) estabelecimento de um regime especial de responsabilidade civil para o produtor por danos causados por defeitos de seus produtos; b) que tal regime deveria ser uniforme para todos os membros da Comunidade Européia; e c) que deveriam ser evitados os exageros do sistema norte-americano, no tocante a indenizações elevadas, com o intuito de preservar as empresas[31].
No plano comunitário, o principal diploma legislativo em vigor sobre o tema é a Diretiva n° 1985/374/CEE (relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos), com redação alterada pela Diretiva n° 1999/34/CE. Nos termos da diretiva, a responsabilização direta do produtor está prevista no artigo 1°; a responsabilidade objetiva, no artigo 4°, na medida em que o consumidor não tem necessidade de provar a culpa do produtor; e as excludentes de tal responsabilidade, o artigo 7°[32].
As Diretivas n° 1985/374/CEE e 1999/34/CE foram transpostas para o direito interno português, respectivamente, por força dos Decretos-Lei nº 383/1989 e 131/2001. O primeiro dos dispositivos prevê a responsabilidade direta e subjetiva do produtor no artigo 1° e a exclusão da responsabilidade no artigo 5°[33].
Com especial relevância, também, está a Diretiva n° 1999/44/CE (relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas), transposta para o direito interno português por força do Decreto-Lei nº 67/2003, com redação alterada pelo Decreto-Lei nº 84/2008. Tal diretiva encontra-se com proposta de revogação pela Proposta de Diretiva n° 2008/0196 (COD) (relativa aos direitos dos consumidores).
Merece nota, no tocante ao conceito de consumidor, a Diretiva n° 2008/48/CEE (relativa a contratos de crédito aos consumidores), transposta para o direito interno português por força do Decreto-Lei nº 133/2009.
No plano interno, em Portugal, a Lei n.º 24/1996 (Lei de Defesa do Consumidor), atualizada até as alterações promovidas pelo Decreto-Lei nº 67/2003, também tem especial relevância.
No Brasil o único diploma legislativo que cuida do tema é o Código de Defesa do Consumidor, introduzido no ordenamento por força da Lei n° 8.078/1990. O código estabelece diferença entre o fato (artigos 12 e 13) e o vício (artigos 18 e 19) do produto[34].
4 RELAÇÃO DE CONSUMO
O regime previsto na legislação do consumidor é muito mais favorável ao comprador que o regime geral civil, com a superação dos princípios da culpabilidade e da relatividade dos contratos. Faz-se necessário, portanto, estabelecer os limites da relação de consumo.
4.1 Definições
Consumo pode ser conceituado como a utilização de um bem ocasionando sua retirada da cadeia produtiva. Pode ser produtivo, quando utilizado por uma empresa para criação de outros bens ou serviços, ou privado, nas demais hipóteses[35].
Relação de consumo é uma “relação jurídico-obrigacional que liga um consumidor a um fornecedor, tendo como objeto o fornecimento de um produto ou da prestação de um serviço”[36].
4.2 Sujeitos da relação
Para entender o que é relação de consumo, é fundamental conceituar seus integrantes.
4.2.1 Produtor
Um conceito amplo de produtor foi adotado pela Diretiva n° 1985/374/CEE[37]. Diferente conceito foi dado pela Diretiva n° 1999/44/CE, que conceituou genericamente o vendedor e o produtor[38].
Calvão da Silva aponta as três modalidades de produtor previstas nas normas: real, aparente e presumido[39].
Produtor real é definido como aquele que fabrica um produto acabado, matéria prima ou parte componente.
Produtor aparente é qualquer pessoa que se apresente como produtor, mediante a aposição, sobre o produto, de seu nome, marca ou sinal distintivo[40].
Produtor presumido é: a) o importador de produto para a Comunidade Econômica Européia, destinado a venda, locação – inclusive financeira – ou qualquer outra forma de distribuição, no âmbito da sua atividade comercial; ou b) o fornecedor de produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado que, notificado por escrito, deixar de comunicar ao lesado a identidade do produtor, do importador ou de algum fornecedor precedente.
No Brasil não existe o conceito legal de produtor. O Código de Defesa do Consumidor define, em seu artigo 3°, o conceito de fornecedor, que é “é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
Merece nota a inclusão dos órgãos de administração pública como potenciais fornecedores, tanto pelo código brasileiro, como pela Lei de Defesa do Consumidor portuguesa[41].
4.2.2 Consumidor
A grande dificuldade da legislação, doutrina e jurisprudência para a caracterização da relação de consumo está na definição do conceito de consumidor. Dois são os questionamentos que merecem discussão: a) se a pessoa singular – pessoa física, para o direito brasileiro – pode ser considerada consumidora, ao adquirir produto para sua atividade profissional; e b) se a pessoa coletiva – no Brasil, pessoa jurídica – pode se enquadrar no conceito de consumidor.
No plano comunitário, a legislação limita o conceito a apenas as pessoas singulares, desde que não adquiram o produto ou serviço para uso em suas atividades profissionais, na redação das Diretivas n° 1999/44/CE e 2008/48/CEE[42]. A Proposta de Diretiva n° 2008/0196 (COD) mantém a mesma interpretação[43].
A Diretiva n° 1985/374/CEE, não faz qualquer referência ao conceito de consumidor, apesar de, na exposição de motivos, deixar claro que o texto legal dirige-se a esta classe de compradores. O mesmo ocorre com a redação do Decreto-Lei nº 383/89, que o transpôs para a ordem interna portuguesa.
No plano interno, alguns países parecem seguir o conceito comunitário, como ocorre com a Itália[44]. A Espanha tinha um conceito legal mais amplo de consumidor, como sendo a pessoa física ou jurídica destinatária final do produto[45], muito parecido com o brasileiro; em 2007, contudo, adequou-se parcialmente ao conceito comunitário, estabelecendo como consumidora a pessoa física ou jurídica que atuem fora de sua atividade empresarial ou profissional[46].
O legislador português teve, num primeiro momento, uma interpretação mais alargada do conceito de consumidor, admitindo que a pessoa coletiva possa ser considerada como consumidora. Com efeito, a Lei de Defesa do Consumidor, de 1996 (atualizada até 2003, por força do Decreto-Lei n° 67), dispõe que “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional” é considerado como consumidor[47]. Posteriormente, manteve a interpretação, ao transpor para o ordenamento interno a Diretiva n° 1999/44/CE, através do decreto-lei supracitado, que se reportou expressamente à Lei de Defesa do Consumidor[48]. Em 2009, contudo, ao transpor para o plano interno a Diretiva 2008/48/CEE, excluiu as pessoas coletivas do âmbito da aplicação da lei[49], ao praticamente reproduzir o texto da diretiva[50].
No Brasil, a definição está expressa no Código de Defesa do Consumidor que, em seu artigo 2º, estabelece que “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”[51].
Há grande controvérsia na doutrina sobre o conceito de consumidor, em virtude de ser um conceito econômico, que é mais alargado que o jurídico, porque considera como consumo, inclusive, as compras efetuadas pelas empresas para manufatura de seus produtos[52].
Fernando Baptista de Oliveira cita Sandrina Laurentino, que classifica o consumidor em duas categorias, adotando o conceito econômico. Assim, o consumidor em sentido lato é aquele que adquire um produto, com o objetivo de consumir, incluído o consumo profissional, só excepcionando-se apenas a compra com intuito de revenda. A segunda categoria, do consumidor em sentido estrito, exclui as relações profissionais do conceito[53]. Tal conceito não responde, contudo, as duas indagações acima expostas.
Da França, temos a seguinte formulação de Thierry Bourgoignie:
1º) O consumidor é uma pessoa física ou moral que adquire, possui ou utiliza um bem ou serviço colocado no centro do sistema econômico por um profissional sem perseguir ela própria a fabricação, a transformação, a distribuição ou a prestação no âmbito de um comércio ou de uma profissão.
2º) Uma pessoa exercendo uma atividade em caráter profissional, comercial, financeiro ou industrial não pode ser considerada como um consumidor, salvo se ficar estabelecido por ela que ela está agindo fora de sua especialidade e que ela realiza uma cifra global de negócios inferior a (...) milhões de francos por ano[54].
Ao afastar, desde logo, a pessoa jurídica como consumidora e condicionar a pessoa física, profissional, a agir fora de sua especialidade, Bourgoignie se utiliza do critério econômico para definir sua formulação, ou seja, baseia-se no princípio da hipossuficiência do consumidor. Tal critério merece críticas, na medida em que a hipossuficiência pode ser critério para determinação de inversão do ônus probatório, criação de associações de consumidores ou, ainda, de gratuidade de acesso à justiça, nunca para a definição de consumidor.
A doutrina brasileira encontra-se igualmente vacilante, podendo ser dividida em duas correntes doutrinárias: a minimalista (ou finalista) e a maximalista. Segundo os finalistas, o consumidor seria apenas a pessoa física que adquire um produto ou serviço para uso próprio ou de sua família, ou seja, para uso não-profissional. Estariam excluídos, portanto, a pessoa física profissional e a pessoa jurídica. José Geraldo Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, filia-se a esta corrente, ao afirmar que ‘’’o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo, adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial”[55].
Filomeno cita, ainda, o conceito de Cláudia Lima Marques: “Para os finalistas, pioneiros do consumerismo, a definição de consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial, agora concedida aos consumidores. Esta tutela só existe porque o consumidor é a parte vulnerável nas relações contratuais no mercado, como afirma o próprio CDC no art. 4º, inciso I. Logo, convém delimitar claramente quem merece esta tutela e quem não a necessita, quem é o consumidor e quem não é. Propõem, então, que se interprete a expressão ‘destinatário final’ do art. 2º de maneira restrita, como requerem os princípios básicos do CDC, expostos no art. 4º e 6º”[56].
A corrente finalista merece críticas, por confundir os princípios da hipossuficiência (“caráter econômico”, nas palavras de Filomeno) e da vulnerabilidade (do artigo 4°, inciso I, do CDC), este, sim, fundamento da relação de consumo, como já explicado.
A teoria maximalista entende que as normas do Código de Defesa do Consumidor regulam o mercado de consumo, incluindo, portanto, os consumidores profissionais. O critério, para esta corrente, é o econômico, ou seja, consumidor é aquele que retira o produto do mercado[57].
A corrente maximalista parece ser a mais correta, uma vez que adota o conceito de “destinatário final”, previsto no CDC. Contudo, deve ser excluído do conceito o consumidor intermédio ou intermediário, aquele que utiliza o bem para utilização em seu processo produtivo. No mesmo sentido está Cláudia Lima Marques, para quem “destinatário final é apenas o consumidor final, aquele que retira o bem do mercado ao adquirir ou utilizar, e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir”[58].
No Brasil, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça tem seguido a doutrina maximalista, considerando as pessoas jurídicas como consumidoras, desde que se enquadrem como destinatárias finais do produto[59]. Assim, as pessoas jurídicas, consumidoras intermediárias, como no caso de fornecimento de energia elétrica, não podem ser qualificadas como consumidoras[60].
A jurisprudência portuguesa por vezes admite a pessoa coletiva como consumidora[61]. Em outras situações, a exclue, ora por força do revogado Decreto-Lei n° 359/1991 (contratos de crédito ao consumo), que expressamente reservou a aplicação do diploma às pessoas singulares (artigo 2°, n° 1, b))[62], ora adotando um conceito restrito de consumidor, ainda que tal pessoa coletiva seja um município[63].
O mesmo ocorre com a pessoa singular profissional: em geral não é tida como consumidora[64]. A melhor solução, parece, foi dada por Fernando Baptista, em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto[65]. Analisando com profundidade o tema, justificou “a extensão da noção de consumidor ao profissional” pela equidade, a fundamentando, entre outros doutrinadores, nas palavras de Pegado Liz: “… a finalidade «não profissional» permite incluir (…) no conceito de consumidor os profissionais que adquiram bens ou serviços a outros profissionais, mas o façam fora da sua área de competência ou capacidade especial enquanto profissionais. Por exemplo, um comerciante que adquira bens para seu consumo privado ou familiar ou até mesmo uma empresa que contrate serviços de outra empresa ou adquira bens, que não tenham a ver com a sua actividade profissional, não poderiam, assim, ser excluídos da noção de consumidor, porque o uso de tais bens ou serviços, conquanto não seja privado, não é um uso profissional”.
Importante estabelecer, neste ponto, a destinação do produto. Nilton Luiz de Freitas Baziloni, referindo-se ao CDC brasileiro, entende que: “Destinatário final deve ser o destinatário fático, aquele que retira o produto do mercado, usa, consome ou o utiliza para sua necessidade pessoal ou de terceiros. E necessidade pessoal pode ser necessidade profissional. Não se pode incluir a atividade comercial, mas também não se pode confundi-la com atividade profissional”[66]. Baziloni dá o seguinte exemplo: um motorista de táxi, que adquire um veículo junto a uma concessionária, é um consumidor, na medida em que o veículo adquirido “não será colocado na cadeia produtiva [...].O serviço de transporte é que deve ser considerado como comercial, e não o carro, daí por que o motorista em relação ao fornecedor vendedor é consumidor.”
Essa interpretação mais alargada do conceito de consumidor parece ser a mais correta, com o que concorda Oliveira Ascensão[67]. Como já abordado, o fato que autorizou a responsabilização direta do produtor, foi a produção em série e a sua especialização. A fabricação de produtos cada vez mais complexos impede que o comprador – mesmo sendo uma sociedade empresária –, desde que atuando fora de sua atividade profissional, fique numa posição de vulnerabilidade perante o vendedor, por falta de conhecimento técnico do produto por ele comprado.
Da mesma forma, um advogado que compra um livro, que venha a apresentar defeito, deve ser considerado como consumidor, independentemente de a obra comprada ser jurídica ou um romance. Em qualquer hipótese, o advogado estará em posição de vulnerabilidade perante a editora do livro, uma vez que desconhece sua produção.