Calcado na teoria da realidade técnica, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece, por ficção legal, que as pessoas jurídicas são conjuntos de pessoas ou de bens dotados de personalidade jurídica própria. Assim, faz sentido a sua inclusão no conceito de consumidor, conforme prescreve o art. 2º, caput, do CDC: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.”
Mas é preciso observar que os critérios de aferição da pessoa jurídica consumidora não se estabeleceram de forma pacífica. Há forte dissensão doutrinária e jurisprudencial quanto à interpretação do significado da expressão “destinatário final”. Nesse sentido, pelo menos duas teorias disputam a preferência dos intérpretes da legislação consumerista: de um lado, a teoria finalista (ou teoria subjetiva) associa o conceito de consumidor ao do destinatário final econômico, a frisar que somente aquele que utiliza produto ou serviço para fins não profissionais (isto é, fins privados, pessoais, de uso próprio ou de sua família, e não para revenda) pode ser juridicamente considerado consumidor; de outro lado, a teoria maximalista (ou teoria objetiva) associa o conceito de consumidor ao do destinatário final fático, importando considerar consumidor todo aquele que se encontra posicionado na última etapa da cadeia de consumo, de modo que depois do utente não haja mais ninguém a quem se possa transmitir o produto ou serviço adquirido, independentemente da finalidade da aquisição (se profissional ou não).
Atualmente, a jurisprudência do STJ pacificou a interpretação do art. 2º do CDC à luz da teoria finalista, consoante se depreende deste aresto recente na matéria (grifo meu):
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. UTILIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO INSUMO. AUSÊNCIA DE VULNERABILIDADE. NÃO INCIDÊNCIA DO CDC. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. Esta Corte Superior adota a teoria finalista para a definição do conceito de consumidor, motivo pelo qual não se aplica a legislação consumerista quando o usuário do serviço utiliza a energia elétrica como insumo, como se verifica no caso dos autos.
2. O que qualifica uma pessoa jurídica como consumidora é aquisição ou utilização de produtos ou serviços em benefício próprio; isto é, para satisfação de suas necessidades pessoais, sem ter o interesse de repassá-los a terceiros, nem empregá-los na geração de outros bens ou serviços. Desse modo, não sendo a empresa destinatária final dos bens adquiridos ou serviços prestados, não está caracterizada a relação de consumo (AgRg no REsp 916.939/MG, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJe 03.12.2008).
3. Agravo Regimental desprovido.
(STJ, T1 – Primeira Turma, AgRg no REsp 1.331.112/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 21/08/2014, p. DJe 01/09/2014).
Sem embargo do posicionamento jurisprudencial firmado em favor da teoria finalista, o próprio STJ tem cuidado de mitigá-la, abrandá-la, em ordem a impedir que sua aplicação pura pudesse constituir-se em fator de injustiça da decisão. Assim é que o tribunal, uma vez caracterizada a vulnerabilidade da parte no caso concreto, tem-na considerado consumidor, mesmo que não o fosse de acordo com as premissas teóricas da teoria finalista. Portanto, é a vulnerabilidade da pessoa física ou jurídica que a torna consumidora, de conformidade com o que se expôs neste precedente:
CONSUMIDOR. DEFINIÇÃO. ALCANCE. TEORIA FINALISTA. REGRA. MITIGAÇÃO. FINALISMO APROFUNDADO. CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. VULNERABILIDADE. 1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. 2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. 3. A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. 4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). 5. A despeito da identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora. 6. Hipótese em que revendedora de veículos reclama indenização por danos materiais derivados de defeito em suas linhas telefônicas, tornando inócuo o investimento em anúncios publicitários, dada a impossibilidade de atender ligações de potenciais clientes. A contratação do serviço de telefonia não caracteriza relação de consumo tutelável pelo CDC, pois o referido serviço compõe a cadeia produtiva da empresa, sendo essencial à consecução do seu negócio. Também não se verifica nenhuma vulnerabilidade apta a equipar a empresa à condição de consumidora frente à prestadora do serviço de telefonia. Ainda assim, mediante aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ, fica mantida a condenação imposta atítulo de danos materiais, à luz dos arts. 186 e 927 do CC/02 e tendo em vista a conclusão das instâncias ordinárias quanto à existência de culpa da fornecedora pelo defeito apresentado nas linhas telefônicas e a relação direta deste defeito com os prejuízos suportados pela revendedora de veículos. 7. Recurso especial a que se nega provimento.
(STJ, T3 – Terceira Turma, REsp 1.195.642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13/11/2012, p. DJe 21/11/2012).
É possível também se invocar a teoria finalista mitigada (ou teoria finalista aprofundada) para autorizar a incidência da lei consumerista àqueles relações em que a parte vulnerável não seja tecnicamente a destinatária final fático e econômico do bem ou do serviço. É o pensamento colhido do julgado seguinte (grifo meu):
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO E NOVAÇÃO DE DÍVIDA. RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIA FINALISTA MITIGADA. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL. RAZOABILIDADE.
1.- Tendo o Tribunal de origem fundamentado o posicionamento Adotado com elementos suficientes à resolução da lide, não há que se falar em ofensa ao artigo 535, do CPC.
2.- A jurisprudência desta Corte tem mitigado a teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade. Precedentes.
3.- A convicção a que chegou o Acórdão acerca do dano e do aval decorreu da análise do conjunto fático-probatório, e o acolhimento da pretensão recursal demandaria o reexame do mencionado suporte, obstando a admissibilidade do Especial os enunciados 5 e 7 da Súmula desta Corte Superior.
4.- A intervenção do STJ, Corte de caráter nacional, destinada a firmar interpretação geral do Direito Federal para todo o país e não para a revisão de questões de interesse individual, no caso de questionamento do valor fixado para o dano moral, somente é admissível quando o valor fixado pelo Tribunal de origem, cumprindo o duplo grau de jurisdição, se mostre teratológico, por irrisório ou abusivo.
5.- Inocorrência de teratologia no caso concreto, em que foi fixado o valor de indenização em R$ R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais), devido pelo ora Agravante ao autor, a título de danos Morais decorrentes de inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito.
6.- Agravo Regimental improvido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.413.889/SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 27/03/2014, p. DJe 02/05/2014).
Nessa toada, cumpre sublinhar que a discussão derredor da teoria aplicável à definição do consumidor destinatário final de produto ou serviço não é despicienda. Há várias implicações dela decorrentes, inclusive no campo processual.
Do ponto de vista do Processo, a incidência do CDC acarreta alterações na fixação do foro competente para o julgamento da causa. Se se tratar de causa cível comum, ter-se-á a aplicação da regra geral de competência territorial no Processo Civil, a impor a propositura da demanda no foro do domicílio do réu (CPC, art. 94). Em contrapartida, se se tratar de causa consumerista, o foto competente para o ajuizamento da demanda será o do domicílio do autor-consumidor (CDC, art. 101, I).
Eis os dispositivos aplicáveis à espécie:
CPC, art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu.
CDC, art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:
I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;
[...]
Uma boa exemplificação prática da repercussão que a incidência do CDC para fixação do foro competente pode ser encontrada em precedente julgado pela Terceira Turma do STJ (REsp 1.321.083/PR). No caso concreto, uma empresa do ramo imobiliário comprou avião para transportar de seus diretores, funcionários e clientes. No entanto, em face de alegado inadimplemento contratual da fornecedora do veículo de transporte aéreo, a compradora ajuizou ação de resolução do contrato, a pedir a devolução dos valores que antecipara a título de arras confirmatórias da compra da aeronave.
O ponto nevrálgico da discussão levada ao STJ dizia respeito ao foro competente para o julgamento da lide, já que a demanda havia sido proposta na cidade de Curitiba/PR, sede da empresa compradora do avião. Tal propositura evidentemente partia do suposto de que a compradora era pessoa jurídica consumidora, alicerçando a sua escolha de unidade territorial no art. 101, I, do CDC. Diante disso, a empresa vendedora opôs exceção de incompetência, a sustentar que a relação discutida tinha caráter paritário, motivo pelo qual não se poderia falar em relação de consumo. Consequentemente, uma vez afastado o CDC, aplicar-se-ia o CPC, diploma que regula a competência de foro, a impor o ajuizamento da ação na cidade de Belo Horizonte/MG, sede da empresa vendedora.
Para dirimir tal controvérsia, era necessário inicialmente aferir se a pessoa jurídica compradora podia ser considerada “consumidor”. Dessa maneira, recordando-se a teoria finalista mitigada, é possível chegar à conclusão de que uma pessoa jurídica pode enquadrada como consumidora quando não utiliza os produtos ou serviços do fornecedor como meio (insumo) para confeccionar outros produtos ou serviços a serem oferecidos no mercado de consumo. Por outras palavras, à luz do entendimento jurisprudencial prevalecente, a pessoa jurídica é consumidora quando adquire produto ou serviço como destinatária final, utilizando-o para atender a uma necessidade sua (própria, pessoal, não profissional), e não dos seus clientes.
Tais fundamentos pautaram a avaliação do caso concreto no STJ. Os ministros da Terceira Turma entenderam que o avião havia sido comprado com o propósito de satisfazer uma necessidade própria da empresa (transporte de diretores, funcionários e clientes), que é de todo incompatível com o serviço que ela presta no mercado de consumo. Logo, a aeronave não podia ser considerada insumo na cadeia produtiva do fornecedor do serviço imobiliário, senão como bem móvel adquirido com vistas à satisfação de necessidades próprias, particulares, privadas, pessoais, não profissionais. Daí a conclusão unânime do colegiado no sentido de que é admissível a incidência na relação interempresarial da Lei 8.078/90.
Vejamos como ficou ementado o acórdão:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. COMPRA DE AERONAVE POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE IMÓVEIS. AQUISIÇÃO COMO DESTINATÁRIA FINAL. EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO.
1. Controvérsia acerca da existência de relação de consumo na aquisição de aeronave por empresa administradora de imóveis.
2. Produto adquirido para atender a uma necessidade própria da pessoa jurídica, não se incorporando ao serviço prestado aos clientes.
3. Existência de relação de consumo, à luz da teoria finalista mitigada. Precedentes.
4. Agravo regimental desprovido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.321.083/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09/09/2014, p. DJe 25/09/2014)
A consequência direta do reconhecimento da empresa compradora do avião qual pessoa jurídica consumidora dá-se no plano das normas aplicáveis à fixação da unidade territorial competente para o exercício da jurisdição. Como se trata de relação de consumo, a regra geral de competência territorial insculpida no caput do art. 94 do CPC (foro do domicílio do réu) fica afastada, a privilegiar-se os ditames processuais previstos na lei consumerista em benefício do consumidor. Por conseguinte, é forçoso entender pela aplicação plenamente válida da faculdade estatuída no art. 101, I, do CDC, a salvaguardar a possibilidade (faculdade) de o consumidor-autor propor a ação no foro do seu domicílio, isto é, no domicílio do autor da demanda – que, no caso concreto, era mesmo a cidade de Curitiba/PR, sede da pessoa jurídica que comprou a aeronave.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 4 de out. 2014.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 4 de out. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, REsp 1.195.642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13/11/2012, p. DJe 21/11/2012). Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.413.889/SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 27/03/2014, p. DJe 02/05/2014). Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T1 – Primeira Turma, AgRg no REsp 1.331.112/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 21/08/2014, p. DJe 01/09/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1.321.083/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09/09/2014, p. DJe 25/09/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 4 de out. 2014.