RESUMO: O escopo do presente trabalho é o de refletir sobre as implicações registrais advindas da alteração do prenome e gênero do transexual. Vencido os ensinamentos e as problemáticas que envolvem os transexuais na sociedade moderna, diferenciando-os das demais formas de manifestação sexual, bem como sobre a possível alteração de sexo sem autorização judicial, passamos a enfrentar o tema do presente trabalho, baseando-se na jurisprudência e doutrina atuais, esforçando-se em buscar a resposta para a seguinte indagação: qual a espécie de alteração do prenome e gênero do transexual deve ser feita? Averbação ou retificação? A partir desse questionamento discorremos acerca das duas espécies de alteração possíveis nos assentos registrais, demonstrando em cada hipótese os prós e os contras, não apenas na visão dos indivíduos que sofrem disforia de gênero, mas também na ótica dos terceiros de boa-fé. O tema se torna intrigante ao passo que verificamos que em torno dessa celeuma há princípios e garantias individuais e coletivos envolvidos, levando o jurisconsulto a um esforço incomum de conciliar preceitos e normas fundantes do ordenamento jurídico pátrio.
PALAVRAS-CHAVES: Transexualismo; Registros Públicos; Averbação; Retificação.
INTRODUÇÃO.
A sociedade brasileira contemporânea passou por inúmeras transformações ao longo das últimas décadas, aceitando e reprimindo comportamentos humanos diversos, seja pelo aspecto cultural, religioso ou moral. O direito, frente a esta realidade, procura se amoldar às mudanças de comportamentos dos indivíduos, regrando-as de tal modo a poder manter os ideais no convívio coletivo, quais sejam, a paz social e garantia dos direitos fundamentais a todos cidadãos.
Diante dessas transformações, ao refletirmos sobre as relações do sujeito com a sexualidade na sociedade moderna, um tema se evidencia: o transexualismo.
No Brasil, o transexualismo é considerado uma doença, tendo vários tipos de tratamentos, dentre eles, a cirurgia de redesignação sexual, mais conhecida por transgenitalização.
A transgenitalização é autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, através de resolução própria, quando esgotados e infrutíferos todos os meios terapêuticos possíveis para harmonizar o sexo físico e psicológico do indivíduo.
Nesse sentido, em razão do avanço tecnológico na área médico-cirúrgica, os transexuais encontraram na cirurgia de mudança de sexo uma forma de diminuírem seus sofrimentos, alcançando a tão desejada alteração de sexo.
Superadas estas questões, os transexuais passam a enfrentar outro obstáculo: a alteração do prenome e gênero nos seus registros civis.
Tal barreira é avistada por não haver legislação específica sobre o assunto. Destaca-se que a lei dos registros públicos prescreve a imutabilidade do prenome, salvo as exceções nela mesma previstas.
O Judiciário ao ser provocado por esses cidadãos que desejam ver reconhecida sua nova identidade, seu novo eu, tem oferecido respostas diversas, com maior ou menor abertura para a alteração e sua publicidade.
Diante dessa problemática, o presente trabalho parte de uma realidade atual que vem se assentando e solidificando cada vez mais nos tribunais de todo país, que é a possibilidade de alteração de prenome e gênero do transexual, mesmo diante da ausência de normas positivas acerca do assunto.
Além de caracterizar o transexualismo, diferenciando-o das demais formas de manifestação sexual, adentramos em terreno árduo que é a averbação ou retificação do prenome e gênero no assento de nascimento do transexual.
Atualmente, tendo em vista a ausência de legislação específica, os recentes julgados têm divergido no que tange a forma de alteração do prenome e gênero do transexual. Afinal, deve haver a averbação ou retificação do prenome e gênero do transexual?
A discussão é de extrema importância, pois os julgados se baseiam em princípios constitucionais para defender esta ou aquela espécie de alteração de prenome e gênero, ou seja, averbação ou retificação, implicando, por conseguinte, em várias situações que refletem não só no âmbito do indivíduo que passa por esta tormenta, mas também da sociedade.
1. TRANSEXUALISMO. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS.
1.1. Transexualismo.
Ao pensarmos nas relações dos sujeitos com a sexualidade na sociedade contemporânea, é inegável dizer que os assuntos envoltos ao transexual ganharam grande repercussão, mormente pelos avanços tecnológicos na área da medicina e suas consequentes implicações jurídicas.
A dificuldade em lidar com o caso dos transexuais advém de vários aspectos, sendo que os mais conhecidos são os fatores culturais, morais e religiosos, todos carregados de grande incompreensão e até mesmo intolerância à realidade que esses indivíduos suportam.
Há que se pontuar que a ausência de diplomas legais que disciplinam a situação dos transexuais dificulta a garantia de seus direitos como cidadãos, trazendo dúvidas em vários sentidos, cabendo à jurisprudência suprimir as lacunas do ordenamento jurídico.
O termo “transexualismo” surgiu na década de 50 e foi formulado pelo médico de origem alemã Harry Benjamin[1], após experiências cirúrgicas de mudança de sexo em pacientes que se diziam pertencer ao sexo oposto. A palavra “transexualismo” passou a existir quando o mencionado médico-cirurgião referiu-se ao caso de divergência psíquico-mental do transexual.
O sufixo ismo é aplicado na medicina para nomear uma doença. O transexualismo consta no CID 10 – Classificação Internacional de Doenças - como uma anomalia (F. 64.0), um transtorno de identidade de gênero.
Trata-se de um transtorno de ordem psicológica e médica, fazendo com que um indivíduo que nasce com o sexo biológico de um homem, por exemplo, se identifique com indivíduos que pertencem ao sexo oposto. Isto é, tem desejo de pertencer ao sexo contrário ao de seu nascimento.
O desejo de viver enquanto pessoa do sexo oposto é latente, trazendo-lhe sentimentos de ordem psíquica, levando muitos a se isolarem diante do profundo sofrimento, inconformismo, depressão e repulsa ao próprio corpo.
O transexual tem aversão à sua genitália biológica, tendo em vista o indesejado sexo a que pertence, almejando pertencer ao sexo oposto com seus caracteres e traços. Há uma divergência entre o sexo psicológico em que o transexual acredita pertencer com o sexo biológico, o qual adquiriu com o nascimento.
Nas palavras de Tereza Rodrigues Vieira, pontua-se que:
“a transexualidade é caracterizada por um forte conflito entre o corpo e a identidade de gênero e compreende um arraigado desejo de adequar o corpo hormonal e/ou cirurgicamente àquele do gênero almejado”.[2]
Ana Paula Barion identifica a transexualidade “como uma incongruência entre o sexo atribuído na certidão de nascimento e a identidade psíquica de gênero do indivíduo”.[3]
De modo mais completo e sem perder a didática, Aracy Augusta Leme Klabin explica que:
“O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao ‘verdadeiro’ sexo, isto é, ao seu sexo psicológico”.[4]
Já o Conselho Federal de Medicina, atualmente, através de sua Resolução 1.955, de 12.08.2010, define “transexualismo” como:
“1. Desconforto com o sexo anatômico natural; 2. Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3. Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4. Ausência de outros transtornos mentais”.
Diante destas definições, podemos dizer que o transexual masculino, por exemplo, se considera mulher, entalhado com o aparelho sexual inadequado ao que psicologicamente desejaria, o qual deseja ardentemente retirá-lo no intuito de minimizar as discrepâncias entre o sexo psicológico e biológico.
No que tange à possibilidade de alteração de sexo, não obstante a ausência de leis, o Conselho Federal de Medicina determina que os caracteres do transexualismo não sejam confundidos com qualquer outra anomalia e nem sejam eventuais.
Sendo o transexualismo permanente e respeitadas as regras contidas na Resolução, o referido Conselho reconhece como acertada, válida e necessária a cirurgia de redesignação de sexo. Tal assunto será analisado em momento oportuno (tópico 1.3 deste capítulo).
Antes, porém, é imperioso que se faça as distinções entre as diversas formas de manifestação da sexualidade, deixando em evidência a transexualidade. É o que fazemos no tópico seguinte.
1.2. Transexualismo e as demais formas de manifestação da sexualidade.
Não é raro haver confusões por parte da sociedade em relação às diversas formas de manifestação da sexualidade. Ao simples olhar, tudo parece igual e indistinto, levando a crer que as vestes e o estilo de vida são as únicas coisas que os diferenciam.
Por essa razão, é muito comum o transexualismo ser identificado ou igualado ao homossexualismo, bissexualismo, travestismo, fetichismo e hermafrodismo.
Diante dessas confusões e incompreensões, imprescindível é a diferenciação e esclarecimento acerca de cada um desses modos de manifestação da sexualidade.
1.2.1. Homossexualismo.
Em apertada síntese, o homossexual é aquele indivíduo que sente atração física por outro do mesmo sexo. Para ele, homem, ou para ela, mulher, não há nenhuma repulsa ao seu sexo biológico.
No caso do homossexual masculino, por exemplo, o pênis é o órgão sexual com o qual se busca prazer ao relacionar-se com outra pessoa do mesmo sexo. Não há constrangimento em tê-lo. Isto sequer incomoda o homossexual.
Diferentemente acontece com o transexual que, como vimos, deseja relacionar-se com o sexo oposto do sexo psicológico. O transexual masculino sente-se mulher, por isso busca sua satisfação com homem, enxergando esta relação na ótica heterossexual.
Tereza Rodrigues Vieira nos explica com simplicidade e clareza que:
“o homossexual masculino tem no homem o seu objeto de desejo, ou seja, sente-se homem e pratica a relação com outro homem. Com a mulher homossexual ocorre o inverso. O transexual masculino, por sua vez, considera-se mulher e tem como parceiro um homem, vendo, portanto essa relação no plano heterossexual”.[5]
Patrícia Corrêa Sanches, em grande estilo, acrescenta:
“Na transexualidade o indivíduo possui uma identidade de gênero diferente daquela biológica com a qual fora registrado ao nascer, enquanto o homossexual, que não possui essa inversão, tão somente sente-se atraído sexualmente por pessoas do mesmo sexo. Portanto, diferentemente do que se pensa, o transexual não é um homossexual, uma vez que sua preferência sexual é pelo sexo oposto àquele de sua identidade de gênero”.[6]
Exatamente pelo fato de o transexual se identificar com o sexo oposto, desejando uma relação heterossexual, é tão importante a modificação de sua genitália, sem a qual não haveria possibilidade e conforto para a conjunção carnal.
Portanto, podemos concluir que o homossexual não deseja adequar seu sexo, pois se sente feliz com ele e o utiliza para a busca de seus prazeres, ao reverso do transexual, que possui o intenso desejo de amoldar seu sexo biológico ao seu sexo psicológico, para, só assim, buscar prazer.
1.2.2. Travesti.
O travestismo, por certo, é a forma de manifestação da sexualidade que mais se confunde com o transexualismo.
Tal afirmação consubstancia-se pela conduta do transexual, pois ao se identificar com o sexo oposto, traja-se conforme lhe é típico. Não há simples desejo do transexual masculino, por exemplo, em se vestir de mulher, pois ele se enxerga, se sente como mulher. É uma conduta natural e espontânea.
O transexual masculino, ao se vestir como mulher, não busca atender desejos e nem buscar alguma satisfação nesse comportamento. Apenas afigura-se, pura e simplesmente, ao sexo que acredita pertencer.
O travesti, diferentemente, tomado por impulsos eróticos, sente prazer em utilizar roupas características do sexo oposto sem, contudo, desejar pertencer a este sexo. O travesti masculino, por exemplo, não tem desejo em alterar seu sexo, pois é feliz e busca prazer com a sua genitália.
A conduta de se vestir como os indivíduos do sexo oposto é praticada unicamente para obter satisfação sexual.
Para destacar esta distinção, importante se valer das lições de Tereza Rodrigues Vieira que, ao se manifestar sobre o assunto, leciona que o travesti utiliza roupas do outro sexo utilizando-as para a obtenção de satisfação sexual. Já no caso do transexual afirma que este se veste com roupas que a sociedade atribui ao sexo oposto por força natural de sua condição psicológica.[7]
1.2.3. Bissexual.
O bissexual é aquele indivíduo que sente atração por pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto. Seu objeto de desejo são homens e mulheres.
Bissexual é, portanto, o termo aplicado aos indivíduos que se sentem atraídos por ambos os sexos, servindo, assim, de um quase meio-termo entre o hetero e o homossexual.
O Dr. Isaac Mielnik, em seu dicionário de termos psiquiátricos, refere-se ao bissexual como “aquele indivíduo que possui como objeto erótico homens e mulheres; seu comportamento é voltado para ambos os sexos”.[8]
Difere do transexual, pois este só se satisfaz com o sexo oposto ao que psicologicamente se identifica. Não há dupla sexualidade. Se homem, deseja outro homem por se identificar como mulher. Se mulher, deseja outra mulher por se identificar como homem.
Em nenhum momento podemos perder de vista que a relação do transexual sempre se dá no plano da heterosexualidade e nunca da homossexualidade.
1.2.4. Hermafroditismo.
Hermafrodita é a pessoa que possui órgãos sexuais dos dois sexos. É um fenômeno raro na natureza.
Difere totalmente do transexual, sendo que este em nenhum momento sofre essa anomalia física, tendo seu sexo biológico bem definido, apenas dissonante de seu sexo psicológico, ou seja, àquele a qual deseja pertencer.
Nesse panorama, Tereza Rodrigues Vieira diz que “o transexual é uma espécie de hermafrodita psíquico, uma vez que nasce com o sexo biológico masculino e com o sexo psicológico feminino (male to female)”.[9]
Feita as distinções entre as diversas formas de manifestação da sexualidade humana, passamos a dissertar sobre a intervenção cirúrgica para alteração de sexo.
1.3. Cirurgia de transgenitalização ou redesignação sexual.
Não são poucos os métodos de reversão ou tratamento do transtorno de identidade de gênero no sentido de curar ou amenizar o sofrimento dos transexuais.
Por tratar-se de um distúrbio psíquico de identidade sexual, o recomendado seria “alterar a mente do transexual” através de psicoterapia ou psicanálise, fazendo com que este indivíduo viesse a se identificar com o seu sexo biológico, passando a ter uma vida saudável, sem todas as complicações inerentes ao seu, até então, desvio de identidade sexual.
No entanto, tal técnica tem se mostrado inútil, pois quando diante de um verdadeiro transexual, verifica-se a incurabilidade do transtorno.
Várias ciências já foram utilizadas na tentativa de tratar os transexuais, restando todas malsucedidas e inoperantes. São elas: sismoterapia[10], psicanálise intensiva[11], lobotomia[12], eletrochoque[13], etc.
Interessante frisar que referidos tratamentos são úteis para identificar os nãos transexuais que, por vezes, se acham nessa condição, pois como analisamos alhures, há várias outras formas de manifestação sexual, levando indivíduos à confusão, buscando ajuda profissional para encontrar-se quanto à sua real situação sexual.
Dessa forma, como dito, em que pesem os relevantes e avançados estudos no intuito de tratar o transexual, estes são incuráveis e inoperantes frente a um verdadeiro paciente que sofre de distúrbio de identidade de gênero. Diante dessa realidade fática, muitos indivíduos não encontram alternativas senão a cirurgia de transgenitalização, popularmente conhecida como cirurgia de adequação de sexo ou, simplesmente, mudança de sexo.
A cirurgia de redesignação sexual ou de transgenitalização consiste nos procedimentos cirúrgicos denominados neocolpovulvoplastia e neofaloplastia. Ela permite a mudança do aparelho sexual importando apenas em alterações estéticas e não genéticas.
A neocolpovulvoplastia é a mudança da genitália masculina para feminina. Consiste, basicamente, em duas etapas: na primeira, o pênis é amputado e são retirados os testículos do paciente e, em seguida, faz-se uma cavidade vaginal; a segunda etapa é marcada pela constituição plástica: com a pele do saco escrotal são formados os lábios vaginais.
Referido procedimento cirúrgico é autorizado pelo Conselho Federal de Medicina, podendo ser realizado em qualquer hospital, público ou privado, mesmo que não haja atividade de pesquisa.
A operação inversa, ou seja, a transformação do aparelho feminino em masculino denomina-se neofaloplastia. Esta intervenção é de altíssima periculosidade, notadamente por não oferecer ao paciente a funcionalidade do novo aparelho sexual, garantindo apenas a condição estética. Por essa razão, é limitada aos hospitais universitários ou hospitais públicos adequados cadastrados para a pesquisa.
O professor Francisco Oliosi da Silveira é técnico ao expor sobre ambas intervenções cirúrgicas. Primeiramente, para a realização da neocolpovulvoplastia, a mais fácil delas, segue-se o seguinte procedimento:
“O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixando a glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessariamente será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris. Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma, ensejando um resgate do orgasmo mais facilmente.
A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer necrose ou infecção em pós-operatório imediato, sempre teremos tecido disponível para novo procedimento. Na eventualidade da uretra profusa, a mesma poderá, em um segundo tempo, ser novamente encurtada.
Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para a retirada dos testículos e funículo espermático. Todo o escroto, excetuando-se a camada vaginal, será usado para a construção da vagina.
No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma incisão em cruz ou em "v", abortando-se o espaço imediatamente cranial ao reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado, e através de dilatadores de Hegar, é criado um pertuito que será a nova vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério. Nestas condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo espaço, com sutura tão cranial quanto possível.
Um molde metálico ou siliconado é revestido com gaze e introduzido no orifício,de tal sorte a manter hemostasia e prevenir eventual colamento da cavidade. No pós-operatório, o paciente, sistematicamente, dilatará a neovagina com artefato siliconado, até sua estabilização”.[14]
Sobre a cirurgia de neofaloplastia, o mesmo autor explica:
"O paciente é levado a uma cirurgia de laparotomia, com anestesia geral e bloqueio pelidural, para a retirada do ovário, útero e anexos.
Após a sua total recuperação, em um período de tempo não menor a 30 dias, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico. Consiste na retirada da vagina, usando-se a parede anterior para a reconstrução da uretra. A mucosa vaginal tubularizada se adapta excepcionalmente bem, como uretra. A parede posterior da vagina é exteriorizada para fazer parte do escroto. Na hipótese de uma exagerada atrofia da mucosa vaginal o escroto é reconstituído com retalho do músculo Gracilis, tirado da face medial da coxa. O pênis é construído com enxerto de CHANG. O tecido é retirado do antebraço, juntamente com uma artéria radial, duplamente tubularizada, respectivamente para a uretra distal e para acolher futuramente a prótese peniana. Este procedimento, especificamente, requer técnica microcirúrgica. Para a construção do falo também pode ser usado retalho do abdome. Esta técnica não requer microcirurgia, entretanto o aspecto cosmético perde em qualidade para o enxerto de CHANG. O uso do retalho do músculo Gracilis, rotado da face interna da coxa, é reservado para a situação onde o paciente não dispõe de tecido adequado do abdome ou não deseja ficar com cicatriz ampla no antebraço.
O terceiro tempo cirúrgico somente é levado a efeito quando há uma cicatrização perfeita nos tempos anteriores. Demanda aproximada de três meses. Então, através de uma pequena incisão na base do neopênis, é introduzido um tubo siliconado, cujo eixo é composto de uma liga de prata maleável. Esta estrutura denominada prótese é fixada no osso do púbis, através de um procedimento estético denominado Dracon. A fixação estabiliza o artefato evitando a extrução futura. A prótese peniana possui rigidez suficiente para o coito e pode, confortavelmente, ser dobrada para baixo, quando não há interesse em atividade sexual.
No mesmo tempo cirúrgico, são introduzidos um novo escroto, duas estruturas ovóides, com 20 centímetros cúbicos, com silicone gel no seu interior, simulando testículos.
O paciente, nestas condições, está autorizado à atividade sexual, somente 90 dias após o implante das próteses peniana e testicular. Após aproximadamente um ano, a sensibilidade se estabelece em pelo menos 2/3 do falo”.[15]
Em linhas gerais, a cirurgia de transgenitalização é a adequação do sexo biológico ao sexo psicológico do transexual, ou seja, a alteração de seu órgão genital para a genitália do sexo oposto.
Muitos questionam este tipo de intervenção médica, tendo em vista a sua agressividade e irreparabilidade, sendo considerada lesão gravíssima à luz do Direito Penal, havendo subsunção ao que dispõe o art. 129, §2°, inciso III de nosso Código Penal[16], sendo, em tese, punida com pena de reclusão de dois a oito anos.
Nesse sentido, em rápidas palavras, vale lembrar o caso do primeiro médico a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil, o Doutor Roberto Farina[17]. Após a intervenção cirúrgica, Farina sofreu processo judicial[18], sob a alegação de ter cometido lesão corporal na paciente transexual submetida à cirurgia. Ao final, acabou sendo absolvido[19], pois a justiça concluiu que a intervenção cirúrgica fora realizada como único remédio para aplacar o sofrimento da transexual operada, não havendo, portanto, dolo[20].
Tais considerações, em que pesem despertem calorosos debates jurídicos, já se encontram ultrapassadas. Isto porque, a intervenção cirúrgica nos casos de cirurgia de redesignação de sexo realizada pelo médico é considerada, pela grande maioria da doutrina e jurisprudência atual, uma excludente de ilicitude, nos termos do art. 23, inciso III, do supracitado código[21]. Trata-se de exercício regular de direito[22].
A grande maioria pode se perguntar: A lei prescreve quais as cirurgias fazem parte do exercício regular de direito e quais o extrapolam? Na verdade, a lei não informa qual é esta ou aquela cirurgia amparada pela mencionada excludente de ilicitude. Cabe ao órgão responsável determinar quais são as cirurgias e procedimentos que podem ou não ser adotados, seguindo os protocolos, sob pena de cometer ilícitos na esfera penal, civil e administrativa. Este órgão é o Conselho Federal de Medicina.
Em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução 1.482/1997, a qual autorizou, a título experimental, a realização das já abordadas cirurgias de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualidade. Vejamos:
“[O CFM] resolve:
1. Autorizar, a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo;
2. A definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: - desconforto com o sexo anatômico natural;
- desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
- permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
- ausência de outros transtornos mentais.
3. A seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico-psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios abaixo definidos, após dois anos de acompanhamento conjunto:
- diagnóstico médico de transexualismo;
- maior de 21 anos;
- ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia;
4. As cirurgias só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa.
5. Consentimento livre e esclarecido (...)” (grifei)
Interessante esclarecer que cirurgia em caráter experimental é aquela que leva em conta elementos éticos e elementos técnicos. Do ponto de vista ético é necessário estar satisfeito de que o bem do paciente está sendo posto em primeiro lugar. Do ponto de vista técnico é necessário que o procedimento seja capaz de gerar o resultado desejado e que ele não cause mal maior do que o problema que pretende resolver, ou seja, que no balanço das probabilidades ele será benéfico ao paciente.
Passados cinco anos, o Conselho Federal de Medicina, com base nos resultados das cirurgias experimentais, aprovou a Resolução 1.652/2002, revogando a Resolução 1.482/1997, estabelecendo que a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia já poderia ser realizada em caráter não experimental e sob as seguintes condições:
“[O CFM] revolve:
Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1.Desconforto com o sexo anatômico natural;
2.Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3.Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4.Ausência de outros transtornos mentais.
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1.Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2.Maior de 21 (vinte e um) anos;
3.Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º Que as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa.
Parágrafo 1º - O Corpo Clínico destes hospitais, registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica.
Parágrafo 2º - As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive contando com chefe, obedecendo os critérios regimentais para a ocupação do cargo.
Parágrafo 3º - A qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para a execução dos tratamentos.
Parágrafo 4º - Os hospitais deverão ter Comissão Ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 7º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido (...)”. (grifei)
Recentemente, foi editada a atual Resolução 1.955/2010, revogando a Resolução 1.652/2002, autorizando o tratamento e a intervenção cirúrgica não apenas nos estabelecimentos outrora determinados, mas também em estabelecimentos que observem os requisitos e condições impostas pela resolução. Vejamos:
“Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia.
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios a seguir definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º O tratamento do transgenitalismo deve ser realizado apenas em estabelecimentos que contemplem integralmente os pré-requisitos estabelecidos nesta resolução, bem como a equipe multidisciplinar estabelecida no artigo 4º.
§ 1º O corpo clínico destes hospitais, devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica.
§ 2º As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive contando com chefe, obedecendo aos critérios regimentais para a ocupação do cargo.
§ 3º Em qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para a execução dos tratamentos.
§ 4º Os hospitais deverão ter comissão ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 6º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido. (...)” (grifei)
Conforme o exposto, podemos concluir que a cirurgia de transgenitalização não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal Brasileiro, haja vista que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico.
Como sua função é terapêutica, minorando a dor do transexual, bem como objetivando a melhora de sua saúde, não há razão para proibi-la. Em reforço a esta afirmação, interessante é o teor do art. 13[23] do Código Civil que se harmoniza com a situação do transexual.
Podemos confirmar também que é hipótese excepcional de mediação médica, devendo seguir requisitos rigorosos para a efetiva intervenção cirúrgica.
Atualmente, existem muitos pedidos de autorização junto ao Poder Judiciário para a realização da cirurgia de redesignação sexual, com pedidos cumulados de alteração de prenome e gênero, do qual nos ocuparemos mais adiante. Diante destes pedidos, podemos nos indagar: Atualmente, é necessária a autorização judicial para se submeter a transgenitalização?
Como analisamos, o Conselho Federal de Medicina, através de suas Resoluções, autoriza a mediação médica para a alteração de sexo, desde que o indivíduo passe pelos rigorosos requisitos que serão atestados através de laudo médico elaborado por uma equipe de profissionais.
Portanto, concluímos que é prescindível o pedido de autorização judicial para a realização da cirurgia de transgenitalização, devendo o paciente que sofre de disforia de gênero se submeter às condições impostas pelo Conselho Federal de Medicina e, uma vez provado o transtorno por médicos especialistas, poderá ser operado.