4 DO PODER DE TRIBUTAR AO DEVER DE SOLIDARIEDADE
Durante largo espaço de tempo, compreendeu-se o poder de tributar como imposição de um dever pelo Estado aos indivíduos. Sintetizava-se na ideia de “transferência de dinheiro das pessoas privadas, submetidas ao poder do estado, para os cofres públicos”.[139] Sustentava-se que o Estado possuía o poder de retirar da esfera privada qualquer manifestação de riqueza ou rendimento, sob qualquer ou nenhum argumento.[140] O poder estatal exteriorizava-se mediante a coação tributária sobre os indivíduos.
Desse modo, o poder de tributar foi explicado sob diferentes óticas. Num primeiro momento, baseou-se o poder de tributar na noção de soberania – e não de relação jurídica – do Estado frente aos indivíduos. “(...) o poder tributário, como a generalidade dos poderes públicos, era totalmente alheio à ideia de juridicidade”.[141] A sociedade não dispunha de alternativa senão entregar aos cofres públicos parcela de sua riqueza. Era uma transferência compulsória, baseada numa relação de poder. Neste período, Estado e indivíduo estavam nitidamente separados na busca do bem comum.
Em oposição ao pensamento conceitual, surgiu o pensamento normativista a fim de explicar o porquê da tributação. O poder tributário era visto como decorrência do sistema jurídico, consubstanciado no exercício da competência tributária. A relação tributária transformou-se em relação jurídica, nascida da ocorrência do fato previsto na hipótese de incidência e cuja conseqüência consubstanciava-se na obrigação de os indivíduos entregarem parcela dos seus recursos ao Estado.
“A razão da fonte normativa reside no respeito ao princípio da legalidade, um princípio constitucional que fundamenta o poder de imposição na vontade democraticamente expressa pelo povo, único titular da soberania”.[142]
Diante da explicação insatisfatória dada ao poder de tributar pelas teorias conceitual e normativa, emergiu o pensamento sistemático.
Nessa concepção a relação tributária é vista como mais do que mera relação de poder ou “normativa pura”. É uma relação dirigida à regulação da cidadania, de seu conteúdo e alcance em uma sociedade. A relação tributária trata essencialmente do núcleo do pacto social, ou seja, da contribuição cidadã à manutenção de uma esfera pública e privada de liberdade e igualdade.[143]
Ou seja, não tem mais sentido falar-se em supremacia da Administração perante o contribuinte, nem mesmo em coatividade apenas porque o tributo decorre da lei.[144]
Nas sociedades complexas como as atuais, o consenso constitui a base da legalidade, com a obediência às normas sustentada na aceitação de certos valores gerais e não simplesmente na coerção. Esse consenso em relação a um mínimo ético fundamenta a convivência social e compõe o substrato da consciência coletiva, proporcionando uma identidade comum e um certo sentimento de interdependência e cooperação (solidariedade social) (...).[145]
As ideias trazidas acima contribuem a fim de se perquirir os fundamentos que legitimaram ou legitimam a tributação e que contribuem para uma aversão da sociedade ao pagamento dos impostos, pois foi sempre tido como algo coercitivo e indiscutível, e não como meio de realização dos valores sociais. “É um fato cultural, histórico, desconfiar do Estado e ver a arrecadação dos impostos como “subtração”, ao invés de contribuição a um Erário comum.”[146]
Hoje, estabelecem-se fundamentos diferentes do mero poder coercitivo do Estado ou da possibilidade de intervenção na esfera econômica a fim de explicar o poder de tributar. Primeiro, “o poder de criar impostos é um poder constitucional, já que a sua titularidade há-de resultar da constituição (...)”.[147] Ou seja, “tem necessariamente por fundamento jurídico a constituição, em cujo conteúdo normal se integra a fixação dos centros de um tal poder e o quadro de princípios materiais em que o mesmo pode ser exercido”.[148] Segundo, é indisponível, pois não pode ter a sua titularidade nem transferida nem alienada. Terceiro e, por fim, é permanente porque apenas se extingue com a extinção de quem detém a sua titularidade.
Entretanto, tal definição se revela insuficiente se não se considerar que o poder de tributar é um modo de realização positiva de políticas públicas em prol da afirmação da dignidade humana, da liberdade e da igualdade. Estas ideias estão consubstanciadas expressamente no inciso I do art. 3° da Constituição da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Devido ao fato de o Estado brasileiro ser um Estado Fiscal, e não um Estado Tributário, decorre, desde logo, uma “plataforma mínima de solidariedade social”.[149] “O tema da solidariedade é fundamental porque leva a perguntar porque se pagam tributos, porque deve existir uma lealdade fiscal”.[150]
Dentre os objetivos trazidos pela Carta política, destaca-se a solidariedade ou, mais especificamente, o dever de solidariedade – genérica – que permeia todo o ordenamento jurídico constitucional e irradia os seus efeitos sobre todo o sistema jurídico, em especial, sobre o direito tributário. “El punto de partida de la solidaridad es el reconocimiento de la realidad del outro y la consideración de sus problemas como no ajenos, sino susceptibles de resolución com intervencióin de los poderes públicos y de los demás”.[151]
Contrariamente ao que o sistema de fiscalidade estatal poderia levar a crer, “a ideia de solidariedade social tem sido servida pelo direito dos impostos ao longo de todo o Estado fiscal e não apenas com o advento do Estado fiscal social”[152]. Entretanto, foi nos limites do Estado Social Fiscal que a ideia de solidariedade social assentou-se.
Num tal tipo de Estado fiscal, a solidariedade social não é apenas uma espécie de efeito externo decorrente automaticamente do caráter fiscal do estado, antes se assume como um objetivo a prosseguir pelo Estado e a prosseguir também pela via do direito dos impostos.[153]
“A solidariedade, portanto, não pode ser considerada apenas como um corretivo que opera em caráter residual para balancear os desequilíbrios produzidos pelas regras do mercado, como se afirmava nas concepções econômicas e liberais do passado”.[154]
Aquí, se trata de considerarla como um valor superior que fundamenta a los derechos, como hemos visto com la libertad y com la seguridad, y que, al final de su recorrido, forma parte del Derecho positivo, aunque arranque de la moralidad y se assuma por uma concepción política que, por médio del poder, la incorpora al Ordenamiento jurídico.[155]
“Como corolário da solidariedade, no campo fiscal, surgiu a reconstrução do dever tributário como um dever de concorrer para a própria subsistência do Estado e não como uma prestação correspectiva-comutativa diante da distribuição de vantagens específicas para o obrigado”.[156]
Observa-se que, entre os Antigos – Aristóteles, Cícero e Sêneca –, sob diferentes matizes, a noção de solidariedade se manifestava. “El primero la identifica com, y pone el acento sobre, la amistad y el efecto de unidad”.[157] Para os segundos, a solidariedade se confunde com “ideas como las de comunicación, amor y unión entre los hombres, humanidad cosmopolita, ayuda mutua y asociación, compañerismo de amistad, hermandad, etc.(...) y también com um reconocimiento del outro como tal”[158].
Para os Modernos, a solidariedade afirma-se como “la idea de uma función promocional del poder y del Derecho. (...) Se propugma, pues, uma acción positiva de los poderes públicos y se descalifica la simple ación represora, si no va acompañada de la promocional par ayudar a los pobres y a los desempleados.”[159]
À medida que a solidariedade se afirma, assume, progressivamente, alguns contornos. Ora manifesta-se como mutualista, ora como altruísta. Aquela se manifesta no Estado Social, mediante a divisão dos meios de produção e a conseqüente distribuição de riqueza. Esta, por sua vez, apresenta a ação solidária “como uma dádiva, segundo uma regra de gratuitamente, isto é, sem esperar qualquer contrapartida da parte dos beneficiários da atividade solidária”[160].
Dentro da solidariedade altruísta, à qual, hoje, são feitos os apelos, destaca-se a solidariedade vertical – solidariedade pelos direitos ou solidariedade paterna – e a horizontal – solidariedade pelos deveres ou solidariedade fraterna.
A solidariedade vertical consubstancia-se no fato de que o “Estado na sua configuração de Estado social não pode deixar de garantir a cada um dos membros da sua comunidade um adequado nível de realização dos direitos à saúde, à educação, à habitação, à segurança social, etc”[161].
Em contrapartida, a horizontalidade da ação social expressa os “deveres fundamentais ou constitucionais que o Estado, enquanto seu destinatário direto, não pode deixar de concretizar legislativamente e, de outro lado, os deveres de solidariedade que cabem à comunidade social ou sociedade civil”[162]. “Se não se admite que a solidariedade esteja na base do dever tributário há o risco que ele se traduza em obrigações meramente formais”.[163] Longe está isso de significar que a as prestações materiais sociais estão a migrar do Estado para a sociedade civil, apenas expressa que a solidariedade é complementar às ações estatais.
“Atualmente, para o Direito, as principais funções do valor solidariedade são: a de servir de fundamento e de critério de interpretação dos direitos humanos; promover cooperação social; fundamentar tanto os deveres jurídicos positivos como os direitos difusos e coletivos”.[164]
Da mesma forma que a igualdade, a solidariedade é um princípio vazio, pois não traz conteúdos materiais específicos, podendo ser visualizado ao mesmo tempo como valor ético e jurídico, absolutamente abstrato, e como princípio positivado nas Constituições. É sobretudo uma obrigação moral ou um dever jurídico. Mas, em virtude da correspectividade entre deveres e direitos, informa e vincula a liberdade, a justiça e a igualdade. Sendo conceito extremamente complexo, porque vazio, a solidariedade encontra adequada fundamentação através do estudo sobre a cidadania.[165]
Diferentemente da solidariedade, que apenas se consolida efetivamente com os Modernos, a cidadania têm sua origem há mais tempo. Possui três elementos a fim de delimitar seu conceito: 1) titularidade de um determinado número de direitos e deveres numa sociedade específica; 2) pertença a uma determinada comunidade, normalmente ao Estado; 3) possibilidade de contribuir para a vida pública dessa comunidade por meio da participação.[166]
Da união da solidariedade à cidadania, tem-se o que se denomina de cidadania solidária. A cidadania, primeiro, afirma-se como passiva no seio do Estado Liberal clássico. Após, como ativa, nos moldes do Estado Democrático de Direito. Por fim, revela-se como ““cidadania responsavelmente solidária”, em que o cidadão assume um novo papel, tomando consciência de que o seu protagonismo ativo na vida pública já se não basta com o controle do exercício dos poderes”[167].
A partir da aliança – solidariedade-cidadania –, legitima-se, hoje, o poder de tributar, não mais como mera imposição, mas como meio de implementação das políticas públicas. “A relação tributária trata, essencialmente, do núcleo do pacto social, ou seja, da contribuição cidadão à manutenção de uma esfera pública e privada de liberdade e igualdade”.[168] Orienta-se, desse modo, o poder de tributar pelo postulado maior da dignidade da pessoa humana, como meio de concretização efetiva das políticas de inclusão social.
Em suma, “a ideia de solidariedade tem especial relevância para os deveres fundamentais, que compõem a cidadania”[169]. A ideia é singela: a partir do momento em que o Estado tributa manifestações de riqueza dos mais abastados para depois redistribuí-la a quem não detém os recursos suficientes a fim de manter uma vida digna, não está apenas baseado no seu poder soberano, de império e coercitivo, mas está fundado em valores maiores que antes apenas lastreavam o campo da moral para fazerem emergir, atualmente, novos fundamentos ao direito, em especial, ao tributário. “Pode-se acrescentar que um valor de solidariedade e obrigatoriedade fiscais só nasce quando o valor coletivo supera o valor individual, personalista, egoísta”.[170]
“Pois bem, a dimensão solidária da cidadania implica o empenhamento simultaneamente estadual e social de permanente inclusão de todos os membros na respectiva comunidade de modo a todos partilharem um mesmo denominador comum (...).”[171]
5 O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS
Analisado o Estado brasileiro – Democrático de Direito e Fiscal, bem como o meio de financiamento de suas políticas públicas – os impostos – e a ideia hoje reinante da solidariedade social a fim de legitimar seu poder de tributar, faz-se necessário, num segundo momento, observar o outro lado da relação jurídica: o contribuinte. Neste momento, deve-se averiguar porque o contribuinte arca com os ônus estatais: há um dever fundamental de pagar impostos expresso na Constituição Federal de 1988?; Em caso negativo, como se fundamenta o dever de pagar impostos?; Há uma única categoria de deveres fundamentais?; Os deveres fundamentais são correlatos aos direitos fundamentais? A seguir, tenta-se encontrar respostas plausíveis a tais questionamentos.
Inicialmente, cumpre abordar alguns aspectos históricos relativos aos deveres. Surgidos no domínio religioso e ético, somente na Idade Moderna, migraram para o Direito. Assim como desenvolveram a noção de solidariedade, os estóicos são responsáveis pelo reconhecimento dos deveres, eis que desenvolveram a concepção antropocêntrica. Erigem o homem em “titular (único titular, de resto), não só dos direitos fundamentais, que são inerentes a sua dignidade, mas também dos deveres que a existência e o funcionamento da comunidade (organizada em estado) necessariamente implicam”[172].
Entretanto, o tema dos deveres fundamentais, por um largo espaço de tempo, foi pouco ou nada abordado. Em virtude do próprio significado originário de Estado de Direito e da tensão entre poder e direito[173], privilegiou-se, na quase totalidade dos estatutos constitucionais que emergiram durante o século XX, a afirmação e proteção dos direitos e liberdades fundamentais. “Com efeito, nem as declarações americanas, nem as declarações francesas de direitos, contêm ou deram origem a declarações de deveres”.[174] Fato este explicável em virtude do passado recente “dominado por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos”.[175]
Preocuparam-se de uma maneira dominante, ou mesmo praticamente exclusiva, com os direitos fundamentais ou com os limites ao(s) poder(es) em que estes se traduzem, deixando por conseguinte, ao menos aparentemente, na sombra os deveres fundamentais, esquecendo assim a responsabilidade comunitária que faz dos indivíduos seres simultaneamente livres e responsáveis, ou seja, pessoas.[176]
“Tratava-se tão-somente, nesses tempos de antanho, de priorizar a liberdade (individual) sobre a responsabilidade (comunitária)”.[177]
Aparentemente, enquanto houve abundância de recursos, a sociedade não se ressentiu profundamente destas insuficiências. Entretanto, na medida em que a capacidade de financiamento público estatal se reduzia, a coesão social parece ter perdido forças em seu caráter de grupo, passando a produzir-se uma disputa iníqua pela apropriação do que restava de pressupostos públicos. [178]
“A concepção dos direitos fundamentais como poderes individuais contra o Estado não seria, de facto, suficiente nem adequada para exprimir juridicamente as relações entre os cidadãos e os poderes públicos: àqueles não caberiam apenas direitos nem a estes meros deveres”.[179] Emergiu a necessidade de se reconhecer os deveres fundamentais como “categoria jurídica constitucional própria. Uma categoria que, apesar de própria, integra o domínio ou a matéria dos direitos fundamentais, na medida em que este domínio ou esta matéria polariza todo o estatuto (activo e passivo, os direitos e os deveres do indivíduo)”.[180] Apesar de independentes dos direitos fundamentais, gravitam em torno destes. Isto é, “traduz a mobilização do homem e do cidadão para a realização dos objectivos do bem comum”[181].
[...] a instituição ou não de deveres fundamentais repousa, em larguíssima medida, na soberania do estado enquanto comunidade organizada, soberania que não pode, todavia, fazer tábua rasa da dignidade humana, ou seja, da ideia da pessoa humana como princípio e fim de sociedade e do estado [...][182]
Os deveres fundamentais são facilmente confundidos com certas figuras que lhes são próximas, tais como os deveres constitucionais orgânicos ou organizatórios; os limites (imanentes ou restrições) legislativas aos direitos fundamentais; os deveres correlativos aos direitos fundamentais, que são a face passiva dos direitos fundamentais; as garantias institucionais; e as tarefas constitucionais stricto sensu, que possuem como destinatário exclusivo o Estado.[183] Entretanto, com elas não se misturam.
O dever fundamental de pagar impostos é autônomo em relação aos direitos fundamentais, contrariamente aos deveres fundamentais associados a direitos. Pertence aos “deveres imediatamente decorrentes da própria ideia de Estado como comunidade política e que não podem, por isso, deixar de ser considerados fundamentais, independentemente de sua consagração expressa com esse nome”.[184]
Os deveres fundamentais, independente da categoria a qual pertençam – autônomos ou associados a direitos –, não são aplicáveis se não expressos constitucionalmente, diferentemente dos direitos fundamentais. Estes apenas são reconhecidos pelo legislador constituinte, aqueles, ao invés, devem ser criados a fim de que possam ser cobrados.
o facto de o reconhecimento e consagração constitucional dos deveres ter por função, não apenas estabelecer o seu fundamento jurídico, mas também limitar as intervenções dos poderes públicos (ou outros) na esfera jurídica dos indivíduos, assim se valorizando os aspectos garantísticos da constituição: é que, um tal reconhecimento e consagração específicos acabam por evitar que funcione uma cláusula geral de deverosidade social que, de outro modo, poderia muito bem ser chamada a actuar.[185]
Sob uma perspectiva histórica, os deveres fundamentais podem ser divididos conforme o seu conteúdo: cívico-político; e econômico, social e cultural. Aqueles, deveres clássicos, comprometidos com a existência e o funcionamento do Estado Moderno, estes, modernos, adquiridos pelo Estado Social e relacionados ao empenho de cada cidadão na promoção ou fomento de determinada sociedade.
Interessante questão levantada por Casalta Nabais postula se há a necessidade de que cada dever fundamental deve ter um específico suporte constitucional, ou não, se é suficiente uma cláusula geral capaz de suporta tanto os deveres constitucionais quanto os extraconstitucionais. A Constituição Federal brasileira de 1988, apesar de não trazer expresso o dever fundamental de pagar impostos, permite que ele seja deduzido, porque implícito, do sistema, eis que quando trata dos direitos e garantias fundamentais, traz em seu capitulo I “dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Uma vez reconhecidos os direitos dos contribuintes, consubstanciados no capítulo constitucional destinado ao Sistema Tributário, como direitos fundamentais e, portanto, como cláusulas pétreas, inegável que reconhecido também deveres fundamentais tributários, em especial, o de pagar impostos, decorrente da cidadania social.
Rechaça-se o dever de pagar impostos calcado na ideia de deverosidade fiscal, porém se permite que ele esteja implícito nos princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil.
Frente ao exposto, não se põe em xeque que a todos está designado um dever de pagar impostos na medida da sua capacidade contributiva individual, reflexo imediato da noção de cidadania social.
Uma cidadania que, embora de um lado, implique que todos suportem o Estado, ou seja, que todos tenham a qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar impostos na medida da sua capacidade contributiva, de outro, impõe que tenhamos um Estado fiscal suportável, isto é, um Estado cujo sistema fiscal se encontre balizado por estritos limites jurídico-constitucionais.[186]
Ou seja, “o dever de pagar tributos surge com a própria noção moderna de cidadania e é coextensivo à ideia de Estado de Direito. Tributo é dever fundamental estabelecido pela Constituição (...) é correspectivo à liberdade e aos direitos fundamentais”.[187]
Trata-se assim de deveres jurídicos e não da soma dos pressupostos éticos da vigência da própria constituição ou de meros deveres morais, o que naturalmente não impede que, para além de deveres jurídico-constitucionais, eles continuem a ser o que, por via de regra, já era, antes da sua integração no direito (e portanto na constituição), deveres morais.[188]
O dever fundamental de pagar impostos não é apenas o modo de se efetivar os direitos sociais prestacionais, mas também de garantir a incolumidade das denominadas liberdades negativas – direitos civis e políticos.
Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.[189]
O imposto, como dever fundamental constitucional, atribui a todos os cidadãos fiscalmente capazes o dever de contribuir para a realização dos deveres estatais, ou seja, “a nenhum membro da comunidade pode ser permitido exclui-se de contribuir para o suporte financeiro da mesma, incumbindo, por conseguinte, ao Estado obrigar todos a cumprir o referido dever”[190].
Por isso, a tributação não constitui, em si mesma, um objectivo (isto é, um objectivo originário ou primário) do estado, mas sim o meio que possibilita a este cumprir os seus objectivos (originários ou primários), actualmente consubstanciados em tarefas do estado de direito e tarefas de estado social, ou seja, em tarefas do estado de direito social.[191]