RESUMO ADI nº 595/ES
Na ADI nº 595/ES se discutia a iniciativa legislativa do Ministério Público estadual para a proposição de projeto de lei versando sobre a fixação de vencimentos dos membros do Ministério Público e dos seus serventuários. A ADI foi considerada prejudicada porque após o ajuizamento da ação houve reforma da Constituição (Emenda Constitucional nº 19/1998), alterando substancialmente as normas da Constituição que tinham sido originariamente utilizadas como parâmetro para suscitar o controle (cláusulas de parâmetro). Na ADI nº 595/ES também tratou do significado do bloco de constitucionalidade como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais, bem como da necessidade da vigência atual, em sede de controle abstrato, do paradigma constitucional alegadamente violado.
Análise de julgado: ADI nº 595/ES
TEMAS: BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE E PARAMETRICIDADE CONSTITUCIONAL
A ação direta de inconstitucionalidade só foi expressamente previsto na constituição de 1965 pela Emenda Constitucional n.º 16, de 26 de novembro, embora seu exercício fosse realizado por meio da representação interventiva, criada na Constituição de 1934, utilizada de maneira exclusiva ou fundamentalmente como processo de controle de normas como afirma Gilmar Mendes (2005).
É melhor usar a terminologia controle abstrato, pois é mais importante destacar o caráter "abstrato" do que o modo "concentrado" ou "principal" desse tipo de controle. A norma investigada pode ter maior ou menor abstração, o que deve ser observado, é que a característica abstrata dever ser relacionada à avaliação da questão constitucional ser realizada de forma desvinculada da incidência concreta da norma, não em função do tipo de norma sobre a qual pode recair.
O direito constitucional moderno erigiu o controle abstrato de constitucionalidade como uma ferramenta necessária para o bom funcionamento da mecânica constitucional. É o ofício do Supremo Tribunal Federal tirar de vez a lei ou ato viciado do sistema normativo.
O controle abstrato funciona não apenas como mecanismo de limpeza do ordenamento jurídico, hoje também, é uma janela que permite a análise do comportamento do sistema e da norma viva em suas diversas perspectivas, a ponto de poder integralizá-la com valor constitucional.
Riccardo Guastini (1993), citado por Costa (2002), sustenta que o intérprete cria a norma, atribuindo um significado ao texto legal, o faz por entender que os destinatários das normas jurídicas são os órgãos de aplicação, ou seja, a autoridade competente para aplicar os documentos legais. Assim, a interpretação que produz a norma não é qualquer interpretação, mas apenas aquela proveniente do órgão de aplicação. Assim, no direito brasileiro o objeto do controle de constitucionalidade abstrato não pode recair exclusivamente do dispositivo textual, pois a interpretação conforme a constituição restaria impossibilitada, da mesma forma impediria a declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto: restrito o objeto do controle a disposição, impossível seria eliminar somente a interpretação que dela decorresse.
Especialmente a norma constitucional, como observa Luís Roberto Barroso (2011, p.78), "quando tem conteúdo fluido e textura aberta oferece um conjunto de possibilidades interpretativas, figurando como uma moldura dentro da qual irá atuar a criatividade do intérprete". É dentro desde parâmetro que irá atuar o órgão responsável pelo controle de constitucionalidade abstrato, ora de conseqüência mais balizada, ora com ação construtiva no reconhecimento de valores e uma amplitude em suas escolhas, escapando da limitação cerrada e limitada pela teoria da separação dos poderes.
O conceito de bloco de constitucionalidade é de extrema relevância para a efetivação do controle de constitucionalidade das leis. Pois, a fiscalização da constitucionalidade nada mais é do que o exame da compatibilidade de uma norma hierarquicamente inferior com o conjunto de normas constitucionais, que é o fundamento de sua existência, validade e eficácia.
Há uma indefinição quanto ao alcance material da expressão bloco de constitucionalidade. Pode-se dizer, de maneira despretensiosa, que se trata de normas e princípios de valor constitucional num determinado ordenamento jurídico.
A diferença entre parâmetro e bloco de constitucionalidade é que este engloba o primeiro e vai além, no sentido de envolver um conjunto de matérias formais e materialmente constitucionais de forma ampliativa disposta numa interpretação evolutiva.
A teoria do bloco da constitucionalidade tem como pedra de toque a decisão proferida pelo Conselho Constitucional da França de 16 de julho de 1971, que estabeleceu as bases do valor jurídico do Preâmbulo da Constituição de 1958, o qual inclui em seu texto o respeito tanto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, como também ao Preâmbulo da Constituição de 1946 (que continha uma declaração de direitos econômicos e sociais). Este, por sua vez, faz referência aos princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República. Ou seja, tudo estava integrado à Constituição Francesa (MELO, 2004).
Tal decisão retrata a existência não apenas de um documento – a constituição de 1958 – mas sim de um verdadeiro “bloco” dotado materialmente de constitucionalidade, ou seja, “uma massa volumosa e sólida de uma ‘substância’ que é a Constituição”. Sendo que o volume ocorreu pelo aumento das disposições dotadas de valor constitucional, e a solidez consagrou a inserção de “toda uma série de regras ou de princípios que modificam a natureza dos direitos e liberdades.” (FAVOREU, L.; PHILIP, L., 1991, p.242 apud MELO, 2000). Assim, as possibilidades de extensão do bloco de constitucionalidade são doravante praticamente ilimitadas.
A decisão de 1971 incentiva a teorização de um bloco de constitucionalidade pela doutrina e jurisprudência brasileiras. Sobretudo por esta última, a exemplo da ADI 595/ES, pois a noção de bloco de constitucionalidade envolve uma criação de direito constitucional realizada pelo órgão encarregado do controle de constitucionalidade das leis, no caso brasileiro, pelo Supremo Tribunal Federal.
Partindo do conceito de que o bloco de constitucionalidade não se limita às disposições únicas do direito constitucional escrito. De um lado, essa idéia engloba todos os princípios constantes do texto constitucional. Por outro, esse conceito envolve, igualmente, todos os princípios derivados da Constituição enquanto unidade, tais como o princípio da democracia, o princípio federativo, o princípio da federação, o princípio do Estado de Direito, o princípio da ordem democrática e liberal e o princípio do estado social, além do preâmbulo da Carta, os princípios gerais próprios do sistema adotado e, inclusive, princípios suprapositivos imanentes à própria ordem jurídica (JOSINO NETO, 2003).
No sistema da Constituição Brasileira de 1988, por exemplo, vários princípios perpassam-lhe o texto. Aliás, é fundamental que se diga que os princípios não se resumem ao artigo 1º, estando presentes, entre outros, nos arts. 34, VII, 60, § 4º, II, III e IV da CF (forma republicana, sistema representativo, regime democrático, direitos da pessoa humana, autonomia municipal, prestação de contas da administração pública direta e indireta, separação de poderes e outros). Esses princípios explícitos não esgotam outros que se encontram explícitos ou implícitos no próprio texto.
O próprio STF já disse que dispõe:
[...] de irrecusável potestade interpretativa e construtiva, que lhe permite, até - sem perda da legitimidade de suas funções institucionais -, proceder a reinterpretações constantes da Constituição, com o objetivo de adequá-la às novas condições históricas, econômicas, políticas ou sociais e de transformá-la em um documento vivo e sempre atual”. O Min. CELSO DE MELLO, relator, conclui seu raciocínio afirmando que “nesse processo, o Supremo Tribunal Federal expande o exercício da interpretação constitucional para muito além de referências meramente literais que se contêm no texto da Lei Fundamental (LEX, JSTF, vol. 181, pág. 363).
A Constituição pode ser mudada pela interpretação que se lhe dê, como anota José Néri da Silveira ( 1985), apud Josino Neto,( 2003, p 14), “porque seu conteúdo permanece ‘aberto ao tempo’, ou, no dizer de HÄBERLE, a Constituição está sempre unterwegs (em andamento, em caminho)”. Nessa perspectiva, a Constituição revela-se como algo vivo, uma obra inacabada, em permanente mudança, integrante do ordenamento jurídico, dotada de unidade hierárquico-normativa e coerência lógica (JOSINO NETO, 2003).
Portanto no delineamento do bloco de constitucionalidade na jurisprudência brasileira, dois elementos assumem relevância: o elemento material e o elemento temporal. O primeiro define quais normas fazem parte do bloco de constitucionalidade no ordenamento jurídico. A constituição escrita apenas ou outros textos, princípios e valores constitucionais além do texto da constituição. O segundo concerne à situação, quanto à vigência, das normas que integrarão o bloco de constitucionalidade: podem ser consideradas para a declaração de inconstitucionalidade das leis somente normas constitucionais vigentes, ou normas vigentes e também normas de valor constitucional já revogadas.
Transcreve-se um trecho do voto do Min. CELSO DE MELO, proferido na ADIn 595/ES, no qual são abordados alguns aspectos relevantes acerca deste complexo tema:
[...] no entanto, impõe que se analisem dois (2) elementos essenciais à compreensão da matéria ora em exame. De um lado, põe-se em evidência o elemento conceitual, que consiste na determinação da própria idéia de Constituição e na definição das premissas jurídicas, políticas e ideológicas que lhe dão consistência. De outro, destaca-se o elemento temporal, cuja configuração torna imprescindível constatar se o padrão de confronto, alegadamente desrespeitado, ainda vige, pois, sem a sua concomitante existência, descaracterizar-se-á o fator de contemporaneidade, necessário à verificação desse requisito.
No que concerne ao primeiro desses elementos (elemento conceitual), cabe ter presente que a construção do significado de Constituição permite, na elaboração desse conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado. [...] (ADIn 595/ES, rel. Min. Celso de Melo, 18.02.2002).
Como assevera J. J. GOMES CANOTILHO, “os atos legislativos e restantes atos normativos devem estar subordinados, formal, procedimental e substancialmente, ao parâmetro constitucional” (CANOTILHO, 2003 p. 919). Portanto, subordinados à própria Constituição.
Hoje na órbita do pós-positivismo o princípio da supremacia da constituição já não sustenta sozinho a possibilidade do controle jurídico constitucionalidade, pois as decisões expressamente demonstra um ativismo do órgão controlador que constrói regras especificas de conduta a partir de enunciados vagos que vão muito além do texto. É a evolução do processo de submissão do legislador ao texto constitucional para a constitucionalização estendida e analítica exercida por órgão judicial.
A característica mais importante da Constituição não é ser fruto de um poder constituinte originário, pois na história do constitucionalismo brasileiro, temos exemplos que tal poder, transformou a Lei Maior apenas numa forma de satisfazer interesses de uns e outros, de poucos, de autoritarismos poderosos de verdadeiros marginais políticos, tornada inválida depois de fazer seu uso. Deve ser vista, portanto, como um espectro de luz absorvente dos valores sociais e políticos que gravita em torno de outras galáxias do saber humano, pois, não está diluída nas teorias abstratas que esquecem o lugar das coisas e o mundo dos homens.
É aqui que começa a formulação do bloco de constitucionalidade na realidade brasileira à medida que a constituição se define muito além de um mero texto nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.
Com a Emenda Constitucional n.45/04 a teoria do bloco de constitucionalidade se define, pois ela estabeleceu o valor constitucional dos tratados internacionais que tratam de direitos humanos. Destarte, com a Emenda Constitucional n.45/04, com a exaltação da decisão de 1971 e com um despacho proferido pelo Ministro Celso Melo (ADIn 595/ES) que descreve os elementos para a determinação do paradigma de confronto, a teoria do bloco de constitucionalidade é visualizada no ordenamento jurídico brasileiro.
Portando, com base no estudo dos temas levantados pela ADI nº 595/ES percebemos que o controle de constitucionalidade originou-se como uma verdadeira providência decorrente da superioridade normativa da Constituição, pondo-a salvo e com o fim de dar uma recepção melhor ao moderno Estado de Direito. Lançando-a também como uma nova estrutura coerente capaz de permitir sua interação com as realidades políticas, sociais e econômicas. Trata-se de uma dinâmica em que as regras e princípios legitimados pela soberania popular autorizam pensar o Direito Constitucional dentro do âmbito do judiciário com elevada carga política.
É dos princípios que se identificam valores, é da idéia do direito que provém normas, é a lógica aferente a experiência do legislador e a constância interpretativa inarredável nas questões de princípios por cortes constitucionais, que devem emitir juízos que repousam em razão pública.
A partir dessa (nova) hermenêutica, a Constituição mostra-se como sendo o resultado de sua interpretação, precede com sendo a norma que fundou o ordenamento jurídico do Estado, sendo neste caso o instrumento de criação do direito, em seguida percebe-se ela como um organismo vivo capaz de constituir significativamente um todo fundamental e a maneira de ser de um Estado, algo como um bloco.
O bloco de constitucionalidade pretende a preservação da supremacia da Constituição sendo o valor que informa o controle abstrato. Ele engloba princípios explícitos e os implícitos, bem como os tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil seja parte, consoante o § 2º do art. 5º da Constituição de 1988, caracterizado como cláusula constitucional aberta, mesmo diante do que dispõe o § 3º, acrescentado ao art. 5º pela EC. n.º 45/2004. Isto porque a Emenda apena acrescentou lastro formal aos tratados de direitos humanos, não retirando a sua característica material, ou seja, pelo o § 2º do art. 5º, aqueles tratados são materialmente constitucionais, integrando, portanto, o bloco de constitucionalidade.
REFERÊNCIAS
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GUASTINI apud COSTA, Adriano Soares da. Obrigação e crédito tributário. Crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3289>. Acesso em: 18 mai. 2011.
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