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Direito de resistência e desobediência civil a partir das visões de Hobbes e Thoreau

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5. DESOBEDIÊNCIA CIVIL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito guarda como uma de suas principais características a submissão legal do próprio Estado às leis que emana. Em contraposição ao regime absolutista, marcado pela figura de um monarca que ditava as normas e não precisava vincular-se a elas, o regime democrático de direito tem por escopo a preservação da ordem jurídica e visa evitar arbitrariedades que possam ser praticadas pelos governantes. Povo e governo sujeitos à mesma ordem jurídica conduzem a um ideal de sociedade onde a figura da lei paira sobre todos.

Ainda que soe incoerente numa análise inicial, a vinculação do criador da lei à sua própria criatura é quase realidade nos estados democráticos atuais. Pelo menos em tese, as constituições dos países que trazem democracias modernas preveem alguns elementos fundamentais, como a tripartição de poderes proposta por Montesquieu. Dentro desta tripartição, o Poder Legislativo, a quem incumbe elaborar as leis em sentido estrito, está submetido à própria atividade legislativa.

Dentro deste contexto, pode-se pensar que o povo está em pé de igualdade com o seu governo, já que ambos se submetem ao mesmo regime. É, contudo, descabido afirmar tal coisa. Isto porque existem leis injustas e a disciplina legal vinculativa a todos prevê vantagens ao governo em relação aos cidadãos, em nome de um dito Interesse Público. Este interesse, por vezes, é confundido com os interesses do governo. A linha é tênue. Ainda que o governo represente o povo em primeira análise, este deve ser visto como uma pessoa jurídica na ordem interna. Ou seja: o governo deve ser visto e encarado como um sujeito de direitos e obrigações, ainda que estes direitos e obrigações sejam criados por ele mesmo. É neste ponto que analisamos que o povo muitas vezes não tem suas aspirações plenamente atendidas, posto que seu interesse é substituído pelo interesse do governo – que, por sua vez, defende-se dizendo que o interesse governamental é o mesmo interesse público. Nasce aí o direito de resistência, o direito de desobedecer.

O nascimento do direito de resistência ocorre neste ponto porque I – o sistema idealizado não está funcionando corretamente, pois o poder do povo está sendo substituído pelo poder de poucos e II – a partir do momento em que enxergamos a sociedade como um jogo onde todos seguem regras, o jogo torna-se injusto a partir do momento em que alguém cria as regras do modo que lhe sejam mais favoráveis. Como o povo não dispõe de instrumentos eficazes para combater esta prática, passa então a promover a sua própria revolução, resistindo à dominação imposta em forma de democracia forjada. Mas será que esta resistência está em concordância com a ideia de estado democrático de direito? Deve-se analisar como, neste modelo de sociedade e de Estado, o poder se origina e como se dá a dinâmica do processo político.

Como objeto de análise, o sistema jurídico-político do Brasil traz em sua Constituição Federal a premissa de que “todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, na forma da lei”[1]. Dizer que o poder, ou ainda, que todo poder emana do povo é legitimar seu direito de resistência. Isto porque os poderes instituídos para dar forma o governo também emanam do povo, e apenas ele pode ditar-lhe os rumos. Assim pontua Cavalcante (2006):

A desobediência civil é a maneira legítima que o cidadão possui para agir em nome de seus interesses e garantir a efetivação de direitos da minoria quase sempre oprimida pela vontade da maioria, sem violência e em nome da defesa de direitos e garantias constitucionais, resistindo a atos e a leis injustas ou opressivas, objetivando sua revogação ou anulação, sempre embasada em princípios maiores como o da cidadania e da soberania popular.           

O excerto nos conduz também a análise de outros fatores. Um deles é a questão da vontade da maioria. Em sua clássica obra “A desobediência civil”, Thoreau[2] fala sobre a opressão da maioria em relação à minoria. Para ele, o exercício da vontade da maioria na sociedade não se justifica por ser mais justo ou por ser uma forma mais branda para que a minoria legitime esta vontade. Thoreau diz que a vontade da maioria é levada em conta apenas porque, fisicamente, esta é mais forte que a minoria. É, contudo, periclitante a dominação de uma maioria que de fato oprime ou manifesta sua vontade por leis injustas. Por que a minoria teria de aceita-las? E quando o governo, expressão da vontade de maioria, quebra o laço que tem com esta e passa a oprimir maioria e minoria?

Aliás, é importante destacar que embora o governo seja o retrato da vontade de uma maioria, é plenamente possível que este se desvincule da vontade daqueles que lhe conferiram o poder. Um governante, em atividade política buscando a sua eleição, pode transmitir ideias e projetos que satisfaçam a maioria, mas que, em verdade, este só os utilizou com o fim de ser eleito – seus planos governamentais são bem distintos. Então a análise passa a ser feita a partir de uma abordagem indutiva: se o poder emana do povo e este se executa por um representante eleito por um determinado período de tempo, o povo, a qualquer momento, pode desobedecê-lo e desobedecer leis injustas e opressoras. Isto porque a vontade do povo, titular único do poder, detentor da soberania popular, está sendo ferida por aqueles que deveriam defender as aspirações sociais.

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É por isto que o direito de desobedecer, em uma análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, é quase que um fundamento da República. Embora não diga isso de forma expressa como as constituições da Alemanha[3] e de Portugal[4], a Constituição Brasileira cria uma lógica favorável a este entendimento. As expressões do direito de resistência não consistem necessariamente em violência ou em anarquia – pelo contrário, podem ser encontradas em movimentos sociais reivindicatórios comuns, como greves de trabalhadores contra práticas injustas, como leciona Maurício Gentil[5]:

Na prática, as greves são deflagradas em movimentos de reivindicação por melhores salários, melhores condições de trabalho, em busca do atendimento e da efetivação das normas do artigo 7º da Constituição, o que por si só já se pode chamar de direito de resistência, uma vez que, ao paralisar o serviço, está-se resistindo à opressão patronal, que desrespeita os direitos humanos dos trabalhadores que deliberaram pela greve, mais especificamente os chamados direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão.

Ao contrário da concepção de que no Estado Democrático de Direito todos devem sucumbir, é válida a tese de que neste Estado a garantia fundamental é a resistência à ordem injusta. Reconhecer o povo como soberano, titular de todo poder, é permitir-lhe a insurgência contra a injustiça e a opressão impostas por poucos representantes eleitos que traem os próprios fundamentos da sua eleição. A resistência é expressão do povo em defesa da sua soberania, e contra o ataque a ela. Injustiça e opressão, afinal, ainda que ataquem apenas determinadas parcelas da sociedade, são uma ofensa à base de todo o poder: o povo.

Negar a resistência é negar a soberania popular. É favorecer o sistema engessado de leis e normas emanadas por representantes em detrimento daquilo que o povo realmente anseia. Aliás, é possível até classificar, no Estado Democrático submisso às próprias normas, o direito de resistência como um direito de defesa da própria autoridade que o povo possui, e que, sendo titular de todo o poder político, passa a defender-se contra as injustiças, opressões e arbitrariedades perpetradas.


5. CONCLUSÃO

Pelo delineamento deste estudo, podemos concluir que a desobediência civil pode ser analisada sob vários ângulos e aspectos. Primeiro, na perspectiva de Hobbes, percebemos que não existe campo de incidência da desobediência dentro do contrato social. As hipóteses de desobediência “hobbesianas” são todas fora do contrato social.

Além disso, para Thoreau, a desobediência civil deve ser entendida como um verdadeiro método indireto de participação da sociedade, pois esta não possui canais eficientemente participativos junto à tomada de decisões do Estado, encontrando no direito de resistência a sua forma de expressão de vontade e discordância quanto à opressão ou injustiça praticada pelo governo (soberano).

E, por fim, percebemos que no Estado Democrático de Direito é possível ocorrer a desobediência civil, visto que o poder popular é fundamento de validade para todos os outros no caso brasileiro, ainda que não haja disposição legal expressa. Além disso, constituições de outros países trazem possibilidades expressas do direito de resistir, como a constituição alemã e a constituição portuguesa. É, derradeiramente, clara a possibilidade de oposição à injustiça e à opressão por meio da desobediência civil num estado que tem o povo como titular de todo o poder.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais , 1994.

GHIDOLIN, Clodoveo. Jusnaturalismo ou positivismo jurídico: uma breve aproximação. Disponível em: <http://www.fadisma.com.br/arquivos/ghidolinpdf.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2014.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Martin Claret, São Paulo, 2006.

MONTEIRO, Maurício Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 150-153.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Vamireh Chacon. Brasília: UnB, 1981.

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM,. 1997. p.5 - 56. Comentário e hiperlinks: Sérgio Bellei (UFSC).


Notas

[1] Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º, parágrafo único.

[2] THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM,. 1997. p.5 - 56. Comentário e hiperlinks: Sérgio Bellei (UFSC).

[3] Artigo 20 da Constituição Alemã: “(...) 3. O poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito. 4. Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm direito de resistir contra quem tentar subverter essa ordem”.

[4] Artigo 7º da Constituição Portuguesa: “(...) 3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito de insurreição contra todas as formas de opressão”.

[5] MONTEIRO, Maurício Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 150-153.

Sobre os autores
Luis Felipe Araújo

Advogado (OAB/SE 8.634) e servidor da Fundação Universidade Federal de Sergipe.

Lucianne Fabrizia Santana Gomes

Acadêmica de Direito da Universidade Tiradentes.

Gusttavo Alves Góes

Acadêmico de Direito da Universidade Tiradentes.

Ana Cristhina Freire de Oliveira

Acadêmica de Direito da Universidade Tiradentes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Luis Felipe; GOMES, Lucianne Fabrizia Santana et al. Direito de resistência e desobediência civil a partir das visões de Hobbes e Thoreau. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4284, 25 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32322. Acesso em: 22 dez. 2024.

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