1. Considerações Preliminares
A Constituição Federal de 1988 surgiu, historicamente, após um longo período de autoritarismo. Por tal circunstância, a Assembléia Nacional Constituinte teve uma grande preocupação em positivar diversos direitos e garantias, como uma forma de reação ao estado anterior. Dentro deste amplo contexto, também está inserida a regra, através do Art. 98, Inciso I, que autoriza a criação dos Juizados Especiais Criminais, permitindo-se expressamente a transação nos crimes de menor potencial ofensivo. Estava autorizada constitucionalmente a implantação de um novo modelo de Justiça Criminal, um modelo consensual.
Contudo, o período posterior à promulgação da Carta Fundante revelou-se tenebroso e sombrio. Com efeito, o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança da comunidade levaram o legislador, atendendo aos reclamos de política criminal do movimento de Lei e Ordem, a buscar soluções, evidentemente inócuas, através da edição de mais leis penais, cada vez mais duras, com sacrifícios de direitos individuais. Expressão máxima desta situação é a Lei 8.072/90, a famosa Lei dos Crimes Hediondos.
Mergulhada nesta desproporcional e irracional inflação do sistema penal, com todos os males que ela acarreta, a doutrina nacional moderna estava ávida por uma reversão do quadro, ou, pelo menos, por um sinal de que nem tudo estava perdido. E este sinal veio através da aprovação da Lei 9.099/95, que empreendeu uma revolução no ordenamento processual penal pátrio.
A doutrina ficou maravilhada. Ad exemplum, leciona o professor Luiz Flávio Gomes: [1]" É uma verdadeira revolução ( jurídica e de mentalidade), porque quebra a inflexibilidade do clássico princípio da obrigatoriedade da ação penal. (...) Um novo modelo de Justiça Criminal será testado: a preocupação central agora já não deve ser só a decisão ( formalista) do caso, senão a busca de solução para o conflito."
Esta justificada empolgação tem gerado alguns equívocos científicos, como no tema em exame.
2. Mitigação do princípio da obrigatoriedade
A Lei 9.099/95 delimitou de forma bem precisa os diversos graus de criminalidade no ordenamento penal pátrio. Inicialmente, há as infrações de menor potencial ofensivo, que tem como resposta estatal a composição civil e, principalmente, a transação penal. Depois, estão delimitados os crimes de médio potencial ofensivo, cuja resposta estatal é a suspensão condicional do processo. Por fim, restam os crimes de alto potencial ofensivo, que devem submeter-se ao processo penal clássico, com suas cerimônias degradantes.
O tema apresentado tem ligação apenas com os crimes de menor potencial ofensivo. Com efeito, nos termos do Art. 76 da Lei em análise, o Ministério Público, não sendo hipótese de promoção de arquivamento, presentes os requisitos legais subjetivos e objetivos, poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa. Ora, nesta situação, não haverá oferecimento de denúncia.
A doutrina, de forma majoritária, interpreta a aplicação do instituto da transação penal como uma mitigação do princípio da obrigatoriedade, vinculando o termo mitigação ao princípio da oportunidade regrada ou discricionariedade regrada [2], e não em seu sentido comum de mero enfraquecimento. Segundo o professor Antonio Scarance Fernandes: [3]" Tem-se afirmado que, com a transação, adotou-se o princípio da discricionariedade regrada ou, ainda, houve mitigação do princípio da obrigatoriedade. Em suma, permanece o princípio da obrigatoriedade, mas no tocante às infrações de menor potencial ofensivo, se presentes os pressupostos, não deve o promotor acusar e sim propor a transação penal. Abriu-se a ele nova alternativa." ( grifo nosso)
A análise crítica desta posição doutrinária passa, necessariamente, pela natureza jurídica da transação penal. Considerá-la um benefício ou um direito subjetivo do autor do fato determina a mitigação ou não do princípio da obrigatoriedade. [4]
3. A transação penal como benefício
Para parte da doutrina, a transação penal não passa de um mero benefício. Deste modo, ainda que o autor do fato preencha todos os requisitos subjetivos e objetivos de ordem legal, o Ministério Público não está obrigado a elaborar a proposta de transação penal.
Nesta linha de raciocínio, configuram-se duas situações. Na primeira, se estiver ausente algum dos requisitos de ordem subjetiva ou objetiva, o Ministério Público está proibido de oferecer a proposta, devendo denunciar. Na segunda, se presentes todos os requisitos, o Órgão Ministerial, que já está obrigado a denunciar [5], pode, através do exercício de uma faculdade, invocando razões de oportunidade e conveniência, propor a transação.
Trata-se, efetivamente, de uma mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Com efeito, nesta segunda situação, já se encontram presentes todas as condições legais exigidas para a promoção da ação penal [6], mas, apesar disso, por razões de oportunidade e conveniência, quando presentes os requisitos autorizadores [7], o Órgão Acusatório pode afastar o princípio da obrigatoriedade, apresentando os termos da proposta.
Assim sendo, nas infrações de menor potencial ofensivo, o princípio da obrigatoriedade perde o seu caráter absoluto. Há uma diminuição da sua rigidez.
4. A transação penal como direito subjetivo
Para a maior parte da doutrina, entretanto, a transação penal é um direito subjetivo do autor do fato. Na presença dos requisitos legais de ordem subjetiva e objetiva, o Ministério Público está obrigado a propor a transação penal. No meu entender, haveria um verdadeiro princípio da obrigatoriedade da transação penal. Neste ponto, lapidar a lição do professor Antonio Scarance Fernandes: [8]" Como salientado, não houve com a transação acolhimento do princípio da oportunidade, pois não pode o promotor de justiça, por critérios de oportunidade e de conveniência, deixar de acusar ou de fazer a proposta. Se estiverem presentes os pressupostos, deve propor a transação penal." ( grifo nosso)
Com a adoção da transação penal, que tem a natureza jurídica de um direito, o legislador, nas infrações de menor potencial ofensivo, criou mais um requisito para a estruturação do princípio da obrigatoriedade.
Nos crimes de médio e grande potencial ofensivo, o princípio da obrigatoriedade permanece com as clássicas exigências. Com efeito, presentes as condições para o regular exercício da ação penal, os pressupostos processuais, o suporte probatório mínimo e, quando a lei expressamente exigir, a condição de procedibilidade [9], o promotor de justiça tem que oferecer a denúncia.
Já nas infrações de menor potencial ofensivo, além destas exigências, com o advento da Lei 9.099/95, é necessária a ausência de um dos requisitos para a transação penal, ou que, ocorrendo a presença de todos, a transação reste frustrada. Só assim o princípio da obrigatoriedade surge, compelindo o promotor a oferecer a denúncia. Como a transação penal é um direito subjetivo do autor do fato, o Órgão Ministerial somente estará legitimado e obrigado a formular a denúncia quando este direito não existir, por faltar um requisito, ou, quando existir, a transação não lograr êxito. [10]
Dentro deste contexto, o princípio da obrigatoriedade resta incólume no ordenamento, pois quando ocorre a sua configuração, o Órgão Acusatório está obrigado a denunciar do mesmo modo como acontece com os crimes de médio e grande potencial ofensivo. Aqui também não há alternativa. Cientificamente, apenas foi acrescentada mais uma exigência nas infrações de menor potencial ofensivo, que não caracteriza uma mitigação, no sentido em que a doutrina emprega a expressão, associando-a à adoção da oportunidade regrada.
5. Conclusão
Adotar a tese de que a Lei 9.099/95 positivou ou não o princípio da oportunidade regrada implica na anterior definição da natureza jurídica do instituto despenalizador da transação penal, como acima demonstrado. Assim sendo, não há uma resposta correta com caráter absoluto. Trilhar um caminho ou outro depende de uma decisão prévia. Contudo, é necessário coerência...
Com efeito, a maior parte da doutrina, apesar de defender que a transação penal é um direito subjetivo do autor do fato, não hesita em afirmar que o princípio da obrigatoriedade foi mitigado. Ora, este equívoco científico só pode ser resultado da empolgação descrita no item 1 deste trabalho.
A adoção do princípio da oportunidade sempre foi um grande objetivo de muitos autores, como uma forma de racionalizar a persecução penal. Em 1993, já afirmava o professor José Antonio Paganella Boschi: [11]" É conhecido o movimento no País em favor dessa tese, sob o argumento de que o princípio da obrigatoriedade contraria a razão de ser do processo penal e, em especial, contraria a razão de ser da instituição do Ministério Público..."
Deste modo, a emoção não pode influenciar na análise científica do tema, sob pena de não se estabelecer corretamente a sua configuração e efeitos. Decorridos cinco anos de vigência da Lei, nota-se ainda um sentimento de insegurança, gerando incertezas em diversos campos de sua aplicação. Este trabalho tenta redirecionar a discussão sobre um dos pontos polêmicos desta revolucionária Lei, contribuindo para o debate acadêmico.
Notas
1. GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo Penal. 2ª ed. rev. atua. e amp., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.9.
2. É redundante falar em discricionariedade regrada, pois toda competência discricionária tem uma regulação legal, sob pena de caracterizar o arbítrio. Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª ed., 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998.
3. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2ª ed. rev. e atua., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.206.
4. Não é objetivo do presente estudo apresentar e criticar as duas teorias. Elas serão utilizadas como premissas de trabalho ao longo do desenvolvimento. Desde já, devo pontuar que entendo a transação penal como direito subjetivo do autor do fato.
5. É sempre bom lembrar que só se questiona sobre transação penal se não for hipótese de promoção de arquivamento.
6. Configurando, assim, o dever-poder do Ministério Público de denunciar.
7. Por isso alguns autores falam em oportunidade regrada.
8. Obra citada, p. 206.
9. É interessante notar que são estes os requisitos obrigatórios para que o promotor possa analisar a existência ou não do direito do autor do fato à transação penal, já que, ausente um deles, deve ser promovido o arquivamento. Há uma evidente relação de prejudicialidade.
10. O autor do fato pode recusar expressamente a proposta ou não comparecer à audiência preliminar, por exemplo.
11. BOSCHI, José Antonio Paganella. Ação Penal: Denúncia, Queixa e Aditamento. Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 30.