Resumo: Este artigo se propõe a realizar uma breve incursão nas principais teorias acerca da Moral, relacionando-as com o Direito. Far-se-á uma análise da condenação sofrida pelo piloto Whip Whitaker, no filme “O Voo”, a partir da relação entre Direito e Moral.
Palavras-chave: Moral; Direito; condenação.
Resumen: En este artículo se propone hacer un breve repaso de las principales teorías de la moral, relacionándolas con lo Derecho. Un análisis de la condenación del piloto Whip Whitaker en la película "El Vuelo", de la relación entre el Derecho y la Moral será hecha.
Palabras-clave: Moral; Derecho; condenación.
Sumário: 1. Notas introdutórias; 2. Dados técnicos do filme; 3. Resumo do filme; 4. Direito e Moral, uma relação tensa, porém completiva; 5. Análise da condenação sofrida pelo piloto Whip Whitaker, no filme “O Voo”. 6. Conclusão. 7. Referências.
1 Notas introdutórias
Pretende-se tratar neste breve ensaio das imbricações necessárias que existem entre a Moral e o Direito quando do julgamento de um processo. Para tanto, será analisado o filme “O Voo”, dirigido por Robert Zemeckis, e algumas construções filosóficas que fundamentam a relação de Moral e Direito, para trazer o julgamento a um tribunal de Justiça da vida real.
Diante desse objetivo, busca-se ordenar e concatenar o presente trabalho da seguinte forma: a) inserção dos dados técnicos do filme; b) enxuto resumo do filme, para trazê-lo posteriormente à realidade brasileira; c) exposição da relação entre Direito e Moral, tecendo, inclusive, comentários acerca destas ciências; d) transporte dos valores esposados no filme para a realidade pátria; e) por fim, realização de breve análise acerca da condenação sofrida pelo piloto Whip Whitaker no filme, sob o ponto de vista da Moral e do Direito.
2 Dados técnicos do filme
Trata-se o filme[1] de um drama norte-americano escrito por John Gatins, dirigido e coproduzido por Robert Zemeckis e estrelado por Denzel Washington, com Don Cheadle, Melissa Leo, Bruce Greenwood, Kelly Reilly e John Goodman.
Com 139 minutos de duração, o filme “O Voo”[2] concorreu em 2013 ao Oscar de Melhor Roteiro Original. Rendeu a Denzel Washington indicação ao Oscar de Melhor Ator por sua bela atuação[3] como o personagem Whip Whitaker, cuja trama se desenlaça ao seu redor.
3 Resumo do filme
A temática do filme gira em torno de um acidente aéreo surpreendente, que poderia ter se transformado em tragédia se não fosse pela habilidade do piloto Whip Whitaker, personagem interpretado por Denzel Washington. Para salvar a vida de sua tripulação, Whip fez o possível e o impossível para aterrissar seu avião com segurança, e tudo isso algumas horas após ter consumido maconha, cocaína e bebidas alcoólicas[4].
No filme são expostas algumas facetas que todos os indivíduos vivenciam e com que se deparam diariamente, como os males do alcoolismo e seu reflexo naqueles que estão próximos ao problema. Whitaker é alcoólatra daqueles que não assumem o vício, e no dia do acidente estava sob o domínio de bebidas e drogas. É em meio a esta contraditória realidade que "O Voo" situa sua trama.
Mesmo bêbado e drogado, o piloto foi capaz de realizar uma manobra tão improvável que nem mesmo 10 pilotos conseguiram reproduzi-la em voos simulados, conforme relatado no filme. Um verdadeiro milagre. Dos 102 passageiros a bordo, 96 sobreviveram e seis faleceram.
Ainda assim, diante de toda a situação relatada, após o acidente aéreo foram coletados exames de sangue, devido às mortes ocorridas, e os resultados posteriormente serviram de evidência que se desdobrou em um julgamento onde o piloto – anteriormente aclamado como herói – enfrenta um tribunal para responder acerca dos exames toxicológicos e, após inúmeros questionamentos, confessa que no dia do episódio fatídico havia consumido álcool, maconha e cocaína.
Durante o período que antecede, reproduz e sucede o julgamento são levantados por Gatins (o roteirista do filme) alguns questionamentos sobre a crença em Deus e em seus milagres. Nesta senda, fala-se sobre a "segunda chance", aquela que refaz corpo e mente, e, apesar de a opção estar a um passo de distância, a dificuldade de aceitá-la como algo necessário faz com que as coisas se compliquem de maneira quase irremediável.
Sobremais vale ressaltar que, apesar da brilhante defesa elaborada por seu advogado, que conseguiu desconsiderar o exame toxicológico, o que, consequentemente, levaria o piloto ao êxito, o peso da culpa fala mais alto e Whip confessa que consumiu entorpecentes antes de pilotar o avião naquele dia “D”.
No fim da instrução processual ocorre o julgamento, que condena o piloto Whip Whitaker a cinco anos de prisão por trair a confiança pública e, ainda, retira sua licença para voar; ou seja, ele acaba proibido de exercer sua profissão.
4 Direito e Moral: uma relação tensa, porém completiva
Atualmente, a sociedade em que se vive está recheada de exemplos onde Direito e Moral se contrapõem e se relacionam diariamente. Neste ínterim, calha gizar que ambos os institutos (da Moral e do Direito) se interligam durante a integralidade de tempo no filme utilizado como parâmetro neste ensaio acadêmico.
A relação entre o Direito e a Moral tem se mostrado como uma das mais polêmicas no estudo da ciência do Direito. Desta forma, o presente artigo tem como principal escopo focar em sua conexão, pontuando algumas de suas diferenças e similaridades.
Tem-se três conhecidas e mais utilizadas correntes que buscam e visam desmistificar o entendimento sobre Direito e Moral, segundo estudiosos, doutrinadores, filósofos etc., que serão citadas no transcorrer do texto, quais sejam: a teoria jusnaturalista, a juspositivista e a pluralista.
A ligação entre o Direito e a Moral foi e é observada de formas diversas pelo Jusnaturalismo, o Juspositivismo e o Pluralismo Ético; assim, até o presente momento não possui a tão desejada estabilidade conceitual.
Em resumo, tinha-se, e tem-se, uma transição na forma de relacionar Direito e Moral. O Jusnaturalismo argumenta/argumentava pela vinculação entre ambos; de outra banda, o Juspositivismo defende/defendia que deve ocorrer uma segregação entre as duas esferas, ou seja, uma separação das ordens axiológicas e normativas; por seu turno, o Pluralismo Ético apresenta uma espécie de visão híbrida (pós-moderna), uma vez que não retorna ao conceito jusnaturalista, mas também não segrega de forma radical o Direito e a Moral.
O Jusnaturalismo defende o Direito Natural; em outras palavras, fala da existência de um Direito que se sobrepõe ao normatizado pelo Estado. Com a máxima vênia, seria uma espécie de Direito anterior ao Direito que serviria de alicerce para o Direito Positivado.
A referida corrente possui/possuiu como principais e mais famosos defensores/pensadores Aristóteles, Tomás de Aquino, John Locke, Immanuel Kant, Santo Agostinho, John Finnis e Hart, dentre outros. Como críticos da teoria jusnaturalista destacam-se Hans Kelsen e H. L. A. Hart.
Os jusnaturalistas defendem a vinculação entre Direito e Moral a partir de um Direito Natural. A respeito disto, traz-se à baila o escólio do Professor Barboza[5]. Litteris:
A tese da vinculação se identifica com o jusnaturalismo e vê no direito natural a vinculação das normas jurídicas às normas morais. [...] Claro, enquanto para o jusnaturalismo do direito se define, necessariamente, como referido e vinculado à moral.
Para Thomas Hobbes[6], o Direito Natural seria concebido como o livre arbítrio que cada homem possui para utilizar livremente o próprio poder da vida e fazer tudo aquilo que a razão e o juízo considerem como os meios idôneos para o atingimento desse fim.
O Jusnaturalismo sempre sustentou suas bases nas normas morais. Neste sentido, vale citar obra de John Finnis[7], que transmite a ideia de que todo o Direito advém da moralidade e da lei natural. Importante referir que essa moral não é estanque, ou seja, não é sempre a mesma. O pensamento de Bobbio[8] resume bem essa premissa, que dá o entendimento de que a teoria do Direito Natural não tem em comum uma determinada moral, mas o fato de utilizar um fundamento e/ou uma determinada justificativa para a Moral, independente de seu conteúdo.
Salienta-se, apenas a título de informação, que Finnis, filósofo australiano, dos mais renomados atualmente, defende na obra retrocitada a existência de direitos naturais não excepcionáveis e absolutos morais; todavia, não se ingressará nesta seara devido ao “corte” dado ao presente trabalho.
O Juspositivismo, diferentemente do Jusnaturalismo (ainda que de forma enxuta), entende que Direito e Moral devem ser vistos de maneira segregada, ou seja, o que tem de prevalecer na ciência do Direito é/seria o ordenamento jurídico. Assim, há/haveria supremacia do Direito Positivo sobre o Direito Natural.
O Direito positivado, leia-se, conjunto de leis, normas etc., independeria dos “ideais de justiça”. Neste sentido, colhe-se o ensinamento de De Plácido e Silva[9]:
É, na linguagem de PICARD, o Direito tal como é, e não como devia ser, conforme nossos sentimentos íntimos ou nossas ilusões de Justiça. O Direito Positivo manifesta-se em qualquer espécie de Direito Objetivo, ramificando em todas as formas do Direito, seja escrito ou consuetudinário, que seja imposto como regra social obrigatória.
Referida teoria possui como âmago a desvinculação entre Direito e Moral. Aclareando, o Direito seria conceituado sem referência à Moral. Tal corrente possui/possuiu como principais adeptos Jeremy Bentham, Hans Kelsen, H. L. A. Hart, Neil MacCormick e John Gardner, dentre outros.
Para seus defensores, a validade das normas independeria de sua conformidade, de seu encaixe a critérios tidos como justos e corretos para a sociedade. Em outras palavras, seriam válidas todas as normas reconhecidas pelo ordenamento jurídico; isto é, o operador do Direito deve/deveria se calcar na forma, e não na substância da norma.
Para o talvez mais famoso juspositivista, Hans Kelsen, Direito e Moral se separam, mas não se desvinculam nem se desconectam. Trocando em miúdos, inexistiria uma moral absoluta. Para Kelsen, haveria vários sistemas morais, defendendo, assim, a existência de uma espécie de Moral relativa. Asseverou o filósofo austríaco[10]:
[…] uma Moral simplesmente relativa não pode desempenhar a função […] de fornecer uma medida ou padrão absoluto para a valoração de uma ordem jurídica positiva […] a validade de uma ordem jurídica positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral.
Importante salientar que Kelsen[11] defendia a preservação da pureza do método, libertando a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos: “A pureza de método da ciência jurídica é então posta em perigo [...] pelo fato de ela não ser, ou de não ser com suficiente clareza, separada da Ética: de não distinguir claramente entre Direito e Moral.”
Nas palavras de Richard Posner[12], “a filosofia moral não tem nada a oferecer aos juízes e aos estudiosos do Direito no que se refere à atividade judicial ou à formulação de doutrinas jusfilosóficas ou jurídicas”. No mesmo norte, MacCormick[13] afirma que uma das principais características do Positivismo vem a ser a negação de um “elo conceitual necessário entre o Direito e a Moral”.
Hart[14] defendia a existência de uma ligação mínima de Direito Natural, entre Direito e Moral.
Como críticos mais “famosos” à concepção juspositivista destacam-se Ronald Dworkin e Robert Alexy, que defendem a existência de um “moralismo jurídico”, como se verá a seguir.
A terceira corrente é a do Pluralismo Ético, ou Pós-Positivismo. Relembra-se que, dado o tamanho do artigo, não será possível deter-se o quanto se desejaria em cada uma das teorias, e por isso apenas se tecerá breves noções gerais para, mais à frente, concatenar o texto ao filme que o intitula.
A teoria Pluralista seria uma espécie de híbrido entre as duas correntes anteriormente esposadas. Em outras palavras, para os adeptos desta corrente o Jusnaturalismo seria “incompleto”, pois o homem racional não pode meramente se apegar às fundamentações metafísicas; por outro lado, defende a possibilidade de se fundamentar a Moral, o que diametralmente vai de encontro a teoria juspositivista.
Em meados da década de 30, Georges Ripert estava entre aqueles que não aceitavam a desvinculação do Direito da Moral. É o que se depreende da citação de artigo escrito por Jessé Torres Pereira Júnior[15], parafraseando Ripert. Senão, veja-se:
Não existe, na realidade, entre a regra moral e a regra jurídica, nenhuma diferença de domínio, de natureza e de fim; não pode mesmo haver, porque o direito deve realizar a justiça, e a ideia do justo é uma ideia moral. Mas há uma diferença de caráter. A regra moral torna-se regra jurídica graças a uma injunção mais enérgica e a uma sanção exterior necessária para o fim a atingir.
Ronald Dworkin[16] reporta-se a uma quase identidade entre os institutos da Moral e do Direito, pois defende uma abertura do Direito em relação à Moral sob o ponto de vista conceitual. Com o advento do Pós-Positivismo, segundo Dimoulis[17], ocorreu uma rearticulação entre Direito e Moral, mas isso não significou um retorno ao Jusnaturalismo.
No Brasil, talvez um dos maiores ícones acerca deste estudo seja Lyra Filho[18], que desconstrói a diferenciação de Direito e Moral ao afirmar que:
Esta [a diferença, a distinção] há de ser buscada na própria dialética social, para não dissolver-se em nebulosas metafísicas, nem achatar-se em qualquer bloco de normas estatais (que nem de longe são garantia de que ali, nas leis, está o Direito legítimo).
O pensamento de Robert Alexy[19] enquadra-se na teoria em pauta, ao passo que remete à ideia de que o Direito Positivo não se subordina ao Direito Natural. Para tanto, contrapõe as teorias jusnaturalista e juspositivista. Alexy defende, ainda, que a correção moral seria um dos elementos do conceito de Direito. Nesta seara, destaca-se a Teoria dos Direitos Fundamentais de Alexy[20], que explica a abertura do Direito em relação à Moral. Assim, pode-se concluir que o chamado Pluralismo Ético reconhece a possibilidade do conhecimento de uma Moral, calcado numa base racional.
No que diz respeito às teorias apresentadas de forma breve, calha abrir alguns parênteses. Primordialmente, traz-se à baila a visão de Kant[21] que, em nosso entendimento, apesar de antiga é extremamente moderna, pois defendia a razão como base da Moral. O renomado filósofo prussiano partia do princípio da identidade, remetendo à ideia de que o comportamento humano está relacionado com a identificação no outro, isto é, que a ação das pessoas influencia/influenciaria no comportamento do indivíduo, tornando-se essa práxis uma espécie de lei universal.
Sobremais, acerca da Moral, Hume[22], de maneira diversa da de Kant, entendeu que a Moral se calcaria na paixão, e não na razão. Nesta tangente, não haveria um bem superior pelo qual a humanidade se pautasse. Hume defendia que a experiência (empírica) promove o entendimento humano, ou seja, o desejo induziria à liberdade.
Assim, quando o estudioso se depara com a relação entre Direito e Moral, de antemão se pergunta: há relação necessária entre eles dentro de uma sociedade?! As normas jurídicas precisam ser consideradas boas pela população?! Ou, ainda, alternativamente, inexiste qualquer ponto de intersecção entre ambos?
Buscando responder a tais indagações, apresenta-se, embora de forma sucinta, quatro famosas teorias que tentam explicar a relação existente entre normas jurídicas e normas morais, quais sejam: Teoria dos Círculos Concêntricos, Teoria do Mínimo Ético, Teoria da Separação entre o Direito e Moral e Teoria dos Círculos Secantes.
O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham[23] concebeu a relação entre Direito e Moral, sendo o campo desta mais amplo que o daquele. Em outras palavras, o Direito seria subordinado à Moral. Bentham afirmava que o Direito estaria totalmente inserido no campo da Moral.
O pensamento de Bentham acerca dos círculos concêntricos discorre que:
[...] restringe o direito àquele círculo onde se aplicam penas materiais, salientando que elas só devem existir para os casos em que o bem resultante de sua aplicação for maior que o mal que provocam. Porque o mal produzido pelas penas é uma despesa que o Estado faz, tendo em vista um lucro, o desaparecimento dos crimes. A tese está intimamente ligada ao contratualismo utilitarista, do modelo benthamiano (the greatest happiness to the greatest number is the foundation of morals and legislation), à ideia de que é possível a realização do máximo de utilidade com o mínimo de restrições pessoais, numa perspectiva que reduz o direito a uma simples moral do útil colectivo.
Em todas estas famílias está a redução do contrato social à mera composição de um conflito de interesses, do bellum omnium contra omnes, considerando-se que os indivíduos renunciam a uma parte das suas liberdades naturais para garantirem o mínimo de convivência social, dado que o homem não é naturalmente um animal social, mas um animal a-social, individualista, um lobo do homem.
Portanto, a sociedade não é uma coisa natural, mas antes algo de artificial, visando o finalismo de poderem gozar-se certas utilidades[24].
Gize-se, neste sentido, o escólio de Peter Berger[25], que afirmou que a sociedade possui mecanismos de controle dela mesma. Logo, “os mecanismos de controle social não seriam características tão somente do Direito, mas, outrossim, da Moral, a qual também controlaria a sociedade”.
Acerca da teoria concêntrica, Berger[26] ainda suscitou:
Se voltarmos à imagem de um indivíduo localizado no centro de um conjunto de círculos concêntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social, podemos compreender um pouco melhor que situar-se na sociedade significa situar-se em relação a muitas forças repressoras e coercitivas.
Dando continuidade aos estudos de Jeremy, o filósofo e juiz de Direito alemão Georg Jellinek[27] apresentou a Teoria do Mínimo Ético, que afirma que o Direito representa o mínimo de preceitos morais, para que a sociedade possa viver. A referida corrente sustenta que as normas jurídicas são normas morais. Esmiuçando, as normas morais “mais importantes” e/ou de maior relevância seriam/são/serão transformadas pelo Estado em normas jurídicas. Miguel Reale[28], um dos maiores expoentes e debatedores do assunto no Brasil, critica essa teoria afirmando que existem fatos inseridos no campo do Direito, mas não obrigatoriamente no da Moral.
Acrescentando ao exposto, valemo-nos das palavras do Professor Miguel Reale:
A Teoria do Mínimo Ético consiste em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos dessa doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas, como as violações são inevitáveis, é indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão dos dispositivos que a sociedade considerar indispensável à paz social. Assim sendo, o Direito não é algo diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantias específicas[29].
Como anteriormente explicitado, a partir do aprofundamento e aperfeiçoamento dos estudos Kantianos Hans Kelsen separa o Direito da Moral, Assim, tem-se o nascimento da Teoria da Separação do Direito e da Moral, ou Visão Kelsiana, ou, ainda, Teoria dos Círculos Independentes. Para o renomado filósofo austríaco, a norma seria/é o único elemento essencial ao Direito, independente de sistemas morais.
Para explicar sua teoria, Hans Kelsen[30] correlaciona as características do Direito (heteronomia, coercibilidade e bilateralidade) e da Moral (autonomia, incoercibilidade e unilateralidade). Para tanto, vale-se da conceituação dos termos, ligando àqueles ao Direito e estes à Moral. Aqui tem-se o que Kelsen chamou de Relativismo Ético, conforme citação retrocitada (vide nota de rodapé nº 13).
Nem todos os autores, pensadores, estudiosos e doutrinadores concordaram com a visão Kelsiana, que afasta o Direito da Moral; em decorrência, tem-se o surgimento da quarta teoria, conhecida como Teoria dos Círculos Secantes, elaborada por Claude du Pasquier[31]. Para o jurista francês, toda norma jurídica possuía conteúdo moral, mas a recíproca não era verdadeira. Aclareando, existem normas jurídicas que não são abrangidas pela Moral. Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se dizer que Direito e Moral possuem uma área de intersecção, apesar de sua independência.
Depreende-se que os defensores dessa corrente entendem que existem regras morais não jurídicas e regras jurídicas amorais e imorais.
Hart[32] ratifica o alhures mencionado ao longo de sua obra O conceito de Direito ao defender a existência de uma conexão entre Direito e Moral, em que pese sua autonomia.
Jürgen Habermas[33], filósofo e sociólogo alemão, defende uma complementaridade recíproca entre Direito e Moral:
Eu penso que no nível de fundamentação pós-metafísico, tanto as regras morais como as jurídicas diferenciam-se da eticidade tradicional, colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem lado a lado, complementando-se[34].
Habermas[35] assevera ainda:
[…] somente se levarmos em conta a racionalidade que habita o próprio direito poderemos assegurar a independência do sistema jurídico. No entanto, como o direito também se relaciona internamente com a política e com a moral, a racionalidade do direito não pode ser questão exclusiva do direito.
Miguel Reale[36] contrasta as correntes acima citadas comentando que:
Há, pois, que distinguir um campo de Direito que, se não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos secantes. Podemos dizer que dessas duas representações – de dois círculos concêntricos e de dois círculos secantes, – a primeira corresponde à concepção ideal, e a segunda, à concepção real, das relações entre o Direito e a Moral.
A partir dessa crítica, Miguel Reale[37] adota a Teoria Tridimensional do Direito, que enxergava uma tripla face do Direito, qual seja: a do fato, a do valor e a da norma. Em suma, defendia o jurista:
Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato, como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor.