1.INTRÓITO
Encontram-se ainda controversas, principalmente nos juízos monocráticos, as decisões envolvendo o art. 135, inciso III, do Código Tributário Nacional (CTN) que assim dispõe:
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – (...)
II – (...)
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
Alguns julgados versam que o simples inadimplemento das obrigações tributárias pelas pessoas jurídicas configura a "infração de lei" referida no artigo supracitado, já que o tributo é uma prestação pecuniária instituída em lei ( art. 3º do CTN).
Outros consideram, como pressuposto de aplicabilidade deste dispositivo, a comprovação da má-fé, abuso de poder ou excesso de mandato nos atos de gestão das pessoas elencadas no inciso III deste artigo.
Diante desta divergência de opiniões, torna-se cabível a exposição de algumas considerações sobre o tema, sem o intuito de exauri-lo, para a obtenção de uma interpretação precisa deste dispositivo.
2. A TEORIA DA DESPERSONALIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA
O art. 20 do Código Civil estabelece que "as pessoas jurídicas têm existência distinta dos seus membros." Ou seja, é considerada uma realidade autônoma, com personalidade jurídica própria, capaz de direitos e obrigações. Uma pessoa jurídica pode postular em juízo em nome próprio, comprar, vender, dar quitação, independentemente da vontade das pessoas físicas que dela fazem parte.
Em virtude desta situação – da grande autonomia e independência da pessoa jurídica em relação à responsabilidade limitada dos sócios – muitas vezes são desviados os objetivos estabelecidos no ato constitutivo da empresa, servindo esta de cobertura para atos ilícitos ou abusivos por parte de uma pessoa física que tem poderes para representar a vontade da sociedade.
Na ocorrência destes fatos surge a figura da desconsideração da pessoa jurídica, ou, o disregard of the legal entity, do direito anglo-saxão. Segundo Maria Helena Diniz:
A desconsideração ou penetração permite que o magistrado não mais considere os efeitos da personificação ou da autonomia jurídica da sociedade para atingir e vincular a responsabilidade dos sócios, com o intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos de direito cometidos, por meio da personalidade jurídica, que causem prejuízos ou danos a terceiros. Convém lembrar, ainda, que a disregard doctrine visa atingir o detentor do comando efetivo da empresa, ou seja, o acionista controlador e não os diretores assalariados ou empregados, não participantes do controle acionário. Pressupõe, portanto, a utilização fraudulenta da companhia pelo seu controlador,...
Algumas normas legais já dispuseram a respeito da responsabilização dos sócios pelo excesso de mandato ou demais situações "abusivas", vejamos:
- Decreto n.º 3.708/1919 (sociedades por quotas de responsabilidade limitada) art. 10. Os sócios-gerentes ou que derem o nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.
- Lei n.º 6.404/1976 (sociedades por ação) art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: II – com violação da lei ou do estatuto.
- Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor) art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Ou seja, quando o detentor do comando efetivo da empresa age com abuso de poder, excesso de mandato, infração à lei ou ao estatuto, e terceira pessoa, jurídica ou física, sofre prejuízos ou danos, responde este (detentor do comando da pessoa jurídica), pessoalmente, pelos prejuízos que causar.
3.RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
3.1. A Incidência da Norma de Responsabilidade.
O art. 135 do CTN, objeto do atual estudo, encontra-se no Capítulo V do referido código que é denominado: "Responsabilidade Tributária". Para melhor entender o funcionamento da responsabilidade tributária, convém esclarecer e distinguir quem são os possíveis sujeitos passivos da relação jurídico-tributária.
O Art. 121 do CTN dispõe o seguinte:
Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;
II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.
O contribuinte, segundo Marçal Justen Filho, "é uma qualificação do sujeito pressuposta pela Constituição para ocupar o pólo passivo das respectivas relações jurídico-tributárias, em face da atribuição de competências sobre as matérias previamente demarcadas." E o sujeito passivo responsável, segundo Heleno Taveira Tôrres, é aquele que "está obrigado ao pagamento do tributo também por força de lei, seja pela sua presença ou participação da sua vontade na formação do fato jurídico tributário, seja pelos laços jurídicos que mantém com o sujeito definido pela legislação como contribuinte".
Ou, no mesmo sentido, porém observado sob outro prisma: o sujeito passivo contribuinte é o que realiza a hipótese de incidência da regra jurídica especificamente tributária. Esta regra é a que incide sobre fato lícito, irradiando relação jurídico-tributária entre um particular (sujeito passivo), na condição de devedor da obrigação principal (pagamento de tributo ou penalidade pecuniária), e um órgão estatal, na condição de credor; e o sujeito passivo responsável é o que concretiza todos os atos elencados no pressuposto da regra jurídica especificamente de responsabilidade, que tem por conseqüência a imposição do cumprimento da prestação jurídico-tributária a terceira pessoa, vinculada com o fato gerador da obrigação principal, podendo excluir totalmente a responsabilidade do contribuinte ou fazer com que o responsável cumpra a obrigação de forma supletiva ao contribuinte.
Alfredo Augusto Becker exemplificou a responsabilidade com as respectivas incidências em duas regras jurídicas distintas da seguinte forma:
A lei determina que o vendedor do imóvel, dentro de determinado prazo, deverá recolher o imposto de transmissão. Se, dentro deste prazo, o vendedor não recolheu o imposto de transmissão e se a lei, somente depois de ocorrer este fato (não recolhimento pelo vendedor em determinado prazo do imposto de transmissão), permite ao Estado exigir aquele imposto do Tabelião, então, neste caso, e unicamente neste caso: existe a figura do responsável legal tributário.
A primeira regra jurídica tem por hipótese de incidência a transmissão do direito real e a incidência dessa primeira regra jurídica tem, como efeito jurídico, a criação da relação jurídica tributária em que figura no pólo negativo o vendedor.
A Segunda regra jurídica tem por hipótese de incidência: uma omissão, isto é, a inadimplência da prestação jurídica naquela primeira relação jurídica. Realizando-se a hipótese de incidência desta segunda regra jurídica (a referida omissão), ela incide e o efeito jurídico irradiado consiste no seguinte: o nascimento de uma segunda relação jurídica em cujo pólo positivo está o Estado e em cujo pólo negativo figura o Tabelião na condição de responsável tributário.
No exemplo acima citado, percebe-se que o pressuposto da segunda regra jurídica (a especificamente de responsabilidade) é a omissão do cumprimento da obrigação principal da primeira regra jurídica (a especificamente tributária), isto é, o inadimplemento da prestação jurídico-tributária pelo contribuinte.
Porém, não é somente nesta hipótese (não satisfação da prestação tributária) que surgirá a responsabilidade tributária. O legislador poderá criar outras condições (a palavra condição está sendo usada no sentido coloquial, já que, segundo o art. 117 do Código Civil Brasileiro: não se considera condição a cláusula, que não derive exclusivamente da vontade das partes, mas decorra necessariamente da natureza do direito, a que acede) ou situações para servirem de hipótese de incidência de uma regra jurídica que terá por conseqüência a imposição do cumprimento da prestação tributária a terceira pessoa, na qualificação de responsável.
3.2. Conceito de Responsabilidade Tributária e suas Espécies.
A Responsabilidade tributária, portanto, "é a imposição legal da sujeição passiva da obrigação tributária a uma pessoa física ou jurídica que, sem revestir a condição de contribuinte, se vincula com o respectivo fato gerador, seja com exclusão da responsabilidade do contribuinte ‘substituto’, seja assumindo com o contribuinte, supletivamente, a responsabilidade total ou parcial (transferência) pelo cumprimento da obrigação", segundo os ensinamentos de Fábio Leopoldo de Oliveira, quando disserta sobre a Responsabilidade na obra coordenada por Ives Gandra da Silva Martins "Curso de Direito Tributário, volume I".
Daí verifica-se que a responsabilidade pode ser atribuída de forma solidária ou substituta ao sujeito passivo responsável. Na responsabilidade solidária, o pagamento do tributo pode ser exigido tanto do contribuinte quanto do responsável, ambos tem o dever de pagar o tributo em sua totalidade. Já na responsabilidade por substituição, o sujeito passivo contribuinte é excluído do dever de cumprimento da obrigação tributária principal, passando a figurar em seu lugar o terceiro responsável.
4. ART. 135 DO CTN – INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
Elucidada a forma de incidência da norma de responsabilidade tributária, assim como alguns casos em que a personalidade jurídica da pessoa jurídica é desconsiderada para atingir os bens dos sócios, iremos adentrar no objeto do nosso estudo que é a inteligência do art. 135 do Código Tributário Nacional.
Este artigo, dentro do capítulo da "Responsabilidade Tributária", está na Seção III denominada de "Responsabilidade de Terceiros", dividida em dois artigos (134 e 135). O primeiro artigo não será analisado, pois é tema fora do objeto de análise.
Quanto ao segundo artigo, Misabel Derzi, em nota clássica à obra de Aliomar Baleeiro, defendeu que trata-se de uma norma de responsabilidade por substituição: "o art. 135 transfere o débito, nascido em nome do contribuinte, exclusivamente para o responsável, que o substitui".(nosso grifo)
Ou seja, o conseqüente desta norma é a assunção total da responsabilidade tributária pelos diretores, gerentes ou representantes, com a exclusão da compulsoriedade do cumprimeto pecuniário pela pessoa-jurídica-contribuinte (substituição).
Lembrando que esta substituição só ocorrerá quando preenchidos todos os requisitos da hipótese de incidência da norma especificamente de responsabilidade.
No caso do art. 135, inciso III, a hipótese de incidência (extraída do próprio dispositivo legal) é a insuficiência ou o não pagamento da obrigação principal pelo contribuinte, resultante de atos praticados, pelos responsáveis, com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
De extrema importância, para eliminar a divergência doutrinária acerca da exegese da hipótese de incidência da norma de responsabilidade aqui estudada, é verificar o espírito da lei quanto à expressão "infração de lei".
Derzi lecionou, sobre o alcance da expressão "infração à lei", o seguinte:
O ilícito é assim prévio ou concomitante ao surgimento da obrigação (mas exterior à norma tributária) e não posterior, como seria o caso do não pagamento do tributo. A lei que se infringe é a lei comercial ou civil, não a lei tributária, agindo o terceiro contra os interesses do contribuinte. Daí se explica que, no pólo passivo, se mantenha apenas a figura do responsável, não mais a do contribuinte, que viu, em seu nome, surgir dívida não autorizada, quer pela lei, quer pelo contrato social ou estatuto.
Em consonância com o estudo elaborado por Derzi e buscando a razão da lei (ratio legis) dentro do ordenamento jurídico brasileiro, nota-se que para haver a subsunção da norma sob exame deverá existir o mesmo abuso de poder, excesso de mandato, infração à lei ou ao estatuto, necessário para configurar a disregard of the legal entity.
Ressalte-se que o art. 135 do CTN não é um caso em que haverá a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica para atingir os bens dos sócios. É, no entanto, uma norma de responsabilidade por substituição, onde o responsável passa a figurar no pólo negativo de uma relação jurídica com o Estado.
A comparação (analogia) que se faz entre o artigo 135 do CTN e a disregard doctrine é que em ambos os casos a pessoa jurídica, através de seu controlador, é utilizada com dolo, má-fé, para fins diversos dos estabelecidos no estatuto social, ou nas leis vigentes. E, nestas mesmas situações, o responsável pela utilização "fraudulenta" da empresa responderá pelos danos causados. A diferença existente é que em um caso há a incidência de norma de responsabilidade tributária por substituição e em outro caso há a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica para atingir os bens dos sócios.
Porém, apesar das diferenças, a ratio legis para a existência dos dois institutos jurídicos é a mesma, por isso eles devem ser interpretados semelhantemente.
Ao criar o dispositivo estudado, o legislador não se expressou de forma suficiente para uma aplicação precisa da regra, deixando existir a chamada "lacuna" no ordenamento jurídico. A forma mais coerente de suprimir este "espaço vazio" e alcançar a completude do direito é a utilização do método da auto-integração, onde busca-se, dentro do próprio ordenamento jurídico estudado, o preenchimento da "falha legislativa", seja utilizando-se do procedimento da analogia, seja recorrendo-se aos princípios gerais do direito.
No presente caso foi utilizado o procedimento da analogia. Segundo Norberto Bobbio:
Entende-se por "analogia" o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante.
(...)
A analogia é certamente o mais típico e o mais importante dos procedimentos interpretativos de um determinado sistema normativo: é o procedimento mediante o qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos expressamente regulamentados.
(...)
Por razão suficiente de uma lei entendemos aquela que tradicionalmente se chama a ratio legis. Então diremos que, para que o raciocínio por analogia seja lícito no Direito, é necessário que os dois casos, o regulamentado e o não-regulamentado tenham em comum a ratio legis
Esta comparação que se faz entre os institutos diversos do direito no mesmo ordenamento jurídico não é uma simples confrontação, mas sim um modo de alcançar a plenitude e unicidade do sistema jurídico, num método de interpretação sistemática. Segundo a abalizada doutrina de Pontes de Miranda:
Direito é sistema de regras, sistema lógico, que satisfaz as exigências metalógicas de coerência, ou lógicas de consistência. As regras jurídicas hão de construir sistema. Nenhuma regra jurídica é sozinha, nenhuma é gota, ainda quando tenha sido o artigo ou parágrafo único de uma lei. Cairia, como gota, no copo cheio de líquido colorido, e a sua cor juntar-se-ia às das outras gotas que lá se pingaram, noutros momentos."
Achar que o simples inadimplemento da obrigação tributária seria o necessário para desencadear a responsabilidade tributária prevista no art. 135 do CTN seria analisar literalmente uma "gota" do sistema, seria aplicar a lei porque está na lei, e, prosseguindo com as lições autorizadas de Pontes de Miranda, "O aplicar na lei porque está na lei, o resolver pelo sentido literal, porque assim quis o legislador, corresponde ao fazer porque está no Evangelho, no Tamulde, no Korão, no Corpus Iuris, porque nosso pai fez e ao ingênuo ‘porque a mamãe disse’ das criancinhas".
Portanto, o simples inadimplemento das obrigações tributárias não é o suficiente para completar a hipótese de incidência do art. 135 do CTN, e sim, um risco natural aos negócios, pressuposto na própria natureza da pessoa jurídica.
Interpretando sistematicamente a estrutura jurídica nacional como um conjunto lógico e consistente de normas, considera-se o não recolhimento a contento do tributo apenas uma mora da empresa, tendo como requisito imprescindível da imposição da norma especificamente de responsabilidade por substituição insculpida no art. 135 do CTN, o abuso de poder, excesso de mandato, o ilícito prévio ou concomitante ao surgimento da obrigação tributária.
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