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A evolução do direito de propriedade ao longo das Constituições brasileiras, com ênfase na ideia de função social da propriedade

O presente artigo intenta analisar as mudanças que ocorreram no direito de propriedade ao longo das constituições brasileiras, traçando a evolução histórica desse instituto

Resumo: O presente artigo intenta analisar as mudanças que ocorreram no direito de propriedade ao longo das constituições brasileiras. Para isso, analisa a história do direito de propriedade de uma forma geral e a sua definição como instituição jurídica. Em seguida, observa as formulações desse direito nas constituições brasileiras, atentando para o contexto histórico em que foram inseridas. Enfatiza o estatuto desse direito na Constituição de 1988, que vige hodiernamente.

Palavras-chave: história do direito, direito de propriedade, constituições brasileiras, função social da propriedade.

Abstract: The present article intends to analyze the changes that occurred in the right of ownership over the Brazilian constitutions. For this, it analyzes the history of property rights in general and its definition as a legal institution. Then observes the formulations of this right in Brazilian constitutions, noting the historical context in which they were entered. Emphasizes the status of that right in the 1988 Constitution, which prevails in our times.

Key-words: history of law, right of ownership, Brazilian constitutions, social function of property.

INTRODUÇÃO

O direito, como realidade sociocultural, é historicamente situado. Desse modo, ele está intimamente vinculado com as transformações históricas que acontecem na sociedade em que se situa. Sem aderir aos determinismos da visão do materialismo histórico-dialético marxista, que vê o direito como uma superestrutura determinada pelas dinâmicas das relações de produção; pode-se dizer, a partir das reflexões do antropólogo estadunidense Clifford Geertz, que “o pensamento jurídico é construtivo de realidades sociais, e não um mero reflexo dessas realidades” (GEERTZ, 1997, p. 352). A partir dessa perspectiva, é possível estudar os diversos institutos jurídicos desde uma abordagem historiográfica, observando-os tanto como um reflexo como um elemento construtor das realidades em que atua.

Nesse diapasão, o presente trabalho centrará seus esforços na evolução histórica do direito de propriedade no direito brasileiro. Para tanto, tomará como base para a investigação as constituições brasileiras desde 1824 até à Constituição Cidadã de 1988, sob cuja égide se realiza o direito brasileiro na contemporaneidade. O intervalo de tempo coberto por essas constituições foi repleto de acontecimentos históricos significativos, que alteram profundamente as sociedades brasileira e global. Por isso, é razoável supor que a forma como a propriedade foi regulada pelo ordenamento jurídico no decorrer desse período também tenha se alterado.

A história do direito de propriedade, não se pode esquecer, remonta as próprias origens do direito. Portanto, não é possível empreender uma análise histórica de seu desenvolvimento no direito brasileiro sem considerar o seu desenvolvimento em um âmbito mais geral. Não é possível ignorar, de forma mais específica, as notáveis e influentes contribuições do direito romano ao tema, por exemplo. Por isso, o presente artigo não se limita a análise textual das constituições brasileiras, mas busca situar seu objeto de estudo num contexto mais amplo que somente o brasileiro, ou somente o jurídico.

Atenção especial será dada à questão da função social da propriedade.  Desde as revoluções burguesas do século XVIII, o direito de propriedade ganhou uma proteção cada vez maior, sendo incluso no rol de direitos humanos da primeira geração. Esses direitos “materializaram-se [...] como direitos civis e políticos, ou direitos individuais atribuídos a uma pretensa condição natural de indivíduos” (DORNELLES, 1989, p.21). Essa perspectiva foi sendo criticada nos séculos seguintes por diversos setores da sociedade, notadamente os movimentos contra a concentração fundiária, e foi sendo relativizada ao longo do tempo. A Constituição de 1988, por exemplo, protege o direito à propriedade, mas acolhe o conceito de função social da propriedade, que surgiu como um contraponto à perspectiva excessivamente individualista do direito de propriedade.  Esse percurso histórico também será enfocado por este trabalho.

I. A PROPRIEDADE

1.1 – A HISTÓRIA DA PROPRIEDADE

A propriedade se constituiu, ao longo da historia, como um dos mais importantes direitos subjetivos da humanidade. Desde a formação da consciência da propriedade nos primeiros agrupamentos humanos (grupos familiares, tribos, clãs) e seu caráter de propriedade coletiva, ligado essencialmente a um aspecto religioso, como é demostrado na obra de Fustel de Coulanges, A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma, onde o vínculo com a terra, principalmente, era visto como sagrado, pois havia a crença em divindades locais que regiam a colheita, o regime das chuvas e a própria comunidade, além de ser o local onde as famílias que se estabeleciam ali sepultavam seus mortos, e como a religião doméstica estava ligada a esse espaço territorial, não se comunicando com outra religião, de uma outra família, a propriedade era vista como inalienável (GASSEN, 2012), passando pela institucionalização do direito à propriedade no direito romano (jus utendi- direito de usar,  jus fruendi- direito de gozar e  jus abutendi- direito de dispor.), onde, por meio do Estado, é legitimado o privilégio do indivíduo, juridicamente, enquanto detentor da posse, em detrimento da propriedade coletiva e estabelecendo uma distinção  entre propriedade privada e propriedade pública, até a análise da propriedade por Karl Marx e Friedrich Engels por meio do materialismo histórico, em A ideologia Alemã, onde as formas de propriedade estão diretamente relacionadas com as diferentes fases da divisão do trabalho, percebe-se que a ideia de propriedade sofreu progressiva evolução dentro do limites socioculturais de cada época e conforme as legislações os garantiam  e sua função social também se modificou, na medida em que se invertia a concepção de propriedade do coletivo para o individual, demostrando , também que a propriedade possui, além  de um caráter jurídico, denotações políticas, éticas e econômicas relevantes historicamente dentro das sociedades humanas.

No que concerne ao processo histórico, formador do instituto da propriedade, e as teorias sobre sua origem, Simone Nunes Ferreira (2007) diz:

As explicações sobre a origem do instituto remontam ao  processo de sedentarização do  ser humano, embora argumente-se que os nômades conheciam a propriedade na forma de posse de objetos de uso pessoal ou de animais de transporte. As principais teorias sobre a origem da propriedade privada são: I-razão natural e revelação divina; II trabalho como fundamento e fator de valorização econômica da propriedade: Locke; III- politeísmo greco-romano: Coulanges; e IV- concepção materialista: Engels e Marx.

O pensamento sustentando por Fustel de Coulanges em sua obra, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e Roma, no que se refere ao instituto da propriedade, demostra a importância da crença, da religião (politeísta) dos povos antigos e dos laços familiares, não somente entre os indivíduos, mas também entre os indivíduos e o solo, no caso do sepultamento dos entes familiares naquele território, permitindo a criação da consciência da propriedade sobre aquele local e, a partir daí,  formulando meios de assegurar esse direito. Coulanges estende a influência da crença para além da formulação da ideia de propriedade, afirmando ter ela também papel fundamental na determinação das leis e instituições (GASSEN, 2012).

Valcir Gassen, em seu artigo A natureza histórica da instituição do direito de propriedade, contido no livro Fundamentos de História do Direito, de Antônio Carlos Wolkmer, ao analisar a obra de Coulanges, faz o seguinte enunciado:

 Em A cidade antiga, quando os homens viviam em tribos familiares, o culto aos antepassados mortos criava uma religião essencialmente doméstica, que era hereditária. A crença de ‘’Platão’’ sustentava que com a morte as pessoas passavam a ter uma segunda existência , mas ela se dava aquii junto e ao lado dos vivos, daí toda a ritualização com as oferendas, o fogo sagrado, etc. Os corpos e a alma continuavam  unidos  após morte. Em resumo: a crença primitiva é uma religião doméstica que cultua permanentemente os mortos familiares. (GASSEN, 2012)

O presente enunciado vem corroborar, claramente, o pensamento do autor, unindo religião e propriedade por meio do culto aos antepassados. Dessa forma estabelece um elo entre a religião doméstica, a família e o direito a propriedade, motivo pelo qual a propriedade foi tachada de inalienável.

O ideal de propriedade como bem inalienável, vinculado ao caráter religioso, perpetuou-se por muito tempo, da antiguidade aos tempos modernos, cada época com suas devidas particularidades. Na modernidade, muitos autores discorreram sobre o direito a propriedade, mas como exemplo, dentro do contexto abordado, podemos citar Jean Bodin, importante jurista francês, que utiliza a premissa de lei natural em sua obra Os seis livros da república (1576), para justificar a inviolabilidade da propriedade. Mesmo sendo um defensor do absolutismo, Bodin concebia que:

O soberano, por mais poderoso que seja, não pode se apropriar dos pertences de seus súditos nem taxá-los sem consentimento deles( taxação arbitraria equivalendo a confisco), por que a lei divina diz que “ ninguém pode espoliar o que é propriedade do outro”. Ele tampouco pode alienar qualquer parte do domínio real, que lhe foi dado somente para uso, não como propriedade. (FERREIRA, 2007).

               

Outro pensador moderno, o filósofo iluminista inglês John Locke, dá ênfase ao direito a propriedade em suas obras como Dois tratados sobre o governo (1689) e Cartas sobre a tolerância (1689), onde vincula a criação da sociedade civil à preservação do direito a propriedade, como o fim principal da união dos homens em comunidade (BARBOSA, 2005). Segundo ele,

Um poder que não garantisse o direito a propriedade e à proteção da vida, não poderia ter meios de legitimar seu exercício. O governo que não respeitasse esses direitos deveria ser legitimamente deposto pela população. (SOUSA, s/d)

Além de taxar a propriedade como direito natural (nesse aspecto, teve críticos com Thomas Hobbes e Pufendorf, quanta a concepção de propriedade como direito natural), Locke também é responsável pela ideia precursora de valorização econômica da propriedade e do trabalho como fundamento da propriedade (o homem como “senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e suas ações” (FERREIRA, 2007), posteriormente melhor desenvolvida por Karl Marx.

            Em A Ideologia alemã, Karl Marx e Friedrich Engels, sob a perspectiva do materialismo histórico, onde a história é um processo complexo da luta de classes, do desenvolvimento das forças produtivas, das relações de produção e das forças politicas de dominação (GASSEN, 2012), afirmam que a propriedade está diretamente ligada com as diferentes fases da divisão do trabalho, determinando também as relações dos indivíduos entre si, no que diz respeito ás forças produtivas. Essa divisão social do trabalho vai propiciar o surgimento da propriedade privada, que se faz legitima a partir do Estado e proporciona uma alienação da atividade social.

            Marx e Engels propuseram, ao longo do processo histórico, quatro formas de propriedade. A propriedade tribal, que correspondia a uma fase menos desenvolvida da produção, onde a divisão do trabalho se limitava á divisão natural do trabalho. A propriedade comunal e estatal antiga, vinculada ao surgimento das primeiras cidades e onde aflora a propriedade privada móvel (posteriormente, a imóvel). A propriedade feudal, de Estados ou de ordens sociais, onde já se podia enxergar uma divisão do trabalho mais acentuada, pelo menos no que concerne às condições de produção. “Enquanto no campo a propriedade por excelência é a fundiária e o trabalho do servo preso a ela, na cidade, a propriedade que se manifesta é a propriedade do próprio trabalho com um pequeno capital, corporações, a dominar o trabalho dos oficiais” (GASSEN, 2012). Existia, ainda, uma relação entre as formas de propriedade e os instrumentos de produção. Segundo Marx e Engels os instrumentos poderiam ser instrumentos de produção naturais, onde o individuo dependia da natureza, sendo a propriedade manifestada como domínio natural direto, e instrumentos de produção criados pela civilização, onde os indivíduos estão subordinados a um produto do trabalho.

            Por fim, Valcir Gassen resume a concepção de propriedade segundo Marx e Engels da seguinte forma:

Para Marx e Engels, a propriedade entre os povos antigos era por excelência a fundiária, isto tanto na propriedade tribal quanto na estatal posterior. Na propriedade estatal, quando da formação das cidades nas quais viviam juntas várias tribos, o direito do indivíduo era apenas o de posse da terra, a propriedade era basicamente estatal. Já a propriedade tribal na Idade Média desenvolve-se em várias fases (propriedade fundiária feudal, propriedade móvel corporativa, capital manufatureiro) até o capital moderno( condicionado pela concorrência em nível mundial e pela grande indústria), em que a propriedade privada moderna corresponde ao Estado moderno, que foi, no seu entender, adquirido gradualmente pelos proprietários privados. (GASSEN, 2012).

1.2 - PROPRIEDADE COMO INSTITUIÇÃO JURÍDICA

A propriedade como instituição jurídica, na definição de De Plácido e Silva (2006, p. 1115) “é compreendida como o próprio direito exclusivo ou o poder absoluto e exclusivo que, em caráter permanente, se tem a coisa que nos pertence”, porém ressaltando-se “as restrições advindas do respeito a direitos alheios ou fundadas no próprio interesse coletivo, em face dos princípios jurídicos que transformam a propriedade numa função social”. Contudo, como bem destaca Caio Mário da Silva Pereira (1999, p. 60) não é possível de modo algum achar conceito absoluto e imutável de propriedade (a maioria dos juristas atuais tenta defini-la de modo semelhante como fez De Plácido e Silva, porém, peca no uso do vocabulário “absoluto”, que não pode ser usado numa proposição que admita exceção – fator esse comum no direito de propriedade).

            Para um melhor entendimento usaremos as disposições contidas no Código Civil Brasileiro no Art. 1.228: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (NERY JUNIOR; NERY, 2007, p 847). Observa-se que pela dificuldade de se conceituar a propriedade em si, concentra-se todo o sentido na ideia de direito do proprietário, sendo a propriedade uma “coisa” da qual o proprietário pode “usar, gozar e dispor”, possuindo o direito de reavê-la, caso tenha sido injustamente tomada.

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            Destacam-se então quatro características para se entender a propriedade como instituição jurídica:

I) Direito de usar (jus utendi): “consiste na faculdade de colocar a coisa a serviço do titular, sem modificação na sua substância” (SÁ PEREIRA, apud PEREIRA, 1999, p. 68). Ou seja, a coisa pode ser usada de acordo com a vontade aquele que tem tal direito atribuído – pode também usá-la a serviço de terceiro, além de ter a faculdade de não usá-la, conservando-a inerte, mantendo-a em condições de servir. No entanto é importante observar – como dito anteriormente – que esse uso não consiste em algo indiscriminado, tendo que respeitar, por exemplo, normas da boa vizinhança.

II) Direito de gozar (jus fruendi): Consiste na fruição, ou seja, no direito de utilizar os frutos – não entender no sentido comum da palavra - provenientes da propriedade – sendo também possível a fruição de terceiros, através do usufruto. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira (1999, p 69):

realiza-se essencialmente com a percepção dos frutos, sejam os que na coisa naturalmente advêm (...), como ainda os frutos civis (...). A linguagem corrente, mesmo a jurídica, emprega a expressão em sentido mais abrangente, inserindo no direito de gozar o de usar, tendo em vista a normalidade lógica do emprego da coisa, cuja fruição habitualmente envolve a utilização. Pode-se, igualmente, pressupor no gozo a utilização dos produtos da coisa, além dos frutos, embora uns e outros se diferenciem.

III) Direito de dispor (jus abuteni): Consiste numa situação em que os “bens podem ser alienados pelo seu proprietário por não estarem sujeitos a quaisquer ônus, encargos ou cláusula de inalienabilidade” (DINIZ, 2010, p 214). Por conseguinte, a disposição de uma coisa consiste no ápice, na essência do direito de propriedade, sendo limitada apenas pelos encargos relativos ao bem comum.

IV) Direito de reaver a coisa (rei vindicatio): esse último direito busca garantir a segurança da propriedade, sendo uma ação que busca “reclamar o direito de propriedade perdido” (DINIZ, 2010, p 501). Assim, “pela vindicatio o proprietário vai buscar a coisa nas mãos alheias, vai retomá-la do possuidor, vai recuperá-la do detentor” (PEREIRA, 1999, p 70) que a conserva “sem causa jurídica”.

Uma vez enumerados e definidos, mesmo de forma superficial essas quatro características da propriedade enquanto instituição jurídica é possível então traçar um histórico das raízes do direito de propriedade.

Um breve histórico do direito de propriedade, com ênfase no direito romano

Em um primeiro momento, observa-se nos gregos normas que dificultam a alienação da propriedade, tendo em vista o forte vínculo desta com a família (fatria) e com os ancestrais, possuindo um caráter sobrenatural. Desta forma, na Grécia antiga só se adquiriu maior liberdade na compra e venda de bens imóveis no governo de Sólon, quando foram autorizadas algumas transações, porém com um limite de aquisição de terras.

Já na sociedade romana, podem-se observar quatro tipos de propriedade:

I) a quiritária: aquela inerente ao cidadão romano;

II) a pretoriana: formada “por interferência do pretor, ao garantir às pessoas que não podiam ter a propriedade quiritária  o domínio sobre a coisa adquirida” (DO NASCIMENTO, 2006, p 67), tendo caráter provisório de 2 anos;

III) a peregrina: depois que o império romano começou sua expansão, surgiu a questão dos povos – gentes – conquistados, surgindo esse tipo de propriedade destinada ao estrangeiro livre que pôde adquirir imóveis;

IV) e a provincial: localizava-se nas províncias romanas e “somente o Estado tinha domínio sobre elas, podendo dá-las em arrendamento mediante um tributo chamado vectigal” (DO NASCIMENTO, 2006, p 68).

Cabe ressaltar-se que é no direito romano também que surgem os direitos da propriedade que ainda hoje influem o direito brasileiro: o jus utendi, o jus fruendi e o jus abutendi (ressalta-se que neste último, a expressão abutendi deriva de abutere que significa abusar, destruir; no entanto nem mesmo no direito do império romano se dava uma elevação indefinida e absoluta do direito de propriedade, já existindo algumas restrições tendo em vista questões sociais).

Em Roma, já é possível notar então, um certo esboço do que poderia originar o princípio do abuso do direito de propriedade  da função social da propriedade. Assim não se diz que “a propriedade, segundo a sua concepção, implique o poder absoluto de dispor das coisas. Nunca a sociedade tolerou uma propriedade ilimitada: (...) não pode conter coisa alguma que esteja em oposição com a sociedade” (IHERING, 1956, apud DO NASCIMENTO, 2006, p 67).

De fato, o direito romano, apesar de carregado de individualismo - no que concerne à propriedade -, apresentava antinomias em relação à ao abutere indiscriminado.

E efetivamente as limitações existiam. No campo os conflitos vizinhança, na instituição de servidões, ou em termos gerais, levantadas aquelas sob inspiração de um interesse público ou de conveniências particulares. Foi, contudo, do Baixo Império que mais se acentuaram, à medida que se desenvolvia o poder imperial e a crescia o estatismo. Não faltou mesmo a ideia de autorizar um terceiro a cultivar em proveito próprio as terras cujo proprietário deixasse ao abandono. (PEREIRA, 1999, 74)

Com o declínio da civilização romana, a cultura bárbara começa a impregnar o direito romano, dando a origem ao direito romano-germânico que ainda hoje tem forte influência no direito contemporâneo. Descendentes diretos dessa mescla estão o Código de Napoleão e o direito alemão moderno, que são as principais bases da cultura jurídica ocidental. O Código de Napoleão fez uma das primeiras tentativas de positivar o conceito de propriedade em seu artigo 544: “o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos”. Caio Mário da Silva Pereira (1999, p 66) traça uma crítica a essa definição, ressaltando a ausência de superlativos no termo “absoluta”, e uma vez que seja possível uma restrição por meio da lei, perde-se o caráter absoluto. No entanto, o importante é que se observa que também no Código de Napoleão uma necessidade de abrir brechas para a infinitude do direito de propriedade, mesmo este valendo erga omnes.

É então no direito alemão (também descendente do romano-germânico) que surge formalmente a função social da propriedade:

A regra vem do art. 153 in fine da Constituição alemã de 1919 (Constituição de Weimar), que estabeleceu, por inspiração dos civilistas Martin Wolff (..) e Otto von Gierke (...), os princípios de que ‘a propriedade obriga’ (Eigentum verpflichtet) e da ‘função social da propriedade’ (Gebrauch nach Germeinem Besten) (NERY JUNIOR; NERY, 2007, p 848).

II.  DIREITO DE PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 A 1967

Verifica-se ao longo das Constituições brasileiras que houve uma evolução do direito de propriedade de um caráter individualista, como se verifica na Constituição de 1824, para uma concepção que assegura não apenas as vantagens do proprietário, mas também a sua função social, como na Carta Magna de 1988.

            O Brasil tornou-se independente em 1822, até então ele estava regido pela legislação portuguesa, como as Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manoelinas e as Ordenações Filipinas. Claro que na colônia muitas dessas normas perderam sentido, porque não tinham sido feita para seu próprio contexto, sendo necessária a criação de Leis Extravagantes, para preencher as lacunas. Com a independência, era necessária a organização do novo Estado, com a criação de leis para regulamentar a administração por meio de uma Constituição.

            Dessa forma, em maio de 1823 ocorreu uma Assembleia Constituinte composta por 90 deputados e Antônio Carlos de Andrada apresentou um projeto de Constituição, conhecida como “Constituição da Mandioca”. No entanto, esse projeto limitava o poder do imperador, D. Pedro I, consequentemente, ele dissolveu a Constituinte e nomeou um Conselho de Estado para escrever uma nova Constituição e em 25 de março de 1824 foi outorgada a Constituição, ela ficou em vigência até 1889.

            A Constituição de 1824 incluía nos direitos individuais o direito de propriedade, o que pode ser verificado no “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio”. Nesse período, o direito de propriedade era absoluto podendo apenas ser excepcionada com a desapropriação, entretanto, haveria uma indenização.  Como pode ser verificado no inciso XXII, do artigo 179: “É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.”.

            No entanto, o poder de desapropriar não estava ligado a função social, já que a desapropriação poderia acontecer mesmo com os bens cumpridores da função social, desde que tivesse uma indenização em dinheiro. Essa desapropriação não acontecia como uma forma de punição, mas para quando havia uma necessidade pública. Assim, ocorreria a transferência de um bem para o patrimônio público. Percebe-se, portanto, uma influência do Liberalismo francês, apresentando o seu caráter individualista.

            Vale ressaltar que a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, que ficou conhecida como a Lei de Terras, foi uma das primeiras tentativas para se tentar organizar a propriedade privada no Brasil, já que não havia nada que regulamentasse, oficialmente, a posse das terras no país. Ela surgiu por causa do risco da formação de pequenas propriedades, com mão-de-obra familiar, voltada para o mercado interno, dessa forma, o governo do império foi pressionado pela aristocracia rural para impedir que os imigrantes, que estavam chegando no país, e os homens livres tivessem acesso às terras. Assim, essa lei dizia que as terras públicas não poderiam mais ser doadas e sim deveriam ser compradas para se tornaram propriedade privada. Além disso, os preços deveriam ser altos para que as pessoas favorecidas não tivessem acesso à terra, já que isso prejudicaria a economia exportadora.  Outro fator que prejudica muito era que as terras necessitavam ser registradas, o que era muito caro.

            Com a proclamação da República em 1889 foi instalado o governo provisório de Deodoro da Fonseca, nesse período houve a extinção da Carta Magna de 1824 e em 24 de fevereiro de 1891 foi promulgada a nova Constituição transformando o Brasil em uma república federativa, ela ficou em vigência até 1930. Com relação ao direito de propriedade não ocorreu mudanças significativas, já que a propriedade mantinha a característica de ser direito absoluto, assim como no Código de Napoleão. Pode-se verificar o “Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade” e no “§ 17. O direito de propriedade mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indemnização prévia. a) A minas pertencem ao proprietario do sólo, salvo as limitações estabelecidas por lei, a bem da exploração das mesmas; b) As minas e jazidas mineraes necessarias á segurança e defesa nacionaes e as terras onde existirem não podem ser transferidas a estrangeiros. ”. Esse artigo foi inserido na emenda constitucional de 3 de setembro de 1926.

            A segunda Carta Magna do período republicano foi promulgada em 16 de julho de 1934 no governo de Getúlio Vargas e teve vigência até 1937. Essa Constituição foi elaborada em um período de forte agitação popular, já que acabara de acontecer a Revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas no poder. Pode-se dizer que essa Constituição trouxe muitas inovações na área do direito de propriedade, já que como se verifica no “Art. 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade.  § 17: É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior”. Assim, percebe-se que o direito de propriedade não podia ser exercido contra o interesse social ou coletivo, mas a eficácia não foi total, já que não houve uma lei complementar para regulamentá-la, provavelmente, por causa da curta duração dessa Constituição.

            Em 1937, com a intenção de continuidade de seu governo, que apenas seria possível através de um golpe de Estado, Vargas, usa de pretexto a suposta existência de um plano comunista que assumiria o poder no Brasil, o Plano Cohen, para lançar mão do golpe: em 10 de novembro, Vargas suprimindo as eleições que seriam realizadas em 1938, instala a ditadura do Estado Novo, ordena o fechamento do Congresso, a extinção dos partidos políticos e a suspensão da Constituição de 1934, outorgando de imediato uma nova Carta, a de 37 – conhecida como “Polaca” -  que de cunho pretensamente democrático, revela-se como a primeira Constituição brasileira de cunho autoritário, inspirada em sua maior parte na legislação fascista da Polônia e uma parte das leis do regime de Mussolini na Itália, que assegurava a plenitude do poder à Vargas em um regime “paternalista autoritário”.

 Sob a égide da nova Constituição, evidencia-se um considerável retrocesso em relação à Carta de 1934, no que diz respeito ao direito de propriedade, apenas assegurando o caráter não-absoluto desse direito, e admitindo referência ao seu conteúdo e limites definidos por leis, o que se verifica no “Art. 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade. § 14: o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício”. Percebe-se que na nova Carta já não se verifica a proibição do exercício contrário aos interesses sociais e coletivos que constava na Constituição de 34. É evidente, portanto, um retrocesso a cerca do direito de propriedade não somente no que diz respeito à suspensão do “breve suspiro” de intenção social que assegurava um fim utilitário da propriedade, mas também no que diz respeito a uma falsa conotação, de função ludibriante do governo, que abarcava não apenas o direito de propriedade, mas todos os direitos que deveriam assegurar as garantias individuais. Como sustenta Brega Filho (2002, p. 37) a implantação do Estado Novo e a Constituição outorgada de 37 propiciaram à Vargas “dar a luz” a um Brasil: “[...] sem partidos políticos, sem imprensa livre, embora o art.122 reconhecesse direitos individuais, estes não tiveram efetividade, pois com a ditadura houve concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, que governava através de decretos-leis e de leis constitucionais”.

Embora tenha sido um governo autoritário, as primeiras contestações em favor da redemocratização do país demoraram a ocorrer, vindo à tona apenas em 1943 com o Manifesto dos Mineiros, e vieram a aumentar ao passo em que se tornava evidente o fim da Segunda Guerra Mundial e por consequência, a universalização do sentimento de erradicação dos regimes autoritários no mundo. Cresce a rejeição contra Vargas, e temendo uma suposta “guinada à esquerda” por parte do presidente, em outubro de 1945, através de um golpe pelos comandantes Góis Monteiro e Dutra, derruba-se o Estado Novo, convocando uma nova eleição que levou Dutra ao cargo da presidência. Em 1946, é promulgada a quinta Constituição brasileira, a mais democrática desde então, com a retomada de princípios federativos e liberais das Cartas de 1891 e de 1934.

A Constituição de 1946 trata da desconfiguração do governo opressor e autoritário de Vargas, trazendo à tona um novo ambiente propício ao revigoramento dos direitos fundamentais do homem e tornando o direito à propriedade um direito inviolável, salvo hipótese de desapropriação, como decreta o art. 141. A mudança substancial que evidencia o caráter social da nova Carta em relação à propriedade, encontra-se no art. 147 – “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. Sobre a inovação que traz o art. 147, constata-se que: “O preceito supra constitui um marco jurídico, porque prevê a desapropriação por interesse social e, sobretudo, aponta um norte à legislação infraconstitucional, no sentido de assegurar a justa distribuição e igual oportunidade de acesso à propriedade. Pela primeira vez, em nosso ordenamento, passou-se a exigir do proprietário não somente uma abstenção, um não-fazer, mas uma teia de atos positivos, concretos, de exploração econômica do imóvel rural. A propriedade passou a ser um direito-dever, em nosso direito positivo”. (LOUREIRO, 2003). No entanto, embora o dispositivo trate, supostamente, de um avanço social sem precedentes, como constata Loureiro, ele não passou de uma norma programática limitada, visto que em um país em que os direitos sociais não passam de eternas promessas, as classes dominantes, que em sua maioria assumem até hoje a cúpula política do governo, não hesitariam em neutralizar o dispositivo em favor do seu interesse de manter as relações sociais injustas para os menos favorecidos.

A Constituição de 1946 vigorou durante muito tempo no Brasil, inclusive após o Golpe Militar que derrubou o governo de João Goulart, sendo substituída apenas em 1967, por exigência do Ato institucional nº 04. Incorporando uma série de princípios presentes nos atos institucionais decretados até o momento e profundamente modificada pela Emenda Constitucional de 1969, a Carta semi-outorgada de 1967 que tinha como finalidade a legalidade e a institucionalização da ditadura militar implantada após o Golpe de 1964, explicita como fim da ordem econômica e social o princípio da função social da propriedade, evidenciando a necessidade de coexistência de interesses da sociedade e do proprietário no Art. 160 – “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: III - função social da propriedade”. E ainda é posta como direito inviolável da pessoa humana pelo Art. 153 – “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade”. É nesse contexto que pela primeira vez, a propriedade é colocada tanto como direito e garantia individual, quanto no titulo da ordem econômica e social.

III. DIREITO DE PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Hodiernamente, é inviável conceber o direito à propriedade de forma absoluta e individualista, de modo que o proprietário não mais pode usar de seu bem ou deixar de usá-lo de modo a preterir o bem coletivo. Perde vez a avultada importância dada aos direitos individuais, que marcou a consolidação do Estado Liberal e o desenvolvimento da economia industrial, na primeira metade do século XIX, uma vez que o Estado não-interveniente burguês se faz excludente, no sentido não considerar a distinção entre legalidade e legitimidade.

A história atestou que a premissa de que “se todos defendessem os seus próprios interesses, o interesse coletivo estaria automaticamente protegido” não vale na vida real. Destarte, o tocante à instituição da propriedade considera, hoje, a orientação dos direitos fundamentais agraciados pelas segunda e, mormente, terceira gerações ou dimensões de direitos. A saber:

Os Direitos Fundamentais de Segunda geração são os ligados ao valor igualdade, os direitos sociais, econômicos e culturais. São direitos de titularidade coletiva e exigem uma atuação do Estado; os Direitos Fundamentais de Terceira dimensão são os ligados ao valor de fraternidade ou solidariedade, relacionados ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade sobre patrimônio comum da humanidade e ao direito de comunicação. São os trans-individuais destinados à proteção do gênero humano.

A base dos direitos sociais é a ideia de que todo cidadão tem de ter acesso a bens materiais mínimos, como forma de garantir o pleno aproveitamento de seus direitos civis. Entre os direitos sociais básicos, podemos elencar: o direito à educação, à moradia, ao lazer, à previdência social e à saúde.

É nessa perspectiva de que os direitos civis não são suficientemente garantidos em si, do Estado democrático de Direito, que se edificam as CF’s brasileiras, mormente a de 1988, que já traz esse debate mais amadurecido de longa data.

A seguir, apresentar-se-á o modo como é abordada a instituição propriedade na Carta Magna atual, salvaguardada pelo Direito, sem perder, contudo, o foco na função social da propriedade: o caráter irrestrito da propriedade é ponderado na óptica do caráter social, propriedade passar a ser um direito subjetivo “pleno” e não ”absoluto” e vislumbra-se a funcionalização total do instituto.

A Constituição de 1988, ainda vigente, estabelece como norma e princípio o atendimento à função social da propriedade, que restringe o direito de propriedade e se estabelece como um direito social e um dever individual do proprietário:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

No Novo Código Civil Brasileiro: (Lei nº. 10.406, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003) a inovação está no § 1º do art. 1.228, o qual enfatiza as finalidades econômicas e sociais do direito de propriedade:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Também a Carta vigente inova, mais adiante, a história do ordenamento constitucional brasileiro, ao traçar os contornos da função social da propriedade fundiária urbana e rural. Isso porque não há uma única espécie de propriedade e a Constituição traz diferenciação de tratamento a cada uma delas, inclusive no que concerne ao cumprimento da função social. Teremos, assim, uma função social da propriedade urbana, uma outra da propriedade rural, mais uma da propriedade de terras indígenas e assim por diante.

A função social da propriedade fundiária urbana

A Carta de 1988 inova ao trazer o conteúdo do artigo 182, § 2º, que relaciona a função social deste tipo de propriedade com as exigências fundamentais de ordenação da cidade:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por  objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§ 1.º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política  de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2.º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende àsexigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

No mesmo artigo, em seu § 4º, fica facultado ao município impor “sanções” ao uso degenerado da propriedade urbana, podendo atingir o ápice com a desapropriação, apenas em última instância:

§ 4.º É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública demissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

Está a propriedade, em consequência da perda do caráter absoluto e intangível dos primórdios, assumindo uma situação objetiva, constituída, precipuamente, de deveres impostos aos proprietários, cujas prerrogativas vinculam-se ao cumprimento desses deveres, submetidos, entretanto, à utilidade pública. O texto constitucional pátrio vigente, embora garanta reiteradas vezes o direito à propriedade, ressalva a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.

Um outro ponto que apresenta uma sanção ao uso incorreto do imóvel urbano, privilegiando aquele que se utiliza adequadamente do mesmo, é a hipótese da perda da  propriedade em virtude de usucapião especial, inserido no texto constitucional através o artigo 183:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem  posição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Ou seja, o proprietário de espaço físico urbano pode perder sua posse se não utilizá-lo e um terceiro passar a fruir do mesmo para sua moradia, em determinadas condições, o que se justifica pela incoerência dessa atitude com a finitude dos bens materiais imóveis: se não há recursos para todos, por que manter os que existem subutilizados? O proprietário do imóvel urbano está sempre sujeito à obrigação de “fazer”, para que o seu direito de propriedade cumpra a função social que lhe cabe.

A função social da propriedade fundiária rural

Se o proprietário de propriedade fundiária rural provoca o seu desvirtuamento, por exemplo, servindo-se da terra para fins especulativos, em vez de priorizar a produção agropecuária, está desrespeitando a todas as outras pessoas da sociedade em que se insere, pois as necessidades delas não poderão ser integralmente satisfeitas.

A propriedade rural, para cumprir corretamente à sua função social, deve atender ao disposto no art. 186:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Cumpre alçar que o pleno respeito ao meio ambiente é colocado como elemento necessário ao cumprimento da função social da propriedade agrícola pelo inciso II do artigo 186 da CF/88 e não poderia ser diferente numa Carta que prima pelo direito ambiental, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as gerações vindouras. Daí deriva o moderno conceito de equidade intergeracional, que consiste na organização de uma relação obrigacional que possua no polo passivo, como devedora, a geração presente, e no polo ativo, como credoras, as gerações humanas descendentes.

A Constituição também garante legitimidade à União para prover reforma agrária nos moldes prescritos:

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com  cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte nos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

A Constituição estabeleceu uma sanção possível de ser aplicada quando não se cumpre a função social, que é a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, excepcionando a pequena propriedade e a propriedade produtiva. Mas, por outro lado, a ordem infraconstitucional não está impedida de estabelecer outras sanções, de natureza diversa, aplicáveis ou mesmo específicas para tais casos, como por exemplo, multas civis. Caso contrário, teríamos que admitir que a função social dessas propriedades ou não existe ou se resumiria em não constituir latifúndios ou serem produtivas. Nesse caso, seríamos obrigados a admitir, por exemplo, que uma pequena propriedade, que se tornou produtiva através de trabalho escravo e de desmatamentos desarrazoados, cumpre corretamente sua função social, o que seria um absurdo jurídico e moral.

Destarte, da meticulosa análise do exposto, decorre observar que os tempos modernos trouxeram a perda da condição de privilégio excepcional e da especial proteção que gozava a propriedade no século XIX. Agora, está impressa a ideia de função social, elemento intrínseco, através da qual a propriedade deverá estar voltada para o bem geral, de toda a sociedade, e não apenas para o atendimento das necessidades do proprietário. Além disso, deve-se notar essa função social como um princípio, não como regra, no sentido de perceber que se trata de um conceito indeterminado, de aplicação vasta, ilimitada.

CONCLUSÃO

Como foi possível perceber, a concepção sobre o direito de propriedade mudou de forma significativa ao longo da história, buscando sempre responder de forma eficaz as demandas que o contexto sociocultural específico lhe apresentava. Pode-se perceber que a evolução desse direito partiu de uma concepção extremamente individualista, que via o direito de propriedade como um conjunto de prerrogativas exclusivas do proprietário, que não poderiam ser de maneira alguma violadas; para chegar à concepção contemporânea, que coloca a propriedade como um instituto jurídico socialmente situado, que confere prerrogativas não só ao proprietário, mas à sociedade como um todo.

A mudança de uma concepção para outra não foi automática e repentina, mas ocorreu de forma gradual, em sintonia com as transformações históricas da sociedade. A primeira concepção, por exemplo, é fortemente influenciada pela filosofia iluminista e pelos ideais políticos do liberalismo burguês, que cumpriu um papel importante na crítica ao absolutismo despótico do Antigo Regime e contribuiu, portanto, para o estabelecimento do Estado de Direito. Mas na medida em que os conflitos sociais foram mudando, também foram mudando as demandas sociais. A desigualdade social, a concentração fundiária e a organização dos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros fatores, provocaram uma mudança na forma de conceber os direitos. Nesse momento, não basta simplesmente a não intervenção do Estado para preservar os direitos fundamentais, mas cabe a sua atuação proativa no intuito de garantir de forma substancial, e não meramente formal, os direitos dos cidadãos. É só nesse contexto que é possível que a ideia de função social da propriedade se desenvolva.

No entanto, cabe ressaltar que por mais que o pensamento jurídico seja um fator construtivo das realidades sociais, conforme citado inicialmente, não é razoável supor que as mudanças no ordenamento jurídico sejam capazes de, sozinhas,  solucionar os problemas que as geraram. Prova disso é o estado atual da questão fundiária, que parece cada vez mais longe de ser solucionada. Talvez seja mais coerente partir da perspectiva que o direito, sem a pretensão de ser a solução definitiva dos problemas sociais, contribui para colocar essas questões em discussão e fornece os instrumentos para lidar com elas. 

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Sobre os autores
Renê Ricarte

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Ana Beatriz Belo de Carvalho

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Ícaro Sol Almondes

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Lorena Veloso dos Santos

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Lucas Borges Carvalho Piauilino

Lucas Borges Carvalho Piauilino

Paula Maria Leal Alvarenga

Lucas Borges Carvalho Piauilino

Paula Maria Leal Alvarenga

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Informações sobre o texto

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