Permeando caminhos que se iniciam com a evolução do homem primitivo para o estado civil dos seres humanos, e sua consequente organização tribal, consequentemente, culminou em um consecutivo grau de desenvolvimento econômico ligado intrinsecamente à divisão da sociedade em classes que finalmente origina instituição hodierna à que denominamos “ESTADO”, o qual, necessariamente se solidifica através da transferência de parcelas individuais de poder político de cada cidadão para o Estado soberano, como condição máxime à autopreservação coletiva.
Conforme ressalta o ilustre Norberto Bobbio, segundo Thomas Hobbes, no início, o homem vivia sob o Estado da Natureza:
"no qual todos os homens são iguais, e no qual cada um tem o direito de usar a força necessária para defender seus próprios interesses, não existe jamais a certeza de que a lei será respeitada por todos e assim a lei perde a toda a eficácia. [...] Para sair desta condição é preciso criar o Estado, é preciso, portanto atribuir toda força a uma só instituição: o soberano[1]".
A partir daí, a vida em sociedade tornou-se um marco da civilização, desenvolvendo-se através de mecanismos de controle social, trilhando caminhos que permeiam desde uma simples admoestação materna às penitenciárias, escolas, círculos de amizade, tribunais e instâncias religiosas, dando início ao processo de socialização que perdurará por toda a existência humana, tendo em vista que a sociedade nos cerca por todos os lados com suas entidades socializadoras, modelando cada ser humano para conviver pacificamente em grupo.
Contudo, é óbvio que nem todos os participantes deste imenso cenário social seguem as regras do jogo (diga-se: regras sociais, estatais, etc.), visto que a socialização nunca é perfeita, e visando estimular os membros relutantes, entram em cena os mecanismos de prevenção e punição desses desvios, conhecidos por normas coatoras, as quais conjuntamente atuam como um aparato de controle em que o indivíduo é inibido a obedecer, mediante sério receio às penalidades advindas por meio de uma ação articuladamente contrária[2].
Com efeito, o Direito em si próprio, nada mais é do que um sistema de regras desenvolvidas a fim de possibilitar a convivência humana em sociedade, um instrumento de socialização em última instância, subsistindo, na medida em que persiste a configuração de uma sociedade minimamente organizada, e figurando como mecanismo vital à manutenção do equilíbrio, paz e ordem social.
É a partir da normatividade que o Direito interage e difere de outros mecanismos do sistema social, conforme dizeres de Tobias Barreto[3], “o Direito é como uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade”. Um espelho da ética social traduzido por uma criação humana que transcende ao próprio homem, haja vista tratar-se de um instrumento suscetível de toda sorte, seja para uso da dominação social de um grupo sob outro, seja apenas para disciplinar a convivência pacífica entre os membros de uma mesma sociedade, mediante a prescrição e castigo ao descumprimento de determinados deveres éticos-sociais, o Direito Penal passa a exercer uma função de formação do juízo ético dos cidadãos, que delineia os valores essenciais para o convívio do homem em sua comunidade estatal.
Buscar uma solução justa entre as partes sempre foi o problema central na esfera da liberdade humana, posto que a vida em sociedade se torna perfeitamente impraticável sem um conjunto de normas jurídicas que discipline as relações humanas. As normas de direito são sublimes ao equilíbrio da sociedade, pois relativizam as tensões sociais advindas dos conflitos interindividuais ou intergrupais por meio de uma solução jurídica (uma sanção organizada e incondicionada, das quais são desprovidas as demais).
Assim, exsurge o Direito Penal, com a finalidade de preservar e defender, protegendo, assim os bens jurídicos mais importantes para a vida em sociedade. Note-se que esse ramo do Direito se difere das demais instituições sociais devido ao seu caráter de controle formal e normativo, exercido por meio de um conjunto de normas criadas previamente sob o prisma do princípio da legalidade. Em outras palavras, um mecanismo de pacificação social e de manutenção da ordem que media o eterno diálogo entre a segurança da sociedade e a liberdade do cidadão, imprimido “o reflexo da moral de um povo[4]”.
Como instrumento de dominação, cabe ao Direito Penal por meio de suas normas, a substância do controle social através da segregação do indivíduo transgressor e da tipificação das figuras delituosas, consideradas mais nocivas à vida em agrupamento atuando na proteção dos bens jurídicos eleitos como substanciais no seio dessa sociedade, pois, caso houvesse a certeza ao respeito da vida, honra, integridade física e demais bens jurídicos, não seria necessário à existência de um acervo normativo punitivo.
O emérito jurista Fernando Capez esclarece, com inteligência, essa concepção do Direito Penal.
“O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em conseqüência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação[5]”.
Tendo em vista que a violência é inerente ao próprio homem e a história do Direito Penal é a própria história da humanidade, o Direito Penal tornou-se um instrumento útil e necessário para manter a violência em níveis toleráveis, sem olvidar-se das garantias individuais mínimas próprias ao Estado Democrático de Direito.
Com arrimo, Francesco Carrara sentencia que o delito constitui “a infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso[6]". Diante dessa perspectiva, o delito pode ser entendido como um comportamento contrário à ordem social, dotado de caráter tão prejudicial, a ponto de tornar necessária uma repressão: um combate através da sanção penal.
Toda lesão aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, de fato, culmina em um resultado indesejado. Porém, isso não significa que essa ação ofensiva seja sempre censurável. A reprovação está entrelaçada não apenas com o desvalor do evento, mas, acima de tudo, com o comportamento consciente ou negligente de seu autor. Assim agindo, lastreia-se na voluntariedade da conduta humana, na capacidade do homem de agir mediante o cume de um objetivo final[7].
Em verdade, o Direito Penal cifra-se como um organismo fiscalizador e controlador das relações sociais seguindo de forma contínua aos desejos da população devido à dinâmica complexidade humana. Assim, como processo de adaptação social, o direito vem sofrendo variações no tempo e espaço, em face da mobilização social. Desse modo, com o constante avanço tecnológico, aliado às contínuas mudanças sociais, exsurgem novos anseios à sociedade que trazem consigo um novo aparato de bens jurídicos a serem tutelados, culminando na necessidade de renovação estatal para que se torne suficiente à efetivação e proteção dos direitos conquistados, fazendo com que o Direito Penal seja cada vez mais utilizado como instrumento de controle social. (grifo nosso)
Nesse ínterim, na medida em que as situações conflitivas e os anseios sociais mais graves não encontram amparo na ética social (controle social informal - atual enfraquecimento dos laços familiares, comunitários e coletivos), bem como não se socorrem aos demais ramos do Direito, e diante a mínima, digamos quase alguma, atuação do Poder Público frente às modernas exigências da sociedade, todo esse arcabouço de situações-problema tem suas “soluções” reconduzidas ao âmbito penalista, desvirtuando-se a missão primordial do Direito Penal de gerar consenso e reforçar a comunidade, recaindo meramente para mecanismo de controle social formal, que tem como resultado uma carga penal simbólica, fruto de uma inflação legal penal sem precedentes, que inverte funções legítimas do sistema.
[1]{C} BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. SP: Ícone, 1995, p. 35.
[2]{C} CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 5ª ed. RJ: Impetus, 2009, p. 45/48.
[3]{C} BARRETO, Tobias. Introdução ao Estudo do Direito. SP: Landy, 2001, p.34.
[4]{C} MORAES. Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: A Terceira Velocidade do Direito Penal. Curitiba: Juruá Editora. 2009, p. 23.
[5]{C} CAPEZ. Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12ª ed. Vol. 1SP: Saraiva, 2008, p. 01.
[6]{C} CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. V. I. Campinas: LZN, 2002, p. 59.
[7]{C} Id.: CAPEZ. Fernando, 2008, p. 02.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARRETO, Tobias. Introdução ao Estudo do Direito. SP: Landy, 2001.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. SP: Ícone, 1995.
CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 5ª ed. RJ: Impetus, 2009.
CAPEZ. Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12ª ed. Vol. 1SP: Saraiva, 2008.
CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. V. I. Campinas: LZN, 2002.
MORAES. Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: A Terceira Velocidade do Direito Penal. Curitiba: Juruá Editora. 2009.