~~ Criada em maio de 2012 (Lei 12528/2011), para averiguar os crimes cometidos contra o povo brasileiro durante o regime da ditadura militar, a Comissão da Verdade (CV) pode não alcançar resultados imediatos. Alguns colaboradores, inclusive, foram mortos e seus documentos surrupiados porque não havia nenhuma segurança pessoal. Ninguém deve ser condenado ou preso, ainda que tenham cometido crimes imprescritíveis. E mesmo que sejam condenados, será num processo judicial infindável, e é provável que morram antes de ver o veredicto final de crimes cometidos há 50 anos. No entanto, mesmo sem condenações individuais ou poucas, se houver, está em jogo uma contribuição jurídica notável que podemos conferir ao mundo todo. Melhor do que o feito alcançado pelo África do Sul, quando o simples depoimento e a confissão criminosa eximiram de pena os matadores do Estado. Minha tese é de que o Brasil não apenas passará a limpo sua história – julgando os torturadores e os assassinos – como estabelecerá, juridicamente, que foram atos orquestrados pelo Estado. “Não foram atos isolados de psicopatas”, como disse Pedro Dallari, presidente nacional da Comissão da Verdade. Assim, não sendo ações individuais, descordenadas, logo, seriam ações sistêmicas, ou seja, comandadas pelo Estado da ditadura militar, contra uma parcela significativa de seu povo: a imensa maioria não era guerrilheira, apenas críticos do sistema de repressão.
Depois do AI-5 (Ato Institucional no 05, de 13/12/1968), a repressão pública, a tortura, o desterro, a morte em série, constituíram verdadeiras políticas públicas; tal qual a educação de massas acéfala que se implantou. Desse modo, a CV poderá configurar juridicamente os crimes cometidos pelo Poder Político, como real Terrorismo de Estado. Por décadas, o Brasil não sucumbiu apenas à ditadura do Poder Político, mas praticou sistematicamente o Terrorismo de Estado e o “democídio”: crime intencional contra uma parcela de seu povo. Assim os algozes da democracia, na prática da tortura e do crime de assassinato político, e sob o comando direto do Estado, teriam cometido crimes hediondos (Lei nº 8.072/90), isto é, crimes de atentado às cláusulas pétreas (Art. 60, § 4º da CR/88) – por isso, imprescritíveis e inafiançáveis. Porém, como disse, agiram por meio do sistema de controle político; suas ações, como civis e militares, foram coordenadas e dirigidas do alto da cadeia de comando político. Então, o real condenado seria o Estado brasileiro. Sob esta condenação, assim como é o nazismo hoje, defender a “volta da ditadura” também seria ideologia equiparada a de crimes hediondos (etimologicamente: horrendos, repugnantes). Não tanto pela caça às bruxas do passado, vendo o presente-futuro da democracia e do império dos direitos humanos, defender a ditadura militar ou civil seria considerado crime contra o povo; os atos do passado, do poder do Estado, advertem para a série de crimes institucionais que podem ser praticados. A CV, muito além das condenações individuais, poderá prestar imenso tributo jurídico à democracia, equiparando-se promissores ditadores aos crimes contra a Humanidade. Seus defensores seriam condenados como o são os neonazistas atuais.
A Constituição do Reich Alemão de 11/08/1919 - Constituição de Weimar - forneceu os subsídios jurídicos de que o nazismo precisava para se “legalizar”. Artigo 48, §2º: Caso a segurança e a ordem públicas estejam seriamente ameaçadas ou perturbadas, o Presidente do Reich (Reichspräsident) pode tomar as medidas necessárias a seu restabelecimento, “com auxílio, se necessário, de força armada”. Para esse fim, “pode ele suspender, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais” (Grundrechte) fixados nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 154 (grifo meu). Ao revés disso, a CV colocaria o Brasil no miolo do Estado Democrático de Direito Internacional, com a maior salvaguarda jurídica contra os atentados à ordem republicana e democrática: defender a ditadura é como defender o nazismo, pelas graves violações dos direitos fundamentais. Expressamente no artigo 5º, XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura ... o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CF/88). Podemos prestar uma imensurável contribuição jurídica à Humanidade, em defesa da República Democrática, resta ver se teremos capacidade moral.
A Comissão da Verdade (CV) pode não alcançar resultados imediatos.
Vinício Carrilho Martinez
Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).
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