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A prescrição na Lei do consórcio

Agenda 05/11/2014 às 11:32

Este texto trata do instituto da prescrição no sistema de consórcio à partir da análise do jurista Agnelo Amorin Filho.

A prescrição sempre foi tema dos mais árduos, sobretudo no Código Civil de 1916, em que o legislador seguramente não foi dos mais técnicos, gerando, inúmeras vezes, dúvidas se o caso era de prescrição ou de decadência.

Mas, em artigo memorável[1] publicado ainda na década de 60, denominado “Critério Científico Para Distinguir Prescrição da Decadência e Para Identificar as Ações Imprescritíveis”, o jurista paraibano Agnelo Amorin Filho, de forma bastante simples, acadêmica, relacionou a prescrição às ações condenatórias e a decadência às ações constitutivas, tornando, a partir daí, bem mais fácil a identificação.

Assim escreveu o doutrinador:

“Deste modo, fixada a noção de que o nascimento da pretensão e o inicio do prazo prescricional são fatos correlatos, que se correspondem como causa e efeito, e articulando-se tal noção com aquela classificação dos direitos formulada por CHIOVENDA, concluir-se-á, fácil e irretorqüivelmente, que só os direitos da primeira categoria, (isto é, os "direitos a uma prestação"), conduzem à prescrição, pois somente eles são suscetíveis de lesão ou de violação, e somente eles dão origem a pretensões, conforme ficou amplamente demonstrado.  Por outro lado, os da segunda categoria, isto é, os direitos potestativos - (que são, por definição, "direitos sem pretensão", ou "direitos sem prestação", e que se caracterizam, exatamente, pelo fato de serem insuscetíveis de lesão ou violação) - não podem jamais, por isso mesmo, dar origem a um prazo prescricional.

Por via de conseqüência chegar-se-á, então, a uma segunda conclusão importante: só as ações condenatórias podem sofrer os efeitos da prescrição, pois são elas as únicas ações por meio das quais se protegem judicialmente os direitos que irradiam pretensões, isto é, os da primeira categoria da classificação de CHIOVENDA. Com efeito, as condenatórias são as únicas ações que servem de meio para se obter judicialmente, com a intervenção do Estado, satisfação das pretensões não atendidas extrajudicialmente pelos sujeitos passivos das relações jurídicas substanciais.  Igual satisfação não é possível obter, jamais, por via de ações constitutivas ou declaratórias, pois essas têm finalidades diversas.  Assim, desde que a prescrição atinge diretamente as pretensões, somente as ações condenatórias podem sofrer seus efeitos.

Se, a título de verificação do acerto daquelas conclusões, as aplicarmos aos vários prazos para propositura de ações enumerados no art. 206 do Código Civil, verificaremos o seguinte: 1º) todos os prazos do mencionado dispositivo que são classificados, pela doutrina e pela jurisprudência, como prazos de prescrição, stricto sensu, se referem a ações condenatórias; 2º) os demais prazos (que são classificados pela doutrina e pela jurisprudência como prazos de decadência) não se referem a ações condenatórias.  Aliás, se analisarmos o Código Civil alemão, faremos algumas observações interessantes, que vêm confirmar, plenamente, aquelas conclusões a que chegamos com referência ao art. 206 do Código Civil brasileiro: o dispositivo do Código alemão (§ 196), que fixa os prazos especiais de prescrição, enumera exclusivamente pretensões ligadas a direitos pertencentes à primeira categoria da classificação de CHIOVENDA, isto é, "direitos a uma prestação", que são os únicos suscetíveis de violação, são os únicos dos quais se irradiam pretensões e são os únicos protegidos por meio de ações condenatórias.

As considerações feitas acima conduzem, pois, inevitavelmente, à fixação desta primeira regra, indispensável à distinção entre prescrição e decadência: - TODAS AS AÇÕES CONDENATÓRIAS (E SOMENTE ELAS) ESTÃO SUJEITAS A PRESCRIÇÃO.”

O Código de 2002, indubitavelmente, adotou os ensinamentos acima e, em relação ao anterior – de 1916, foi bem mais didático, até por ter como um dos princípios a operabilidade. E se diz que foi mais didático, por possibilitar ao operador, inclusive algumas “dicas” para identificação dos prazos – prescricionais ou decadenciais -, lembrando que os primeiros estão contidos nos artigos 205 e 206, enquanto que os segundos ficaram dispersos em outros dispositivos; ainda, os prazos prescricionais são fixados normalmente em ano, enquanto os decadenciais em dia, meses ou ano e dia.  

E em relação à Lei do Consórcio (11.795/2008), que efetivamente nos interessa para o presente estudo? Dúvida não há que o critério foi o mesmo do doutrinador acima e do Código Civil de 2002, aliás, como nem poderia ser diferente, tanto que assim dispôs no § 2º do artigo 32:

“Prescreverá em 5 (cinco) anos a pretensão do consorciado ou do excluído contra o grupo ou a administradora, e destes contra aqueles, a contar da data referida no caput.” (grifei).

Mas a indagação que se faz é se o dispositivo que tratou da prescrição na lei do consórcio, aplica-se a todas as situações. A meu ver não e explico.

O dispositivo em análise, ao fixar o prazo de 5 (cinco) anos para a prescrição da pretensão, refere-se à pretensão do consorciado ou excluído em face do grupo ou administrador e destes em relação àqueles. E remete o início do prazo prescricional ao que consta no “caput” do artigo 32, que trata do encerramento do grupo, que se dará em até 120 (cento e vinte) dias contados da data da realização da última assembléia de contemplação.

De modo que, numa leitura rápida, para não dizer desatenta, poderia o leitor chegar à conclusão que na lei de consórcio, o prazo prescricional será de cinco anos e inicia-se, sempre, após 120 dias do encerramento do grupo. Ora, evidentemente que esse dispositivo não tem aplicação para todas as situações, ou melhor, tratou o dispositivo apenas das situações em que a pretensão nascer com o encerramento do grupo, como é o caso, por exemplo, daqueles consorciados que ainda não se utilizaram dos créditos e, portanto, farão jus ao recebimento dos mesmos em espécie (inciso I do art. 31), ao final do grupo; esclarecendo: se o consorciado, que foi contemplado, chegar ao término do grupo e não tendo se utilizado do crédito (adquirido o bem de sua escolha), deverá a administradora disponibilizá-lo em espécie e, se não o fizer, nascerá, neste instante, a pretensão do consorciado de buscar, através de uma ação condenatória, o recebimento de tal crédito.

O mesmo não se pode dizer em relação àquele consorciado excluído que teve sua cota contemplada, por exemplo, na 10ª assembléia (de um total de 50, por exemplo), o qual, a partir daquele momento (data da contemplação), passou a fazer jus à restituição das importâncias pagas ao fundo comum do grupo (art. 30 da Lei 11.795/08). Isso porque, a partir daquele momento (contemplação na 10ª assembléia), se a administradora não restituir ao consorciado os valores a que faz jus, nascerá para ele a pretensão, eis que o direito subjetivo foi violado e, consequentemente, inicia-se imediatamente - a partir do conhecimento do consorciado que sua cota foi contemplada e da negativa da administradora em lhe disponibilizar o valor - o prazo prescricional de 5 (cinco) anos previsto  no § 2º do art. 32, não tendo que aguardar o encerramento do grupo para só então “cobrar judicialmente o valor”.

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Óbvio, pois se assim não fosse, equivaleria dizer que a pretensão nasceu em um momento (após não restituído do valor ao consorciado que teve a cota contemplada) e o prazo prescricional iniciou-se em outro (após o encerramento do grupo), o que não é possível.

Da mesma forma, podemos imaginar aquela situação em que o consorciado já contemplado e na posse do bem deixa de pagar as parcelas mensais; ora, evidente que, ao não efetuar o pagamento na data aprazada, nasce para a administradora a pretensão e, portanto, pode imediatamente manifestar-se, propondo a competente ação judicial para buscar o crédito, não havendo pois, que aguardar o encerramento do grupo para só então tomar aquela iniciativa.

De maneira que, como dito anteriormente, o § 2º do artigo 32 da Lei nº 11.795/2008, não resolve todas as questões relacionadas à prescrição no contrato de consórcio.

E sendo assim, deverá o intérprete se valer do art. 189 do Código Civil[2], através do qual, violado o direito, nasce para o titular a pretensão. Assim também foi a conclusão da Jornada I STJ.[3]

É caso, ainda, de aplicação da teoria do diálogo das fontes (Lei do Consórcio e Código Civil), tese trazida ao Brasil pela professora Cláudia Lima Marques, inspirada nos ensinamentos de Erik Jayme, que já é seguida por importantes doutrinadores e plenamente aceita pela jurisprudência.[4] A doutrinadora retrata a tese da seguinte forma:

“Erik Jayme, em seu Curso Geral de Haia em 1995, ensinava que, em face do atual ‘pluralismo pós-moderno’ de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo (Identité culturelle et intégration: le droit internationale prive postmoderne, Recueil dês Cours, II, p. 60 e 251 e SS).

O Uso da expressão do mestre, ‘diálogo das fontes’, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, co-existentes no sistema. É a denominada ‘coerência derivada ou restaurada’ (cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’ ou a ‘não-coerência’.

‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato – uma solução flexível e aberta, de interpretação, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes)”. [5]

O que se objetiva através da tese antes exposta, é a aproximação das leis, sobretudo daquelas que guardam os mesmos princípios, ao menos em parte, como é o caso, por exemplo, do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor (confiança, boa fé e equilíbrio contratual), obviamente tudo sob o manto da Constituição Federal, que valoriza, entre outros, o princípio da dignidade da pessoa humana.

E em relação à Lei nº 11.795/2008, que dispõe sobre o sistema de consórcio, a aplicação do diálogo das fontes chega até a ser indispensável, pois, embora de lei especial se trate, em hipótese alguma poderá se distanciar de princípios como o da confiança, da boa fé e do equilíbrio contratual (CDC e CC) e, ainda, da vulnerabilidade (CDC); por outro lado, indubitavelmente, esse negócio jurídico – consórcio, diz respeito a contrato de adesão e possivelmente de relação de consumo, de modo que, diante das situações concretas, muito provavelmente o julgador necessitará se valer de todos esses institutos (diálogo de complementariedade), para a melhor solução; mais ainda, pode haver conflitos de leis, como me parece ser o caso da prescrição prevista no artigo 32, § 2º da Lei de Consórcio.

Concluindo, o prazo prescricional, com o advento da Lei nº 11.795/05, será de cinco anos para todas as situações, a iniciar-se, porém, com o nascimento de cada pretensão.


Notas

[1] RT 300/7 e 744/727

[2] CC. Art. 189: Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos  prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

[3] Início do prazo. Nascimento da pretensão. Jornada I STJ 14: “1. O início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2. O art. 189 diz respeito aos casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer”.

[4] “STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 1.191.979 - MG (2010/0076339-7), DJe 04.02.2001, RELATOR : MINISTRO HERMAN BENJAMIN; STJ - AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.167.656 - MG (2009/0223597-2) RELATOR : MINISTRO LUIZ FUX, DJe 17/12/2010.

[5] Manual de Direito do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, 2ª Edição, 2009, p. 89 e 90 

Sobre o autor
Alberto Branco Júnior

Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito – EPD Pós-Graduado em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito – EPD Advogado especializado em Consórcio

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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