5. A função do processo
A sociologia não vê a relação direito material e direito processual como distinta, como a diferença entre direito e conflito de interesses, direito de caráter material e direito de caráter instrumental. O processo, para a sociedade, não é um complexo de normas que regula a aplicação do direito material, nem um forma de reconstituição do passado, nem uma forma de produção de verdades e muito menos uma forma de trazer paz à sociedade. Niklas Luhmann diz que se trata de um direito unitário de dupla função: material e processual e que a substituição da distinção jus/actio já vem sendo utilizada desde Windscheid e o positivismo legal como pretensão de direito[25]. Para que isto ocorra é necessário que direito material e direito processual estejam acoplados[26]. Esse acoplamento entre os sistemas se dá por meio de conceitos de ligação, de enlace entre eles, como: pretensão de direito, direito subjetivo e sujeito de direito.
Luhmann reconstrói essa relação é observa que valores acabam se ligando ao sujeito do direito subjetivo: no século XIX dizia-se que o direito serve para a liberdade do homem frente às pressões sociais, ou seja, serve para garantir que o homem seja livre para tomar decisões por si mesmo; em nossos dias se pensa que o direito serve para a realização de “valores” dados ao sujeito de antemão e que se converteram em algo positivo na forma de direitos fundamentais como um condensado de uma larga tradição humanística[27]. Com isto o direito se obriga a serviço do homem e a sociologia pode observar hoje as enormes exclusões que isto implica.
A forma de observação que a sociologia sistêmica criou foi a de sujeito e direito. Do lado do direito estão as circunstâncias e os interesses que sob o regime do sujeito não tem importância como circunstâncias e interesses. Elas só tem importância para o sujeito na medida em que se transformam em componentes de direitos e obrigações subjetivas de que se pode dispor. E é aqui justamente que o Judiciário joga seu papel de importância, porque é a ele que cabe garantir a igualdade de tratamento entre os indivíduos da relação processual, ou seja, o mais fraco deve ter seus direitos protegidos ante o mais forte.
A importância deste ponto de vista está em revelar que o sistema jurídico deve se auto-descrever (se fechar) frente a um ambiente turbulento e que não pode ser controlado nem ordenado hierarquicamente. Isto quer dizer que a esmagadora maioria dos debates jurídicos não se decide em absoluto em processos formais, mas sim em soluções que se ventilam, de alguma maneira, com outra forma; que o status social tem efeitos concretos no processo. Em resumo: o jurista para decidir se apega às normas e o sociólogo investiga as características sociais do caso.
O problema é que o sistema jurídico não pode obter nenhum benefício das análises sociológicas. Mas uma teoria sociológica mais complexa, que reflita acerca da diferenciação dos sistemas, pode tornar compreensível o porquê isto é assim e apresentar ao mesmo tempo conceitos de mediação proveniente de sua descrição externa do e ao direito. Isto permitiria ao direito compreender que é necessário abandonar a expectativa de uma só descrição correta do objeto porque a própria descrição já é parte do objeto. Isto quer dizer que pode haver outras descrições que também estejam corretas e isto é válido para a auto-descrição do sistema jurídico. Isto permite ao direito observar-se de um plano de segunda ordem, ou seja, o direito se auto permitindo grandes liberdades para escolher o esquema que lhe permita melhor observar os fatos – daí a importância de inserir maior complexidade – informações – no processo como tratamento de justiça entre as partes – igualdade. Menor complexidade ora serve à acusação – condenação baseada em indícios policiais e legitimada pelos princípios da necessidade e da segurança pública -, ou à absolvição – baseada em princípios humanísticos -: ambos pêndulos que oscilam ad hoc e ao sabor das ideologias simplistas de plantão.
Por isso, na concepção de Luhmann, a igualdade entre as partes é o princípio fundamental do processo jurídico[28]. A ameaça à identidade física e social de uma parte sobre a outra radicaliza a luta e dispensa a observância das regras do direito, por exemplo, o que é comerciante para o direito, qual a diferença entre prova e indício de prova, qual a finalidade do tráfico (lucro) e do dependente (comprar mais droga), qual a ameaça social da ação concreta, qual o grau de discernimento do sujeito que praticou a ação, qual a intensidade da ofensa ao bem jurídico.
O juiz precisa estar atento ao seu papel no processo. Neste, como diz Luhmann, os participantes apresentam o seu direito moralizando-o, isto é, vinculando a uma possibilidade de uma futura convivência social. Cabe ao juiz fazer a mediação entre a verdade e o direito. Cabe ao juiz, com moderação, preparar as partes para um resultado que é incerto. Sua decisão será legítima na medida em que criar disposição para que ela seja aceita como resultado normal do processo.
Tércio Sampaio Ferraz Jr, na apresentação da tradução da obra Legitimação pelo Procedimento já mencionada, explica que para Luhmann uma estrutura jurídica (o processo) é legítima na medida em que é capaz de produzir uma prontidão generalizada para aceitação de suas decisões. Os procedimentos são, então, um sistema de ações que é endereçado para uma decisão e através dele as partes aprendem a aceitar a decisão que vai ocorrer, antes de sua ocorrência concreta. Perde-se a ingenuidade quando se compreende que esse sistema de ações não é somente controlado por regras jurídicas, mas o é também por componentes extrajurídicos (interesses, ideologias, tendências, mídia, papel social, etc.)
Na medida em que os opositores vão assumindo seus papéis no processo – parte processual, autor, réu, etc. – o conflito mesmo vai ficando limitado ao processo e não se generaliza pela sociedade. Assim, a maior discrepância entre os contendores no início do processo vai sendo controlada aos poucos, criando-se condições para a aceitação de uma decisão judicial. Mas frise-se, a função do processo não é produzir consenso entre as partes, mas tornar inevitáveis e prováveis decepções em decepções difusas: apesar de descontentes, as partes aceitam a decisão. A decisão não vai ser reconhecida como justa ou injusta: o processo tem a função de imunizar a decisão final contra as decepções que são inevitáveis: o juiz seguiu o processo!
Quanto mais frágeis os argumentos decisórios, quanto menos complexo o processo, menos legitimada está a decisão e se criam subterfúgios para o seu descumprimento. Daí a compreensão que o direito poderia fazer da sociologia, ou seja, na medida em que o juiz e as partes produzirem maior complexidade dentro do processo, maior é a possibilidade de haver justiça, igualdade entre as partes, debate, aceitação de decisões. Quanto menos o juiz exigir, menor a complexidade, menor é a igualdade entre as partes, menos aceitas são as decisões. Estas continuam sendo impostas e cumpridas, na medida em que aumentam também as formas para seu descumprimento, venham estes da política ou de outros sistemas sociais.
Como fazer isto num procedimento de porte de droga está estabelecido tanto pelo direito, quanto pelos direitos subjetivos das partes. Ao juiz cabe exigir uma complexidade adequada para que possa decidir melhor. Este é o desafio do Judiciário diante de um mundo que se contenta com pouco conhecimento e muita ideologia, no qual a argumentação se resume a opiniões subjetivas lastreadas em princípios que sequer se sabe de onde vêm e para que servem. O reforço para a argumentação só pode surgir do aumento de complexidade mediada pela prática e pela ciência, pela compreensão do direito e do processo e pela compreensão da importante função social que o direito tem.
7 Argumentação jurídica: o conteúdo material do delito e do processo penal
Não se pretende encontrar uma forma que diferencie entre bons e maus argumentos acerca do assunto das drogas, nem expor argumentos mais ou menos convincentes, porque, enfim, se trata sempre de argumentos. Portanto, não se trata de mudar o direito vigente, mas de atender ao que hoje se chama de intertextualidade, ou seja, a obrigatoriedade do sistema do direito atualizar suas ligações internas com os demais textos jurídicos e com a práxis jurídica.
É certo que como observação de primeira ordem, a interpretação conservadora sobre o que seja tráfico de drogas traz uma relativa segurança para decidir. Poder-se-ia dizer que o direito vigente é razão suficiente para decidir no sentido do direito. No entanto, com uma observação de segunda ordem, surge a pergunta de como se deve manejar o texto legal na comunicação e aqui surgem as dúvidas em relação às decisões que vem sendo consideradas insatisfatórias, porque suas consequências atentam contra a expectativa social de tratamento diferenciado entre viciados, pequenos e grandes traficantes, de prevenção, de redução de danos, de conhecimento e enfrentamento diferenciado do problema e à finalidade da atual Lei Antidrogas, que pretende diminuir o encarceramento. Por isto é legítimo buscar uma interpretação convincente, uma razão, uma regra decisiva que seja subjacente ao texto da lei, fundamentá-la e buscar consistência.
Pois bem: o sistema penal pode criar pontos de contato com a sociologia sem perder sua identidade. A evolução do conceito de processo faz com que se possa buscar irritação onde antes não havia. Como vimos, o juiz pode conduzir o processo a uma complexidade adequada a decisões mais iguais, mais justas, se ele se convencer que não tem nenhum compromisso com a condenação ou com a absolvição. Se o seu compromisso for somente com o processo, ele pode forçar as partes a instruir o procedimento com mais dados que gerarão maior complexidade e fazer com que o processo cumpra a sua função: tornar as decepções normais e fazer com que as partes aceitem a decisão como a única possível.
Ao abandonar as estruturas lógicas do finalismo e ao aderir pelo menos em parte ao funcionalismo, o Direito Penal se abriu para a sociedade, no sentido de que admitiu que embora ele seja um sistema fechado em suas operações, como todo sistema, não há como sobreviver sem seu ambiente. Não se trata de tornar o sistema aberto como querem alguns, mas de encontrar acoplamentos estruturais entre o sujeito (processual) e o direito (material). Como já se disse, do lado do direito estão as circunstâncias e os interesses que não interessam de modo geral ao sujeito, ou seja, só lhe interessam na medida em que se transformam em componentes de direitos e obrigações subjetivas de que se pode dispor.
Ao substituir o conceito de ação final pelo conceito de imputação objetiva, ao dotar de conteúdo material o tipo, ao criar um conceito próprio de antijuridicidade material e ao complementar a culpabilidade normativa com a teoria da responsabilidade – necessidade preventiva da sanção penal[29], Claus Roxin, um dos expoentes do funcionalismo penal, abre aos juízes a possibilidade para aproximarem sociedade e direito, ou como se gosta de afirmar, aumentou as possibilidades de justiça.
Falando de modo resumido, podemos afirmar que Roxin introduziu um conceito material nos extratos da teoria do delito com a finalidade de que o direito pudesse adaptar-se ao caso concreto. Assim, surgiu a tipicidade material, cujo carro chefe é o princípio da insignificância, ligado ao princípio do bem jurídico e à significação social da ação; o injusto penal, ligado ao princípio da ofensividade social da ação típica e formalmente antijurídica; e a culpabilidade material ou responsabilidade, ligada ao princípio da culpabilidade normativa e ao princípio da necessidade de pena. Como toda teoria científica, esta também requer determinados requisitos para a comprovação da tipicidade material, da antijuridicidade material e da culpabilidade material.
Uma primeira observação pode ser feita quanto a imputação ao tipo objetivo nos delitos de perigo[30]. Aqui surge um problema com os chamados crimes de perigo abstrato como o tráfico, porque se pensa que eles ou não existem ou existem e há uma presunção absoluta de perigo.
A doutrina brasileira é unânime em afirmar que o tráfico é um delito de perigo abstrato porque representa a possibilidade de dano à saúde das pessoas e isto não admite prova em contrário[31]. As teorias atuais não observam desse modo, ou seja, abrem as portas do crime de perigo abstrato para a interpretação. Reconhece-se que os delitos de perigo abstrato têm de concordar com a culpabilidade e criam-se classes de restrições sobre eles. Os delitos de tráfico de drogas, por exemplo, podem ser classificados como delitos de aptidão abstrata[32]. Neste caso, o juiz deve interpretar se as ações descritas na lei especial como tráfico foram aptas, no caso concreto, para demonstrar a afetação do bem jurídico: saúde pública. Só com a investigação se pode angariar dados objetivos demonstrativos da lesão, como o local de venda, a ligação do autor com gangues ou quadrilhas, a quantidade e a natureza da droga, a existência de petrechos necessários ao tráfico, a existência de atos de comércio, as condições em que a ação foi desenvolvida e os atributos positivos e negativos do autor. Lembre-se, porém, que a imputação objetiva não se contenta com informações policiais, por mais críveis que sejam os depoimentos de seus agentes: é necessário um dado objetivo que comprove a existência do fato[33].
Outra importante inovação trazida pela interpretação material das estruturas do delito diz respeito à significância da lesão do bem jurídico protegido pela norma. Jescheck[34], ainda no direito alemão, chama a atenção para a verdadeira meta de toda interpretação, ou seja, descobrir a finalidade e os critérios valorativos dos quais em última instância se deduz de modo vinculante o sentido legal normativo. E, um pouco para frente, no que diz respeito ao princípio da insignificância como regra de interpretação, diz que as afetações realmente mínimas ao bem jurídico não conseguem materializar o tipo de uma norma penal, ou seja, o juiz deve valorar porque a ação foi socialmente relevante, ou para dizer de outro modo, porque não é socialmente aceita. Frise-se que Jescheck não acredita na construção de um conceito de bem jurídico como apto para determinar o conceito material de delito justamente por sua imprecisão, daí a importância da valoração global do injusto pelo juiz. Também Maurach e Zipf[35]chamam a atenção para o fato de que o bem jurídico é o núcleo material de toda norma de conduta e de todo tipo construído sobre ela, se bem que também chamem a atenção para a imprecisão do conceito. Dizem eles que a interpretação da lei penal – e com ela seu conhecimento -, sem a diretriz que lhe dá a noção de bem jurídico, é simplesmente impossível. Mas preferem afirmar que o valor e o desvalor de uma conduta se regem por sua tendência para um determinado efeito social, que pode ser tolerado ou não pela sociedade, daí também a importância do intérprete no injusto[36]. O direito penal brasileiro tem se pautado pelos mesmos critérios do direito alemão no que diz respeito à afetação do bem jurídico[37].
Estas valorações típicas, por si sós, se não servirem para confirmar ou afastar a tipicidade da conduta de tráfico, têm a vantagem de criar alguns padrões que servirão para a análise da antijuridicidade e da culpabilidade, lembrando sempre que a adoção da imputação objetiva obriga a autoimplicação das estruturas teóricas do delito.
No que diz respeito ao injusto, e já numa segunda observação da teoria do delito, Claus Roxin[38]diz que é necessário retomar o conceito de injusto material, não se confundindo injusto formal com tipo e material com antijuridicidade. Ao contrário, diz ele que o conteúdo do injusto material tem importância tanto para o tipo quanto para a antijuridicidade. No aspecto valorativo do tipo o injusto material representa uma lesão de bens jurídicos que é preciso combater com o direito penal (corolário do princípio da insignificância no tipo). E do ponto de vista da antijuridicidade, o injusto material da lesão de bens jurídicos pode ser excluído no caso de colisão de dois bens jurídicos, quando se prefere o interesse por um bem jurídico mais valorado ao menos valorado, com o resultado de que, em que pese o sacrifício de um bem, produz-se algo socialmente proveitoso, ou ao menos não se produz um dano social juridicopenalmente relevante (corolário do princípio da insignificância na antijuridicidade). Pelo que já foi dito, parece lógico que a intensidade da lesão ao bem jurídico e o dano social realmente causado transformam-se em dados para a análise do injusto penal, ou seja, o caso concreto deve ser analisado na graduação do injusto. Aqui o que se procura descobrir é a necessidade de interferência do direito penal nos casos em que, mesmo havendo lesão materialmente típica, não se justificaria a atuação do Estado porque a conduta do agente embora não adequada socialmente, não produz um dano social juridicamente merecedor de ser protegido com a punição do tráfico. A própria Lei 11.343/2006 já proporciona esta abertura para a sociedade no art. 28, § 2º, quando manda apreciar como se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais do caso e a conduta e antecedentes do agente.
Para continuar argumentando, não se trata de dizer se o envolvimento com drogas é adequado socialmente, ou não. A ação de um traficante, seja pequeno ou grande, viciado ou comerciante, só faz aumentar o problema da saúde pública e do próprio usuário, o que pelo menos para o sistema do direito e para o sistema da saúde é grave. O problema é delimitar quais dessas ações são socialmente toleradas, apesar de formalmente típicas e quais atingem a saúde pública em geral (tráfico) e quais atingem mais a pessoa do delinquente (uso) e em que medida isto acontece. Aqui podem ser separarados aqueles que merecem cadeia daqueles que não merecem, dependendo da intensidade e da qualidade do injusto. Resumindo: o direito encontrou uma maneira de não se conformar com a afetação formal de um bem protegido pela norma (não basta o desvalor da ação e do resultado feitos pelo legislador). O intérprete precisa também fazer um juízo de valoração sobre a ação do sujeito (é óbvio que esse juízo é subjetivo e objetivo).
A solução correta se produz em cada caso mediante uma interpretação restritiva orientada para o bem jurídico protegido. Fica advertido por Roxin que se deve evitar o perigo de tomar decisões seguindo o mero sentimento jurídico ou inclusive declarar atípicos abusos geralmente estendidos. O que não se pode esquecer é que o tipo e a antijuridicidade são também valorativos e é por isso que são chamados de tipo de injusto: um completa o outro. O tipo de injusto quer dizer que houve uma ofensa socialmente relevante (materialmente antijurídica) a um bem jurídico protegido por um tipo. O juiz tem o poder e o dever de valorar o injusto para saber sua quantidade e sua qualidade em cada caso: se for mínimo, não há injusto, se não for, o fato é criminoso. Se for criminoso, no caso, tráfico, que se trate de classificá-lo conforme o injusto: privilegiado, para uso em comum e assim por diante.
Por fim, numa terceira observação, no que diz respeito à culpabilidade, Roxin[39]diz que o conceito normativo não responde à questão relativa à de que pressupostos materiais depende a reprovabilidade. Trata-se da busca pelo direito de um conceito material de culpabilidade.
A culpabilidade é atuação injusta em que pese a existência de acessibilidade normativa. Com isso fica afirmada a culpabilidade de um sujeito quando ele está disponível, no momento do fato, para a chamada da norma segundo seu estado mental e anímico; quando (ainda) lhe eram perfeitamente acessíveis “possibilidades de decisão por uma conduta orientada conforme a norma”; quando a possibilidade (já seja livre, já seja determinada) psíquica de controle que existe na pessoa sã, existe no caso concreto. Não se trata de uma hipótese indemonstrável, mas sim de um fenômeno científico empírico, pois a psicologia e a psiquiatria desenvolvem cada vez em maior medida critérios de sistematização “com os quais se podem constatar empiricamente as restrições da capacidade de autocontrole e medir sua gravidade” [40]. Mais uma vez o direito se abre à ciência e à sociedade.
Para Roxin a culpabilidade é um dado misto empírico-normativo. É empiricamente constatável a capacidade geral de autocontrole e a acessibilidade normativa que com ela se produz. Em contrapartida, atribui-se normativamente a possibilidade, derivada dessa constatação, de conduta conforme ao direito. O poder atuar de outro modo é tudo que se pode apreciar no âmbito forense.
Esta concepção restringe o direito penal ao absolutamente indispensável socialmente: se os delitos ficassem impunes, as normas perderiam amplamente seu poder de motivação e a sociedade iria para a anarquia. No entanto, o direito penal é desnecessário e inadequado quando a suposição de que uma pessoa era motivável pelo Direito resulta infundada por seu estado mental ou anímico ou pelas circunstâncias da situação. Destes não se espera que observem as normas. Se infringirem a lei, não se defrauda nenhuma expectativa social e a consciência social não se comove. Ninguém resulta estimulado a imitá-los, porque a vigência da norma aos olhos da opinião pública não resulta diminuída por tais fatos.
O conceito de culpabilidade aqui defendido se apoia portanto numa justificação social da pena. A culpabilidade não depende de necessidades preventivo especiais ou preventivo gerais vagas e cambiantes, reais ou presumidas, mas sim da capacidade de controle do sujeito e com isto de um critério suscetível em princípio de constatação empírica, que põe um limite na potestade punitiva do Estado. A culpabilidade torna-se uma suposição garantista da liberdade dirigida contra os excessos punitivos do Estado.
Já se disse várias vezes e agora se repete uma última vez que a sociologia não pode dar ao direito nenhuma fórmula de evitação de riscos, de justiça, de boa prática ou de melhor interpretação. No entanto, o direito pode se deixar irritar por observações sociológicas, mas como é um sistema estruturalmente fechado, só se irrita com suas próprias operações, ou seja, as conclusões sociológicas podem ser outras na análise do direito.
O que a sociologia pode oferecer é um aumento de complexidade, é tornar mais difícil as decisões do direito, na medida em que oferece a este uma visão de fora do sistema, que muitas vezes não é aquela desejada pelos operadores do direito. Oferece-se ao direito um modelo de visão social de seu operar que muitas vezes não condiz com aquilo que o direito acredita ser sua função nem com suas prestações.
O que a organização do Poder Judiciário, principalmente, por ser o centro do sistema jurídico, fará com as observações da sociologia na aplicação do direito em suas decisões não é problema da sociologia porque não muda em nada sua ciência – pode ser um problema para ser analisado sociologicamente -.
Ciência e direito embora diferentes, podem se influenciar e é nesta medida que se ofereceu para análise o presente trabalho. As observações sobre a sociedade do risco, a justiça, a função do direito e seu processo, o poder da argumentação e o aparecimento de uma nova teoria do direito penal podem aproximar um pouco a sociologia e o direito, podem tornar as decisões mais complexas tanto no sentido de se manter a atual interpretação quanto no de modificá-la. Mas é preciso que os aplicadores do direito, principalmente os juízes, continuem atentos para as repercussões sociais de suas decisões e para o aparecimento de novas teorias dentro e fora do direito penal que podem e devem influenciar suas sentenças.