O entendimento sobre o que seja uma sociedade empresária perpassa por diversos institutos jurídicos, pois é evidente sua ambivalência. Diversas são as abordagens doutrinárias e inclusive do próprio legislador para firmar o seu conceito. Contudo, uma divisão simples inicial em destrinchar o que seria sociedade e o que seria a atividade empresarial, facilita o estudo para familiarizar-se com o termo e encontrar um conceito de sociedade empresária.
Ao partir de dois elementos legais, previstos no Código Civil Brasileiro de 2002, é possível observar que o artigo 966 nos apresente o conceito do que seria o empresário e, já em seu artigo 981, aprecia o entendimento do que deve ser considerado uma sociedade. Logo, a comunhão destes dois artigos apresenta a ponderação do que é uma sociedade empresária, tanto assim, que a conclusão lógica é igualmente prevista na lei civil, estampado no seu artigo 982.
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.
Assim, de forma simplificada, o conceito de sociedade vem sendo firmado como aquela pessoa jurídica, não estatal e não simples, e distinta das previstas no art. 44 do Código Civil, que explora em seu objeto a atividade econômica sob a forma de empresa[1]; ou, quando duas ou mais pessoas congregam capital e trabalho para o empreendimento de atividade empresarial[2]; e, ainda, tem-se como sociedade empresária a pessoa jurídica de direito privado, implementada por um contrato, cujo objeto social é a exploração de atividade empresarial, ou que, independente do seu objeto, adota a forma societária por ações[3].
Porém, muito além disso, é necessário compreender o conceito de sociedade empresária por outro ângulo, com o qual se passará a trabalhar.
No direito societário, um dos aspectos de maior dificuldade de compreensão é a concepção sobre a sua personalidade jurídica. Isto é, a necessária separação que existe entre aqueles que constituem uma sociedade e a sociedade formada por esta união propriamente dita. As relações jurídicas existentes com a sociedade, tais quais suas obrigações e deveres, devem ser distinguidas daqueles que a compõem. Ora, em que pese muitos se declararem empresários, quando não o forem na forma individual, são, em verdade, somente administradores ou um simples sócio de uma sociedade empresária que com ele não se confunde.
Melhor elucidação surge quando observamos a seguinte situação hipotética:
Bruno, com habilidades mecânico-automotivas, pretende desenvolver um negócio nesta área, porém, não possui condições financeiras e conhecimento na área administrativa. Caio, por sua vez, é um administrador e com uma reserva de capital, porém, sozinho, não possui um objeto para explorar e multiplicar seu capital. Tanto Bruno quanto Caio são pessoas físicas, com patrimônio próprio, com suas próprias responsabilidades (direitos e deveres). Bruno e Caio percebem que um tem exatamente o que o outro precisa e, juntos, poderão explorar a atividade econômica se complementando. Assim, acertam entre eles a criação de um negócio. Alugam um espaço, aplicam valores mínimos para compra de material e um primeiro fluxo de caixa e distribuem suas funções, contratando entre eles a responsabilidade de cada um, a forma com que vão distribuir os ganhos e, inclusive, a possibilidade de um salário mensal. Para este negócio, dão o nome de oficina mecânica “Dois Amigos”. Ora, podemos observar que existe agora a pessoa do Bruno, a pessoa do Caio e uma terceira pessoa que é a reunião de vontades, mas mesmo assim distinta deles: a oficina “Dois Amigos”. Agora, assim como Bruno e Caio têm seu próprio patrimônio, com deveres e obrigações que não se comunicam entre eles – cada um tem sua casa, suas contas, seus ganhos, etc. – , a nova oficina mecânica também terá patrimônio próprio, e passará a ter direitos e obrigações que lhe serão próprias – a conta do aluguel é da sociedade; o pagamento do maquinário é responsabilidade da sociedade, os créditos são da sociedade, quem irá contratar funcionários é a sociedade, etc.. Por isso, Caio é diferente de Bruno, que é diferente da Oficina, que é diferente de Caio.
Desta maneira, é possível conceber que a relevância das sociedades empresárias encontra um de seus maiores valores na possibilidade de viabilizar negócios, iniciativas ou atividades que o homem de forma individual não concretizaria. E, consequentemente, fazer criar um novo interlocutor para estas relações jurídicas, uma nova pessoa[4], que não será natural, mas jurídica (nasce em razão de uma criação jurídica), e que poderá assumir suas próprias obrigações e adquirir direitos, que lhes serão exclusivamente competentes.
A sociedade empresária é a titular (quem responde) por direitos e deveres, não se confundindo com seu estabelecimento, nem com a empresa, nem com a firma e, sequer, com os sócios, trata-se de individualidade própria reconhecida pelo Estado e distinta das pessoas que a compõem[5]. Existem casos, ainda, que sequer os sócios administram a sociedade empresária, deixando a função a cargo de terceiros, o que demonstra a inexistência objetiva pelos atos e resultados nas atitudes que possam ser individualizadas.
Neste sentido, surge a questão da importância da individualização de condutas, da identificação dos sujeitos, as funções de cada agente e, igualmente, o nível de conhecimento e responsabilidade por atos e resultados. Porém, o Estado, desincumbindo-se da obrigação de investigar e buscando uma simplificação que não cabe ao processo penal, deu guarida à existência da denúncia genérica (ou do processo penal ocupando um lugar o qual a lei já prevê como sendo uma fase que o antecede, das investigações que caberiam a uma fase preliminar: o inquérito policial).
A denúncia genérica, por ser uma situação jurídica não prevista legalmente, apreende uma atenção cogente, pois retrata um tema intimamente relacionado à análise da particularização de condutas, principalmente a consideração se esta minúcia seria necessária ou não, quando do início do processo penal.
A denúncia genérica aufere maior relevância de seu existir nos crimes ditos modernos, quando a complexidade no entorno do cometimento delituoso dificulta a averiguação da conduta e participação dos agentes em suas individualidades e, assim, por certos momentos obstando, inclusive, o alcance dos seus mentores. Neste contexto, surgem as denúncias genéricas, pelas quais o Ministério Público imprime em sua peça acusatória, sem maior comprometimento descritivo – e, consequentemente, probatório, – uma forma de generalização de um determinado fato criminoso a dois ou mais agentes; ou, em outras palavras, uma denúncia passa a ser oferecida contra vários réus sem que haja uma individualização de suas condutas frente ao fato criminoso que é tido como global a todas (se buscarmos o exemplo anteriormente sugerido, “Bruno", “Caio” e, em alguns casos inclusive, a “oficina Dois Amigos”, mesmo sendo pessoas distintas, seriam réus de um processo penal somente em razão do contrato de sociedade).
Entretanto, no que concerne à denúncia, esta evolução para denúncia genérica é uma interpretação e criação jurídica modernas. Ora, mesmo em seu conceito tradicional, a denúncia é tida como a
[...] exposição, por escrito, de fatos que constituem em tese um ilícito penal, ou seja, de fato subsumível em um tipo penal, com a manifestação expressa da vontade de que se aplique a lei penal a quem é presumivelmente o seu autor e a indicação das provas a que se alicerça.[6]
Ou seja, a denúncia é uma peça, formulada pelo Ministério Público, que deverá descrever o fato criminoso, assim como identificar quem é seu provável autor, indicando os indícios desta autoria com seus elementos subjetivos (dolo, vontade, querer agir, etc.). Da mesma forma, o código de processo penal, o qual prevê em seu artigo 41 que tanto a denúncia quanto a queixa serão compostas com a exposição do fato criminoso e com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.[7] Por isso, para autores como Tourinho Filho, a denúncia deverá descrever o fato criminoso, mesmo que sem a necessidade de minúcias, contudo com uma exposição suficiente à configuração do crime e às demais circunstâncias que cingem o fato, “[...] não só para facilitar a tarefa do Magistrado, como também para que o acusado possa ficar habilitado a defender-se, conhecendo o fato que se lhe imputa.”[8] Nas palavras de Aury Lopes Jr., retratando o direito de defesa, quando este é atingido por uma sentença incongruente, gera um inegável estado de indefesa pela sua surpresa, pois “[...] subtrai do réu a possibilidade de defender-se daquilo que foi objeto da decisão, mas que não estava na acusação.”[9] O autor segue:
Não aceitaremos mais o princípio do in dubio pro societate como inspirador do oferecimento da denúncia quando o promotor estiver na dúvida se oferece ou não a petição inicial e, portanto, o ato de recebimento da peça exordial deve estar lastreado pelo fumos comissi delicti que irá autorizar sua fundamentação.[10]
Isso, pois, o objeto do processo penal é a pretensão acusatória, sendo esta vista como a faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz.[11] Evidente que a “[...] compreensão da complexa estrutura do objeto do processo penal é fundamental para o estudo do princípio ou regra da correlação, como também o é para a compreensão dos limites do sistema acusatório.”[12]
No tocante à individualização das condutas, pelo referido artigo 41, quando da denúncia, obrigado está o Ministério Público a fixar a relação de causalidade entre o fato criminoso e o suposto culpado, e “[...] ao fazê-lo deve individualizar a pessoa do acusado, a fim de saber-se contra quem será instaurado o processo.”[13], uma vez que o ato de qualificar se trata de um conjunto de qualidades que individua a pessoa que é réu em um processo penal. Razões pela quais:
As circunstâncias identificatórias devem coincidir com a pessoa do verdadeiro culpado. Por isso, salvo raríssimas exceções, será temeridade indicar apenas o nome e o prenome [...] se não for possível individualizar o acusado, nem mesmo com esclarecimentos pelos quais se possa identificá-los, não pode o Ministério Público apresentar denúncia.[14]
Nesse sentido, não pode o Ministério Público, eximindo-se do dever de descrever as condutas do acusado frente às circunstâncias do fato delituoso, imputar a diversos sujeitos a autoria de um fato típico, pela simples justificativa de serem sócios ou administradores de uma determinada sociedade empresária. Doutrinadores, entre estes Paulo Rangel, defendem que a ausência de qualquer um dos elementos da acusação pode trazer falsa percepção da realidade fática, autorizando o juiz, por sua inépcia, indeferi-la, isto, pois, em nome da dignidade da pessoa humana, não pode o cidadão ser processado sem que tenha conhecimento das razões integrais da persecução penal.[15]
Aury Lopes Jr. discorre sobre os casos dos crimes complexos, nos quais alguns acusadores recorrem à denúncia genérica quando estão com dificuldades de descrever as circunstâncias e as condutas de cada agente, nas ocorrências que envolvem concurso de pessoas e de delitos. Para o autor, tal contexto é inadmissível, uma vez que incumbe à investigação preliminar esclarecer (ainda que em grau de verossimilhança) o fato delitivo, buscando individualizar as condutas de modo que a denúncia seja determinada e certa.[16] O autor pontua, ainda, que a jurisprudência brasileira oscila muito, predominando o entendimento de que, em situações excepcionais,
[...] diante da gravidade e complexidade objetiva (situação fática) e subjetiva (número de agentes) do fato, deve-se admitir a denúncia genérica, que não individualize plenamente a conduta de cada agente, desde que não inviabilize o direito de defesa (eis o problema).[17]
Prado enfatiza que a persecução penal não pode ser instaurada de forma legítima se não houver o atendimento mínimo de direitos e garantias constitucionais.[18] Salienta, ainda, a necessidade de prestigiar a configuração normativa que melhor promova tais garantias, destacando, sobre o momento processual de recebimento da denúncia, que o contraditório e a ampla defesa
[...] serão assegurados de forma mais efetiva ao se permitir que o acusado se defenda de acusações não fundadas, ou, quiçá, injustas, antes de o magistrado proferir a decisão de recebimento da denúncia ou queixa.[19]
Isto, pois, nas palavras do autor:
Deve o magistrado determinar a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias, caso não a rejeite a denúncia liminarmente [...] Assim, se o próprio juiz sequer está seguro de que há indícios de autoria, a decisão que recebe a denúncia é inválida e há necessidade de solucionar a dúvida, concluindo a instrução que a própria lei estabelece.[20]
Neste sentido, ilustra a dificuldade do recebimento da denúncia por sua forma menos particularizada, pois, sem o convencimento de haver indícios de autoria, regem as premissas que a dúvida está em benefício do réu, ou seja, sua condição de inocência prevaleceria. No entanto, a título de ilustração, colaciona a decisão do Supremo Tribunal Federal:
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem se firmado no sentido de que a denúncia deve conter, ainda que minimamente, a descrição individualizada da conduta supostamente praticada por cada um dos denunciados nos delitos societários, sendo certo que o atendimento, ou não, do art. 41 do Código de Processo Penal, há que ser analisado caso a caso.[21]
Cabível expor que, pela presente decisão, ficou entendido que o processo penal será utilizado como meio de dilação probatória, visando a reconhecer ao acusado um direito futuro de sobrevir momentos para sua defesa. Contudo, partindo do estado de inocência, é questionável se a aceitação de uma denúncia na forma genérica, no caso de silêncio do réu durante o processo (não produção de prova de não culpa), irá autorizar sentenças igualmente genéricas, com base na denúncia. Existem votos que reconhecem a precariedade de uma denúncia de forma genérica quando a acusação sequer tenta individualizar a conduta de cada parte. Mesmo assim, como no próprio julgado em ilustração, não são unânimes, senão:
Imputação indiscriminada da autoria de ofensas contidas em panfleto atribuído à Diretoria de um sindicato a todos os seus membros, sem qualquer esforço de identificação de sua participação no fato: inaplicabilidade ao caso da jurisprudência que, em determinadas hipóteses de crimes societários, tem transigido com a exigência de individualização das imputações na denúncia: HC concedido por empate na votação.[22]
Salienta-se, o Habeas Corpus somente foi concedido por uma situação de empate na votação, o entendimento ficou dividido entre ser ou não ser reconhecida a denúncia ‘indiscriminada de autoria’. Outra situação:
Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. [...] Necessidade de individualização das respectivas condutas dos indiciados. [...] No caso concreto, a denúncia é inepta porque não pormenorizou, de modo adequado e suficiente, a conduta do paciente.[23]
O abrandamento na descrição das condutas de cada sócio nos crimes em ambientes societários surge com a prática jurídica, com os casos em concreto, pois, conforme restou pontuado, a legislação em seu artigo 41 vem sendo interpretada diferentemente. Logo, uma vez que pela doutrina e pela lei direciona-se mais em defesa de uma particularização de condutas e detalhamento dos fatos, com os indícios de autoria e relação causal, resta analisar de que sorte vem sendo os limites do abrandamento na descrição da conduta de cada sócio pelos julgados.
Por meio do Julgado do Supremo Tribunal Federal, no qual o relator Joaquim Barbosa, em seu voto no HC 86879 (STF), discorre que quanto à descrição da conduta a jurisprudência firma entendimento de que, em crimes societários, não se faz necessária a individualização pormenorizada de condutas, bastando os elementos suficientes para a configuração das condutas típicas imputadas. Contudo, a fragilidade de tal orientação se evidencia no próprio julgado, quando a Ministra Ellen Gracie considera que a denúncia é inepta, pois não descreve qualquer fato típico que possa justificar seu recebimento, sendo de generalidade flagrante e manifesta, questionando, inclusive, do que deverá se defender o acusado. No mesmo sentido e no mesmo julgado, Celso de Melo enfatiza que a formulação de acusações genéricas, em delitos societários, sem a descrição, na denúncia, do vínculo causal entre o comportamento imputado ao agente e a prática delituosa a este atribuída, culmina por consagrar uma inaceitável hipótese de responsabilidade penal objetiva, com todas as gravíssimas consequências que daí pode resultar.
O voto do ministro Haroldo Rodrigues, relator do Habeas Corpus nº. 62.786-SP (STJ), ressalva que a jurisprudência tem procurado abrandar o rigor do disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, dada a natureza dessas infrações, quando nem sempre é possível, na fase de formulação da peça acusatória, operar uma descrição detalhada da atuação de cada um dos indiciados, admitindo-se, em consequência, um relato mais generalizado do comportamento que se tem como violador do regramento de regência. Contudo, o Ministro adverte, não se tem admitido, pelo evidente constrangimento que acarreta, denúncia de caráter absolutamente genérico, sem ao menos um breve detalhamento da atuação de cada um dos indiciados, visto que inviabiliza o exercício amplo do direito de defesa, não se aceitando imputações de autoria unicamente por serem sócios-proprietários da empresa. Não obstante, o relator Og Fernandes, quando do julgamento do Habeas Corpus n.º 16.244 – PR (STJ), defendeu que a denúncia, quando expõe o fato delituoso com clareza e refere suas circunstâncias, ainda que não particularize de modo expresso a conduta de um dos acusados, não deve, por esse motivo, considerar-se inepta ou passível de causar cerceamento de defesa. Justifica, em hipótese de crime marcado por pluralidade de agentes, é dispensável a descrição pormenorizada das condutas, bastando que se demonstre a existência de liame entre a conduta do agente e o fato delituoso que lhe é imputado.
Joaquim Barbosa, no Habeas Corpus 98.840 (STF), acentuou que da denúncia basta a descrição dos fatos típicos imputados ao paciente, os indícios de materialidade e autoria, nos termos do os artigo 41 do Código de Processo Penal, como requisitos suficientes à plausibilidade. Pela leitura do Habeas Corpus 96.100 – SP (STF), se observa pelo voto da relatora Cármen Lúcia, que já se chegou a considerar, nos crimes societários, não ser possível a mera invocação, na denúncia, de que os denunciados constam no quadro societário da empresa. No entanto, a análise do artigo 41 deve ser feita caso a caso, e a Ministra ressalta ser suficiente para aptidão da denúncia, nos crimes societários, a indicação de que os denunciados seriam responsáveis, de algum modo, pela condução da sociedade, e que esse fato não fosse, de plano, infirmado pelo ato constitutivo da pessoa jurídica. Em outro voto, do mesmo julgado, Ricardo Lewandowski, salienta a necessidade de assegurar a ampla defesa quando do atendimento do artigo 41 do Código de Processo Penal.
Em acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Habeas Corpus n.º 70009885708), o relator Gaspar Marques Batista aponta que a peça acusatória que imputa conduta passível de capitulação penal, definindo a autoria e descrevendo os fatos delitivos de modo suficiente a permitir o pleno exercício do direito de defesa, não é inepta. Ressalta, ainda, no que tange a crimes societários, o fato da jurisprudência majoritária se inclinar no sentido da descrição dos fatos poderem dar-se de forma genérica, em virtude da difícil individualização inicial das condutas, remetendo-se para a instrução criminal a apuração completa. Adverte Victor Luiz dos Santos Laus, do Tribunal Regional Federal da Quarta Região (Apelação Criminal n.º 0001923-28.2005.404.7214/SC), nem sempre ser possível fazer a perfeita individualização da conduta de cada um dos acusados quando do oferecimento da peça acusatória, sendo que, nestes casos, não se pode admitir que o Ministério Público se insurja contra todos os sócios ou diretores da empresa, mas é viável, em contrapartida, que lance a inicial contra aqueles que, em razão de suas atribuições e poder de comando, possuíam a capacidade de praticar o crime.
O que se denota, nos diversos julgados, é a necessidade, mesmo que mínima, de o acusador descrever a conduta do imputado, sendo que, em sua grande maioria, a simples menção ao nome ou situação de ser sócio de uma empresa vem sendo rechaçada. Destacam que a denúncia genérica que não oportuniza a ampla defesa e o contraditório é inepta, o que representa, em uma análise maior, a falta de estrutura pré-processual. Neste sentido:
A uma investigação deficitária seguem-se denúncias genéricas, sem clareza, objetividade, beirando ao abuso do poder de acusar, não raras vezes calcadas na inutilidade superveniente, em face da ausência de ofensividade ou na extinção da punibilidade, mesmo com o advento de um juízo condenatório. Estas, são recebidas sem análise da existência ou não dos requisitos legais a sua viabilização, em decisões automatizadas, sem motivação fática e/ou jurídica.[24]
No entanto, nesta zona gris e vaga em que as manifestações que demonstram a dificuldade em individualizar as condutas dos sócios não deveriam justificar um processo precário, seria o momento do acusador, quando de sua pretensão, apresentar elementos e fundamentos que não fizessem da peça acusatória genérica, mas de diversos acusados. Observa-se que o próprio termo ‘denúncia genérica’ apresenta, em sua forma simbólica, um direito penal objetivo. A pretensão acusatória particularizar cada réu, até mesmo porque a cada um é assistido um direito de defesa e, nos casos de condenação, uma medida de pena conforme sua participação. Neste sentido, particularizar o réu não pode ser somente lido como nomeá-lo, mas fazer uma relação causal, mesmo que em nível de indícios, sobre sua participação para ocorrência do ilícito.
NOTAS:
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
[2] BRUSCATO, Wilges. Manual de direito empresarial brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
[3] FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
[4] Difere-se a pessoa jurídica da pessoa natural, a primeira por ser uma convenção fictícia adotada pelo direito e a segunda por ser aquela que decorre da ordem natural do homem, no entanto, o direito reconhece a estas duas pessoas o mesmo conceito de personalidade, isto é, ambas tem uma qualidade jurídica, que se revela como condição preliminar, para que possam contrair obrigações e exercer direitos. (in GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. 12. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2014. pp. 94-95).
[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. 12. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 217.
[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 14. ed. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 2003. p.125.
[7] BRASIL. Artigo 41 do Decreto-lei n.° 3.689, de 03 de outubro de 1941. Dispõe sobre o Código de Processo Penal. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Rio de Janeiro RJ, 03 out. 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em 22 out. 2013.
[8] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 5. ed. v. 1. São Paulo: Jalovi, 1977. 4 v. p. 379.
[9] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed., v. 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 2 v. p. 361.
[10] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 18 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 535.
[11] LOPES JR., op. cit., p. 359.
[12] LOPES JR., loc. cit.
[13] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 5. ed. v. 1. São Paulo: Jalovi, 1977. 4 v. p. 380.
[14] Ibid., p. 381.
[15] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 18 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 535.
[16] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed., v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 2 v. p. 396.
[17] LOPES JR., loc. cit.
[18] PRADO, Geraldo. Em torno da jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 323.
[19] Ibid., p. 322.
[20] Ibid., p. 323.
[21] HC 96100, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009, DJe 148 DIVULG 06-08-2009 PUBLIC 07-08-2009 EMENT VOL-02368-03 PP-00623.
[22] HC 81828, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 10/09/2002, DJ 22-08-2003 PP-00041 EMENT VOL-02120-35 PP-07182.
[23] HC 86879, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 21/02/2006, DJ 16-06-2006 PP-00028 EMENT VOL-02237-02 PP-00278 RTJ VOL-00199-01 PP-00352 LEXSTF v. 28, n. 332, 2006, p. 485-504.
[24] GIACOMOLLI, N. J. Resgate necessário da humanização do processo penal contemporâneo. In: WUNDERLICH, Alexandre Lima (Org.). Política criminal contemporânea: criminologia, direito penal e direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. pp. 331-344.