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A não obrigatoriedade da filiação partidária

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Agenda 07/10/2014 às 10:16

4      A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS, A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A FILIAÇÃO PARTIDÁRIA OBRIGATÓRIA.

O artigo 23, 1, b[27], do Pacto de San José da Costa Rica, positiva os direitos políticos fundamentais do ser humano de votar e ser votado. O inciso 2 do mesmo artigo, por sua vez, vaticina as únicas (mediante o uso do advérbio “exclusivamente”)  maneiras pelas quais a legislação interna de um Estado-parte pode regular o exercício das prerrogativas acima, a saber: “por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.”[28]

Como foi dito no capítulo precedente, a aludida convenção foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, e promulgada em 06 de novembro do mesmo ano através do Decreto nº 678, com a única reserva feita (art. 2º) em relação às disposições contidas nos artigos 43 e 48, d, no sentido de que as visitas e inspeções in loco da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) não prescindem da anuência expressa do Estado. Desta feita, todos os outros dispositivos do documento em análise foram aceitos, passando a integrar, assim, de alguma maneira, o ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, inclusive, a redação do art. 1º, do Dec. nº 678/92, in verbis:

Art. 1º A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.

Conquanto o Brasil tenha ratificado e promulgado a Convenção nos termos acima, a legislação interna possui disposições reguladoras dos direitos fundamentais do homem-cidadão (SILVA, 2010) que vão de encontro à obrigação internacionalmente assumida. Antes de nos aprofundarmos nesse problema, entretanto, devemos tecer alguns comentários.

4.1    A constitucionalidade do Pacto de São José da Costa Rica.

O próprio nome do instrumento – Convenção Americana sobre Direitos Humanos – já espanca qualquer dúvida que porventura poderia surgir quanto aos direitos que carrega dentro de si: os direitos humanos ou os direitos fundamentais do homem (SILVA, 2010, p. 178). Logo, é um tratado internacional sobre direitos humanos de qual o Brasil é parte.

Sucede que o aludido pacto foi ratificado e promulgado no ano de 1992, antes, portanto, de haver sido inserido no art. 5º da Constituição Federal de 1988, mediante a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, o parágrafo 3º; o qual equiparou às emendas constitucionais aqueles tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos e que forem aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, pelo voto de três quintos dos seus respectivos membros. Destarte, fica a dúvida quanto à sua força normativa no ordenamento jurídico pátrio.

Explicamos no primeiro capítulo deste estudo que existem atualmente em nosso país duas grandes correntes de pensamento que se propõem a solucionar a questão: a da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos não aprovados de acordo com as novas formalidades demandadas pelo § 3º, e a de sua constitucionalidade.[29]

A primeira sagrou-se vencedora[30] no pleno do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343; e embora reconheça o caráter especial da espécie de tratados em comento, os coloca em um patamar abaixo da Constituição Federal, mas acima de todo o restante da legislação interna infraconstitucional. Antagônica à tese da supralegalidade, a da constitucionalidade das convenções sobre direitos humanos sustenta, logicamente, o seu status constitucional, de modo que teriam uma relação de horizontalidade com a Carta Política de 1988, e não vertical, como sugere a tese anterior.

Comungamos do entendimento de que aos pactos internacionais de direitos humanos deve ser conferida a força de norma constitucional, não no sentido de que estão de acordo com todas as disposições de nossa Lei Maior, mas sim no de que a integram; pelo que afirmamos que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) tem status constitucional, e os direitos e garantias nela inseridos devem ser totalmente observados por nosso ordenamento jurídico.

Ora, vimos que o Pacto de São José da Costa Rica elenca direitos e garantias fundamentais do ser humano, os quais são partes integrantes de nossa Carta Política mediante  interpretação a contrario sensu (PIOVESAN, 2012, p. 108) do seu art. 5º, § 2º, o qual prescreve que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes [...] dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Por conseguinte, se não se excluem referidas prerrogativas, estas são incluídas, englobadas pela normativa constitucional. Ademais, se são admitidas pela Lei Maior, passam a ostentar o caráter de normas materialmente constitucionais. Com efeito, essa materialidade advém já do art. 1º, III, da Carta Política, uma vez que, como mencionado anteriormente nesse estudo, ao dispor ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, atribuiu aos direitos e garantias que visam sua concretude o caráter de normas materialmente constitucionais. Temos, ainda, que a interpretação dos dispositivos constitucionais acima, elevando ao nível constitucional aquelas prerrogativas e garantias consubstanciadas no Pacto de São José da Costa Rica; estaria a lhes garantir a máxima eficácia (PIOVESAN, 2012, p. 115) porquanto “a nenhuma norma constitucional se pode dar interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser”; e que por enquadrarem as normas contidas no aludido instrumento, direitos e garantias fundamentais, têm aplicação imediata por força do quanto disposto no art. 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988.

Em sentido contrário àqueles que rechaçam a constitucionalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos, e, portanto, da Convenção sobredita; sob o argumento de que seria impossível lhes conferir o caráter de norma constitucional, porquanto não observaram as formalidades constantes do art. 5º, § 3º; há de se frisar que não o fizeram porque o procedimento exigido não era sequer previsto. Na verdade o rito demandado pelo multicitado § 3º tão somente reforçou a materialidade constitucional dos acordos sobre direitos humanos, garantindo um plus àqueles que o observarem – a equivalência a uma emenda constitucional, e, portanto, o seu caráter não só material, mas também formalmente constitucional. Na prática as duas “espécies” de documentos internacionais (materialmente constitucionais e material e formalmente constitucionais) implicam no mesmo resultado – os preceitos neles consubstanciados fazem parte de nossa Constituição, e, por conseguinte, deverão nortear todo o ordenamento jurídico.

A diferença que a formalidade acarreta diz respeito tão somente à hipótese de supressão dos direitos humanos inseridos nos pactos. Explicamos. As prerrogativas e garantias constantes de documentos internacionais equivalentes às emendas constitucionais, por se tratarem de direitos e garantias individuais, jamais poderão ser afastadas por nova emenda constitucional, consoante dicção do art. 60, § 4º, IV, da CF/88. Mais ainda, se eventualmente o Chefe do Executivo proceder à denúncia[31] destes, o ato não surtirá quaisquer efeitos sobre os preceitos nele inseridos, porquanto a sua introdução no ordenamento jurídico pátrio se deu “não apenas pela matéria que veiculam, mas pelo grau de legitimidade popular contemplado pelo especial e dificultoso processo de sua aprovação.” (PIOVESAN, 2012, p. 142). No caso do Pacto de San José da Costa Rica, por possuir tão somente o caráter de norma materialmente constitucional, embora os direitos humanos nele constantes também configurem cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, CF/88) – não podendo, assim, ser abolidos mediante emenda constitucional posterior –, é este passível de denúncia, pelo que não mais fariam parte do direito interno suas disposições, afastando-se, assim, a obrigação jurídica de serem observadas. A Convenção, todavia, não foi denunciada, de modo que os direitos e garantias fundamentais por ela trazidas devem ser protegidos e efetivados pelo nosso ordenamento.

Desta feita, explicada a constitucionalidade do Pacto de San José da Costa Rica, 03 (três) situações podem ocorrer no tocante à relação entre os direitos fundamentais do homem que carrega, e os previstos na Constituição de 1988: a) pode haver uma coincidência entre os direitos garantidos pelos dois diplomas legais; b) o documento internacional pode disciplinar novos direitos não previstos pela Constituição, completando-a; e c) pode haver um conflito entre os direitos e garantias positivados nos dois.[32] É dessa situação que trataremos a seguir.

4.2    A Constituição Federal de 1988 x a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969.

Com efeito, existem diversos conflitos em se tratando da relação entre as normas de direitos humanos carreadas no bojo dos documentos internacionais, e aquelas insculpidas em nossa Lei Maior. Limitaremo-nos, contudo, ao conflito existente entre o Pacto de São José da Costa Rica e a Carta Magna no que diz respeito aos direitos políticos trazidos em seus corpos.

4.2.1   O(s) conflito(s).

O Pacto de São José da Costa Rica, como já frisamos anteriormente, estatui em seu art. 23, 1, b, os direitos políticos positivos fundamentais que todo cidadão deverá ter “de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores.” O seu inciso 2 elenca, ademais, as excepcionais maneiras de que o Estado poderá se valer em seu direito interno para regular o exercício dos direitos supracitados: idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação proferida por juiz competente, em ação penal.

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Na Constituição Federal Republicana, os direitos políticos de votar e ser votado, bem como as suas limitações, estão disciplinados nos artigos 14 e 15; e o confronto de uma destas com as normas do parágrafo anterior é que será analisado abaixo.

Em relação ao direito de sufrágio ativo, ou seja, o direito de votar, a nossa Lei Maior exige tão somente o alistamento eleitoral, mediante o qual a pessoa se torna eleitora e titular dos direitos da cidadania. No § 2º do art. 14, entretanto, o constituinte originário restringiu de duas maneiras a possibilidade de uma pessoa adquirir a qualidade de eleitora em nosso país: se não for nacional (nato ou naturalizado), ou se tratar-se de conscrito (aquele que presta serviço militar obrigatório). Quanto à exigência da nacionalidade, temos que está em perfeita harmonia com uma das hipóteses do art. 23, 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Já no que diz respeito à inalistabilidade dos conscritos, percebemos que a mesma não consta entre os motivos estatuídos no aludido dispositivo como um dos que autorizam o Estado-parte a regular o exercício dos direitos políticos, de modo que há, efetivamente, um conflito entre os dois documentos. Não é esse, contudo, o problema alvo do presente estudo.

O art. 15 traz em seus incisos os casos nos quais a pessoa perderá ou terá suspensa a totalidade de seus direitos políticos, de modo que não poderá, portanto, votar ou ser eleito. O inciso I traz a situação na qual a pessoa teve sua naturalização cancelada por sentença transitada em julgado. Notamos que está de acordo[33] com o Pacto, porquanto se trata de uma limitação ao exercício dos direitos políticos por motivo de nacionalidade, o qual consta em seu art. 23, 2. O mesmo sucede com as hipóteses dos incisos II (incapacidade civil absoluta) e III (condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos), igualmente em consonância com o que preconiza a Carta.

A hipótese de perda consubstanciada no inciso IV (recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII), por outro lado, se mostra passível de discussão, pois a Carta Política não indica de que maneira ocorrerá. Sem adentrarmos na legislação infraconstitucional que cuida da matéria, podemos afirmar que deverá observar o quanto consta do inciso 2 do art. 23 do Pacto de São José da Costa Rica, sob pena de tratar-se de lei inconstitucional; de modo que entendemos que a perda dos direitos políticos pela recusa em cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa só poderá se dar através de condenação por juiz competente, em processo penal. Igualmente no que diz respeito à improbidade administrativa (art. 15, V, da CF/88), a qual, a nosso ver, carece de apuração em processo criminal para que resulte na suspensão dos direitos políticos.

Quanto à inelegibilidade absoluta consubstanciada no art. 14, § 4º, da Constituição Federal, em relação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, poderíamos discutir acerca da existência de conflito tão somente no tocante aos conscritos (inalistáveis), porquanto as inelegibilidades dos menores de 16 (dezesseis) anos (inalistáveis), estrangeiros (igualmente inalistáveis) e dos analfabetos, caracterizam modos de condicionamento do exercício dos direitos políticos referentes à idade, nacionalidade e instrução, respectivamente. Já no atinente às inelegibilidades relativas (art. 14, §§ 5º a 7º, CF/88 e art. 14, § 3º, IV, da CF/88, c/c artigos 42, parágrafo único, e 55, da Lei nº. 4.737/65, e Lei nº. 9.504/97) – por motivos funcionais, de parentesco e de domicílio –, sem adentrarmos nas razões[34] que levaram à sua instituição na Lei Maior (vez que ainda não é este o nosso objetivo), podemos observar que tão somente a que diz respeito ao domicílio se encontra consoante o Pacto sob estudo. Também não é o nosso objetivo analisar as inelegibilidades contidas na legislação infraconstitucional complementar, mas quanto a elas é necessário fazer a mesma ressalva de que deverão adequar-se aos ditames da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sob pena de sua inconstitucionalidade.

As condições de elegibilidade – requisitos que devem ser cumpridos pelo pretenso candidato para que possa efetivamente ser titular da capacidade eleitoral passiva – estão elencadas no parágrafo 3º do art. 14, ipsis litteris:

Art. 14. [...]

§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o pleno exercício dos direitos políticos;

III - o alistamento eleitoral;

IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;

V - a filiação partidária;

VI - a idade mínima de:

a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;

b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;

c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;

d) dezoito anos para Vereador.

Cotejando os motivos elencados no art. 23, 2, do Pacto de San José da Costa Rica, com o dispositivo constitucional supracitado, notamos que há uma colisão entre os dois apenas no tocante a uma das condições de elegibilidade neste enumeradas.

Quanto à condição insculpida no inciso I (nacionalidade brasileira), que nos remete às normas constantes do art. 12 da Constituição Federal, temos que a mesma está plenamente de acordo com o segundo dos motivos que traz o Pacto em seu art. 23, 2. O pleno exercício dos direitos políticos, a seu turno, significa que a pessoa não se encontra privada de seus direitos políticos (por sua perda, ou suspensão), de modo que, exceto nos casos onde a perda se deu pela recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa (art. 15, IV) ou os direitos foram suspensos devido à improbidade administrativa (art. 15, V), os quais comportam discussão, como explanado acima; configura requisito em consonância com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, porquanto as demais hipóteses de perda ou suspensão – naturalização cancelada por sentença transitada em julgado, perda da nacionalidade mediante a aquisição de outra, opção de exercer os direitos políticos em Portugal, incapacidade civil absoluta e condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos – também estão. O mesmo ocorre no tocante ao alistamento eleitoral, uma vez que este demanda a nacionalidade brasileira (motivo de nacionalidade) e a idade mínima de 16 (dezesseis) anos (motivo de idade). Devemos frisar, nesse ponto, a questão dos analfabetos, que embora alistáveis são inelegíveis (motivo de instrução); e a atinente aos conscritos, cuja inalistabilidade conforma motivo de regulação do exercício dos direitos políticos não apresentado pelo Pacto de São José. Os incisos IV e VI, que dizem respeito à exigência de domicílio eleitoral na circunscrição na qual o cidadão pretende concorrer a cargo eletivo, e à idade mínima necessária para os cargos elencados nas alíneas a) a d); se encontram, outrossim,  conforme o que institui o tratado em paralelo.

A condição de elegibilidade gravada no inciso V, por outro lado, encontra-se em total desencontro com a Convenção, pois que inexiste nesta qualquer provisão permitindo ao Estado-parte impor a filiação partidária como um requisito cogente para que o cidadão possa exercitar o seu direito político passivo de postular sua candidatura a um cargo eletivo. Com efeito, da leitura de seus traveux préparatoires (trabalhos preparatórios) nota-se que a maioria dos países americanos, entre eles o Brasil, rejeitaram a proposta original que incluía no art. 23, 1, a letra d), que dispunha acerca do direito de pertencer livremente a partidos políticos, os quais deveriam ser protegidos pela legislação nacional. Acrescente-se a isso o fato de que quando da discussão acerca dos motivos pelos quais um país poderia regular o exercício dos direitos políticos, nenhuma das delegações levantou questão atinente à hipótese de se incluir, entre aqueles, a filiação partidária; de modo que o número 2 do art. 23 foi aprovado contendo tão somente os já conhecidos motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação proferida por juiz competente, em ação penal. Ademais, teve a chance de se manifestar sobre o assunto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso YATAMA vs. Nicarágua; oportunidade na qual externou o entendimento acima, no sentido de que não há na Convenção qualquer disposição autorizando o condicionamento, pelos Estados, do exercício da elegibilidade à filiação a partido político como também reconheceu existirem outras maneiras hábeis para que o candidato postule sua candidatura a determinado cargo eletivo, as quais devem, inclusive, ser fomentadas. Na mesma oportunidade, o juiz da CIDH, Oliver Jackman, em opinião separada, ao comentar o art. 23, aduziu que:

Um “cidadão” – que deve ser obviamente um “indivíduo” e não um grupo, nos termos do artigo 1 (2) – tem um direito absoluto de “votar e ser eleito” em eleições democráticas, como estabelecido no dito artigo [art. 23, 1, b]. Dessa maneira, qualquer exigência de que um “cidadão” deva ser membro de um partido político ou qualquer outra forma de organização política para exercer este direito claramente viola igualmente o espírito e o texto da norma em questão. (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2005, p. 120, tradução nossa).

A isso, some-se o quanto foi estabelecido pelo United Nations Human Rights Committee (SUIÇA, tradução nossa) em respeito às restrições ao direito de ser eleito:

O direito das pessoas de concorrer às eleições não deve ser limitado injustificadamente exigindo-se que os candidatos sejam membros de partidos ou de partidos específicos. Se um candidato é obrigado a ter um número mínimo de apoiadores para nomeação, essa exigência deve ser razoável, e não agir como uma barreira à candidatura.

Ante o exposto, não há dúvidas da ocorrência de um choque entre a Carta Republicana de 1988 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 no que diz respeito ao direito fundamental do ser humano de ser eleito, pois que aquela condiciona o seu exercício ao preenchimento de um requisito que não se encontra entre os motivos pelos quais esta autoriza a legislação interna a fazê-lo.

4.2.2   As soluções.

Passemos, agora, às pretensas soluções que procuramos ofertar ao conflito suscitado acima, abstraindo-se da discussão, no entanto, questão concernente às reformas legislativas que deverão ser levadas a cabo para que a resposta dada possa ser posta em prática.

4.2.2.1  Segundo a teoria da constitucionalidade dos pactos internacionais de direitos humanos.

Para aqueles que advogam a tese da constitucionalidade dos acordos internacionais que tratam de direitos humanos, três situações diferentes podem ocorrer no tocante à sua relação com a lei maior do Estado signatário. Os dois primeiros casos não comportam grandes dúvidas, uma vez que tratam da hipótese na qual os direitos consubstanciados nos dois diplomas coincidem; ou daquela pela qual os documentos internacionais ampliam o rol de direitos fundamentais já garantidos pela legislação interna do país. O terceiro caso, no entanto, diz respeito ao conflito entre os direitos e garantias positivados em ambos. A solução a ser adotada, então, segundo nos ensina Flávia Piovesan (2012) é a escolha da norma mais favorável ao indivíduo – aquela que efetivamente confira, no caso prático, maior proteção aos seus direitos fundamentais, seja aquela insculpida em documento internacional, seja a da legislação pátria.

Analisando o conflito entre o art. 14, § 3º, V, da Constituição Federal de 1988, e o art. 23, 1, b, e 2, do Pacto de São José da Costa Rica; temos que a condição de elegibilidade relativa à obrigatoriedade de filiação partidária prevista naquele não se encontra dentre os motivos exclusivos arrolados neste como autorizadores de qualquer condicionamento do direito de ser eleito. Uma vez que já sustentamos a constitucionalidade do aludido Pacto, e considerando que os direitos nele previstos são integrados à nossa Lei Maior, acolhemos então a resposta da prevalência da norma mais favorável, pelo que concluímos que a exigência de que o cidadão se filie a um partido político para que possa se candidatar a um cargo eletivo, por não ser prevista na Convenção Americana, não merece prevalecer; de modo que a qualquer cidadão brasileiro, preenchidos os demais requisitos legais que encontrem correspondência no art. 23, 2, da Convenção, deve ser assegurado o direito político passivo de ser eleito.

Devemos, outrossim, lembrar que a delegação brasileira, quando dos trabalhos que levaram à redação do multicitado art. 23, rechaçaram a inclusão de disposição acerca dos partidos políticos, bem como que não se opuseram em momento algum à dicção do seu inciso 2. Ademais, ao ratificar o Pacto em 25 de setembro de 1992, e promulgá-lo em 06 de novembro do mesmo ano através do Decreto nº 678, não foi estabelecida qualquer reserva à matéria, quer pelo Chefe do Executivo, quer pelo Congresso; de modo que foram aceitos expressamente os ensejos do inciso 2 como os únicos dos quais poderia se valer a República Federativa Brasileira para regular o exercício dos direitos políticos. Ainda, a redação do art. 1º do Dec. nº 678/92 deixa isto claro, ao dizer que “a Convenção Americana sobre Direitos Humanos [...] deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.”

Não bastasse, a carta em tela, ao dispor em seu art. 29 sobre as normas de interpretação, estatui que nenhuma de suas disposições “pode ser interpretada no sentido de permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos [...] ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista”; razão pela qual podemos rebater, desde logo, eventual argumento de que o legislador internacional não poderia enumerar todos os meios de regular os direitos humanos políticos que não configurassem em sua eliminação ou restrição exacerbada, e que, assim, a ausência da filiação partidária no art. 23, 2, não implicaria em dizer que a mesma não seja admitida.

Os argumentos expendidos acima, todavia, dão conta apenas de justificar porque a não obrigatoriedade da filiação partidária para que um cidadão quede elegível lhe é mais favorável. Podemos sustentar, contudo, que a solução dada é mais favorável também para todos os demais cidadãos que compõem o corpo eleitoral do país.

O multicitado artigo 23, 1, b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, prescreve que os direitos políticos positivos deverão ser exercidos “em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores.” Em nosso país as eleições são periódicas (de 04 em 04 anos) e autênticas, porquanto ao menos em tese não podem ser falseadas. O sufrágio é, em certa medida, universal, em que pese a questão dos conscritos; é igualitário, uma vez que a cada cidadão lhe é conferido apenas um voto, com o mesmo peso dos demais, e, digamos, secreto. Perguntamos, no entanto: nossas eleições garantem a livre expressão da vontade dos eleitores? A letra a do dispositivo citado, por sua vez, preceitua que todo cidadão deverá gozar do direito/oportunidade de “de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos.” Mas até que ponto nossos representantes são eleitos sem coação alguma? Ao exigir a filiação partidária como condição de elegibilidade, a Carta Política de 1988 conflitou, outrossim, com as disposições supracitadas. Observemos.

A livre expressão da vontade é o resultado da soma de dois dos atributos conferidos ao voto pelos sistemas democráticos: a sinceridade e a autenticidade. Tem íntima conexão com o direito de o cidadão participar dos assuntos públicos mediante representantes livremente eleitos, no sentido de que se em face dos eleitores é imposta alguma amarra capaz de “balizar” seu voto entre candidato A ou B; o representante não será, na prática, livremente eleito, uma vez que foi cerceada a liberdade de escolha do cidadão, bem como a expressão de sua vontade não haverá sido autêntica. Exigir-se que o candidato seja filiado a algum partido político é, portanto, infirmar a livre expressão da pretensão do votante, uma vez que cabe primordialmente aos membros do partido escolher quem serão os candidatos que estarão com suas fotos e números nas urnas no dia da eleição, sob a sombra de suas bandeiras ideológicas, como as únicas opções possíveis. Poderia ser que algum dos filiados ao partido fosse a verdadeira escolha de muitos dos eleitores, mas por questões as mais diversas possíveis, não foi a escolha dos dirigentes partidários, de modo que foi anulada, antes mesmo de que pudesse ser dada, a oportunidade do eleitor de exercer sua vontade política.

Poder-se-ia criticar esse raciocínio pela simples afirmação de que o mandato é do partido, e não do político. Quem exerce a representação não é o indivíduo, senão o grupo político do qual faz parte. Caberia, então, àquele candidato que não foi lançado à eleição por seu partido, criar um novo, uma vez que “é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos”, conforme a letra do art. 17 de nossa Carta Política; e então postular sua candidatura. Os requisitos legais para tanto, todavia, não são razoáveis para um país de dimensões continentais como o nosso, e possuidor de um eleitorado de 140.646.446 (cento e quarenta milhões, seiscentos e quarenta e seis mil, quatrocentos e quarenta e seis) pessoas. Ora, a lei nº 9.096/95, em seu artigo 7º, §§ 1º e 2º, dispõe que apenas o partido político que tenha registrado seu estatuto junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) poderá participar do processo eleitoral; e exige, para que isso seja possível, que o partido comprove ter o apoio dos eleitores condizentes a, no mínimo, 0,5% (meio por cento) dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, excetuados os brancos e nulos, distribuídos por 1/3 (um terço), ou mais, dos Estados, com um mínimo de 0,1% (um décimo por cento) do eleitorado que haja votado em cada um deles.[35] Acreditamos que os críticos poderiam sustentar que se o novo partido não conseguiu reunir o número mínimo de assinaturas, não possuiria, então, uma representatividade significante perante a população nacional. Não se trata, entretanto, de números, e sim de garantir aos cidadãos que possam exercer o seus direitos políticos livres de quaisquer amarras. Podemos, ainda, imaginar que o fato de não haver o pretenso partido atingido o piso de firmas, se deva não a eventual falta de representatividade, mas sim a fatores tais quais a desconfiança da população nos partidos já existentes, a ausência de interesse na vida política do país, a falta de educação cívica de grande parcela da população, dentre outros mais que não cabem neste estudo.

Mas suponhamos que o novo partido logre êxito em preencher os requisitos legais e seja criado. Podem existir, nesse caso, eleitores que ainda não se identifiquem com a nova legenda, ou com qualquer outra das já existentes. Qual seria, então, a solução para eles? Poderiam votar em branco ou ainda anular os seus votos, por que não?[36] Diferenças a parte, sem retirar a importância dos votos brancos e nulos, vez que são mais duas oportunidades conferidas ao eleitor para que exprima sua real vontade; entendemos que os mesmos só podem ser assim entendidos se já houverem sido garantidas aos cidadãos todas as demais possibilidades de externar seus anseios quanto à política mediante o voto, caso contrário esses dois tipos de voto seriam, outrossim, mais uma imposição aos eleitores, cerceando a sua liberdade de expressão.

Ante todo o exposto, deverá, portanto, ser afastada do ordenamento jurídico pátrio a obrigatoriedade da filiação partidária para que o indivíduo goze da elegibilidade, quer por ser a norma mais favorável ao candidato, quer pelo fato de que configura norma mais favorável aos eleitores. Não obstante a resposta dada acima seja a que consideramos juridicamente correta, uma vez que, como já foi dito, compactuamos com o entendimento de que as normas contidas no Pacto de San José da Costa Rica têm status constitucional; por questões didáticas traremos abaixo outra solução que acarretará o mesmo resultado prático: a não obrigatoriedade da filiação partidária.

4.2.2.2       Segundo a supralegalidade adotada pelo STF no RE nº 466.343/SP.

A nossa Corte Constitucional, desde 1977, perfilhava o entendimento de que os tratados internacionais de qualquer espécie equiparavam-se à legislação ordinária, pelo que se aplicariam as normas de solução tradicionais[37] em eventual caso de conflito. Em 03 de dezembro de 2008, no entanto, com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343, ao reconhecer que o entendimento acima necessitava ser modificado, porquanto defasado e insuficiente diante da novidade trazida pela EC nº 45/2004; e em face da “premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional” (BRASIL, 2009, p. 55), o Supremo Tribunal Federal promoveu uma mudança no paradigma então vigente, e adotou a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, segundo a qual:

[...] diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. [...] os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. (BRASIL, 2009, p. 49).

Pela tese aventada no julgamento supracitado, os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil não surtiriam quaisquer efeitos perante a normativa constitucional que com eles colidisse, mas teriam o poder de neutralizar toda aquela legislação infraconstitucional, anterior ou posterior (BRASIL, 2009, p. 55), que se encontrasse nessa situação.

No Recurso Extraordinário em comento, que tratava, dentre outras coisas, da hipótese de se estender ao nosso ordenamento pátrio a proibição da prisão civil por dívida que não a alimentar (art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e art. 7º, 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), concluiu-se, portanto:

[...] que, desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. (BRASIL, 2009, p. 86).

Aplicando-se a tese da supralegalidade à questão da filiação partidária obrigatória, traçando-se um paralelo com o caso paradigma acima, podemos afirmar que por tratar-se de conflito entre tratado internacional que protege direitos humanos e disposição constitucional, aquele não produz qualquer efeito jurídico sobre esta. Entretanto, a filiação partidária queda obrigatória não só pelo disposto no art. 14, § 3º, V, da CF/88, mas também se depreende, outrossim, do art. 18, da Lei nº 9.096/95, o qual reza que “para concorrer a cargo eletivo, o eleitor deverá estar filiado ao respectivo partido pelo menos um ano antes da data fixada para as eleições, majoritárias ou proporcionais.” Ora, o referido dispositivo legal não só exige expressamente a filiação partidária, como a ela acrescenta o requisito temporal de que haja sido formalizada com ao menos um ano em avanço à data fixada para as eleições.

Se, repita-se, a normativa internacional não tem o condão de produzir qualquer modificação na nossa Lei Maior, segundo o entendimento do Supremo, no entanto, possui o poder de paralisar a eficácia da legislação infraconstitucional (anterior ou posterior) que com ela esteja em estado de conflito. Desta feita, podemos concluir que desde a ratificação pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sem qualquer reserva pertinente aos direitos políticos; não mais poderia persistir a exigência de que o cidadão, para ser eleito, filie-se a um partido político pelo menos um ano antes das eleições.

Como dissemos, por meio de uma equação jurídica diferente da que corroboramos, alcançamos o mesmo resultado prático: a filiação partidária em nosso ordenamento jurídico não é conditio sine qua non para que se possa ser detentor da capacidade política passiva denominada elegibilidade.

Sobre o autor
Mânlio Souza Morelli

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORELLI, Mânlio Souza. A não obrigatoriedade da filiação partidária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4115, 7 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32545. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para a conclusão do curso de bacharelado em direito do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe.

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