"(...) El concepto de Constitución es completo cuando a intelección teorética se une su compreensión emocional mediante el sentimiento que se adhiere al concepto. La ensenanza de Derecho Constitucional no se agota en la explicación de sus evidentes y necesarias conexiones lógicas y técnicas, requiere, además, que se insista en la necesidad de que la sociedad se adhiera a aquélla, sintiendola como cosa propia" VERDÚ, Pablo Lucas. El sentimiento constitucional. Madri: Reus, 1985, p. 10, 66 apud HORTA, Raul Machado. 2. ed. Direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 99.
I – Introdução
Recentemente, foi divulgado texto da pena do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva Velloso, produzido em homenagem ao Ministro Oscar Dias Corrêa, em ensejo ao seu aniversário de oitenta anos [1], tratando dos principais aspectos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Dentre as muitas e preciosas lições extraídas daquele breve estudo, uma advertência merece especial atenção e seu objeto uma análise mais cuidadosa:
"Então, se o Supremo Tribunal Federal der interpretação literal, rigorosa, ao § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99, a argüição será, tal qual está ocorrendo com o mandado de injunção, posta de lado. De outro lado, o Supremo Tribunal Federal, na construção da doutrina dessa argüição, deverá proceder com cautela, sob pena de consagrar, por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo municipal em face da Constituição Federal, inclusive dos atos anteriores a esta. E isto o constituinte não quis nem seria suportável pelo Supremo Tribunal, dado que temos mais de cinco mil municípios.
(...)
O Supremo Tribunal Federal, entretanto, no julgamento da ADPF 03, relator o Ministro Sydney Sanches, decidiu no sentido de que outro meio eficaz de sanar a lesividade poderia ser buscado no controle difuso, vale dizer, em qualquer ação ou recurso, inclusive o recurso extraordinário, ou em quaisquer meios judiciais eficazes para se sanar a lesividade.
A questão, ao que penso, não está solucionada em definitivo e o Supremo Tribunal Federal certamente voltará ao tema, devendo considerar, repito as palavras ditas anteriormente, que, praticamente, sempre existirá, no controle difuso, ações e recursos que poderiam ser utilizados a fim de sanar a lesividade. Para que serviria, então, a argüição de descumprimento de preceito fundamental?"
A controvérsia apontada refere-se ao § 1.° do artigo 4.° da Lei n.° 9.882/1999, que regulamentou a argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevendo a não admissão da argüição quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.
A questão proposta pelo Douto Ministro, mesmo que não se espere dar uma resposta em definitivo, pode ser mais facilmente compreendida e solucionada se, com a devida venia, for reformulada nos seguintes termos: Se, praticamente, sempre existirá, no controle difuso, ações e recursos que podem ser utilizados a fim de sanar a lesividade advinda de uma lei ou ato normativo inconstitucional, para que serve, então, a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar a argüição de descumprimento de preceito fundamental, no Estado Democrático de Direito?
Fornecer subsídios para a solução deste problema é a proposta do presente artigo.
II – A previsão constitucional da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
Considerando-se apenas o caput e o parágrafo primeiro do artigo 102, pode-se fazer o seguinte rascunho da norma constitucional que prevê a argüição de descumprimento de preceito fundamental: Compete ao Supremo Tribunal Federal (STF), precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe apreciar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), decorrente desta Constituição, na forma da lei.
Contudo, a norma em comento transcende ao caput e parágrafo primeiro do aludido dispositivo, sofrendo, a sua construção, os efeitos do disposto em outros artigos espalhados pelo corpo da Carta Magna.
Afinal, dentre os principais postulados constitucionais [2] (supremacia da Constituição, unidade da Constituição, maior efetividade possível e harmonização) ressalta CELSO RIBEIRO BASTOS que [3]:
"O princípio da unidade da Constituição significa que todo o Direito Constitucional deve ser interpretado evitando-se contradições entre suas normas. Da mesma forma, significa ser insustentável uma dualidade de constituições.
(...)
É necessário, pois, que o intérprete procure as recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária da Constituição.
Como conseqüência deste princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente imbricadas. Não se poderá jamais tomar determinada norma isoladamente, como suficiente em si mesma. É que a Constituição pode perfeitamente prever determinada solução jurídica num determinado passo seu, para noutro tomar posição contrária, dando lugar a uma relação entre norma geral e outra específica."
Desta feita, não basta, sob pena de esvaziamento da Constituição, apenas o sentido da norma composta pelo caput e parágrafo primeiro do artigo 102 da Constituição Federal de 1988 para sua compreensão, mas essa deve ser harmonizada com as demais regras e princípios constitucionais, que lhe darão os seus limites confrontantes.
Destarte, é de capital importância, e em particular para o presente estudo, que se analise o papel do Supremo Tribunal Federal no Estado Democrático de Direito, para que se possa compreender o exato sentido da norma que prevê a argüição de descumprimento de preceito fundamental.
III – O papel do Supremo Tribunal Federal no Estado Democrático de Direito
Antes de mais nada, é útil ao presente estudo que se atente para o fato de que o Supremo Tribunal Federal é um órgão jurisdicional, encontrando-se ligado ao Poder Judiciário. Isso quer dizer, entre outras coisas, que o exercício do controle da constitucionalidade se resume a apreciar e julgar questões referentes ou não a litígios [4], que lhe são submetidas, utilizando-se, para tanto, de técnicas interpretativas [5].
Retornando-se ao rascunho da norma anteriormente construído, destaca-se à vista de qualquer intérprete que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADPF, o faz exercitando seu papel de Guardião da Constituição. Mas o que significa ser guardião da Constituição?
Não carece muita elucubração para se perceber pelo próprio sentido da palavra guardião que é destinado ao Supremo Tribunal Federal ser o defensor por excelência da Lei Máxima. Entende-se que essa função apresenta três desdobramentos principais: a guarda do conteúdo da Constituição (material), da ordem constitucional (institucional) e da efetividade da Constituição (pragmático).
Em relação ao primeiro desdobramento, pode-se tomar como norte a irretocável lição do Ministro José Néri da Silveira [6], que além de salientar o alargamento, na Constituição Federal de 1988, da competência do Supremo Tribunal Federal para declarar a invalidade de atos dos outros Poderes da República e dos Estados-Membros no desempenho de atividade normativa, e a função de servir como árbitro dos conflitos entre os Poderes ou entre a União e os Estados-Membros, destacou que:
"Pela função precípua de guarda da Constituição, conferida, em regra expressa, ao Supremo Tribunal Federal, cumpre-lhe, destarte, no exercício de sua competência, de forma terminativa, enunciar, no curso do tempo, o sentido e o alcance dos dispositivos da Lei Maior, incumbindo-lhe, outrossim, no exercício dessa competência, definir os exatos limites dos poderes que a Constituição quer investidos o Congresso, o Governo e os Tribunais, a União, os Estados e os Municípios, e proclamar o preciso conteúdo dos direitos e garantias fundamentais, a compreensão dos princípios regentes da ordem social, da ordem econômica e financeira, e apreciar a argüição de descumprimento de preceito fundamental".
Portanto, em sentido material, a atividade de conferir autenticidade às interpretações constitucionais (enunciar de forma terminativa) equivale ao cumprimento da função de Guardião da Constituição, desempenhada exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal.
O segundo desdobramento possui uma conotação política. É que a função interpretativa da Constituição, quando legitima as pressões sociais, age no sentido de afastar as piores conseqüências dos processos revolucionários, inerentes à vida social humana, como a desordem e a subversão violenta das instituições públicas, ao institucionalizar o fenômeno da construção e reconstrução da identidade constitucional, tão bem demonstrado por MICHEL ROSENFELD [7], e assim conferindo estabilidade ao sistema.
Por fim, o terceiro desdobramento refere-se a conferir efetividade à Constituição. Trata-se de uma necessidade de origem histórica, já que durante muito tempo as Constituições foram tidas como meramente programáticas, exigindo-se que desde a interpretação se busque conferir máxima efetividade às disposições constitucionais.
Desta feita, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Constituição, exerce o papel de Guardião da sua materialidade, da própria Constituição como instrumento inaugural da ordem jurídica e da sua efetividade. Contudo, ainda não estão devidamente equacionados, a esta constatação, os efeitos advindos de um efetivo Estado Democrático de Direito.
MENELICK DE CARVALHO NETTO [8], comentando o paradigma do Estado Democrático de Direito [9], elabora o seguinte raciocínio:
"(...) no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto".
Assim, a configuração de um efetivo Estado Democrático de Direito incide sobre a finalidade da atividade interpretativa, não bastando que esta apenas se desdobre como apontado. Na verdade, a função de guarda da Constituição está intimamente ligada à existência do Estado Democrático de Direito, e não pode ser hodiernamente compreendida de forma efetiva se dissociada deste. É, em última análise, o "destronamento da lei [10]", pela substituição do Estado Legal pelo Estado de Direitos, isto é, pela substituição dos legisladores pelos juízes, especialmente os Ministros do STF, na função de positivar direitos, pois o significado dos enunciados constitucionais somente tem se concretizado na atividade jurisdicional, a partir da qual se afere a validade ou invalidade da obra do legislador [11].
LUIZ FLÁVIO GOMES aponta as cinco principais funções do Poder Judiciário sob o regime do Estado Democrático de Direito [12], dentre as quais se destaca duas [13]:
"A (...) função da Magistratura, que se tornou marcante depois da Segunda Guerra Mundial, quando então passaram a prosperar as chamadas ‘constituições normativas’, consiste na tutela dos direitos e garantias fundamentais, que foram ‘constitucionalizados’ nas últimas décadas. Criou-se em torno desses direitos um conjunto de garantias, que se classificam em não-jurisdicionais (constitucionalização, eficácia direta e imediata, vinculação, inclusive horizontal) e jurisdicionais (tutela ordinária, extraordinária e internacional). A tutela jurisdicional, em suma, como se vê, é uma das garantias dos direitos fundamentais. Sem ela não existe garantia.
A (...) última função da Magistratura democrática e independente reside na sua posição de garante do modelo de Estado adotado no art. 1.° de nossa CF: Estado Constitucional e Democrático de Direito. No tempo do nascimento do liberalismo (político) falava-se em Estado de Direito. Dois novos dados foram-lhe agregados, particularmente nas últimas décadas: o constitucionalismo e a democracia. Especialmente nas chamadas ‘democracias emergentes’, que resultaram de longos eclipses democráticos, tem sido o Judiciário o esteio da sua existência. E onde se aniquilou a Magistratura (Peru, por exemplo), também afundou o sistema democrático".
Afinal, sob o Estado Democrático de Direito, "faz-se justiça não somente na medida em que o julgador seja capaz de tomar uma decisão consistente com o Direito vigente, mas para isso ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos, de buscar ver a questão de todos os ângulos possíveis e, assim, proceder racional ou fundamentadamente à escolha da única norma plenamente adequada à complexidade e à unicidade da situação de aplicação que se apresenta [14]".
Portanto, quando da apreciação da existência de outro meio judicial capaz de sanar a lesividade, não devem os Ministros ater-se à literalidade do § 1.° do artigo 4.° da Lei n.° 9.882/1999, mas se colocarem no lugar da parte argüinte, e perguntarem-se: poderá eventual medida judicial de cunho incidental gerar os mesmos efeitos de saneamento efetivo da lesividade?
Evidente que não. Lembre-se que as ações ordinárias e recursos extraordinários não se mostram aptos a resolver, na maioria das vezes, controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata [15]. Aliás, o excesso de recursos extraordinários, versando sobre a mesma matéria, possui um duplo efeito negativo, sobrecarregando o STF e dando azo a decisões judiciais nos mais diversos sentidos, gerando incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais, lesionando, respectivamente, os preceitos fundamentais do amplo acesso à tutela jurisdicional e da segurança jurídica.
Com efeito, a este entendimento soma-se a voz abalizada de ALEXANDRE DE MORAES [16], que também condiciona a necessidade de prévio esgotamento de todos os instrumentos juridicamente possíveis e eficazes para fazer cessar ameaça ou lesão a preceito fundamental à sua efetiva capacidade de saná-las, citando julgados do direito alemão. Lembra também DANIEL SARMENTO [17] que:
"Cumpre, no particular, não olvidar que um dos objetivos que inspirou a criação da ADPF foi o de possibilitar a antecipação de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre temas constitucionais relevantes, que, antes desta ação, só poderiam ser examinados pelo Supremo depois de muito tempo, após longas batalhas judiciais, quando já instalado um deletério clima de insegurança jurídica. Essa finalidade seria frustrada se fosse conferida interpretação puramente literal ao art. 4.°, § 1.°, da Lei n° 9.882/99, para obstar o cabimento das argüições incidentais sempre que existisse algum recurso disponível contra a decisão judicial".
Além disso, é obrigação do legislador, e pelos mesmos fundamentos do Poder Judiciário, dar máxima efetividade à previsão constitucional da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Senão, vejamos qual o entendimento do recentemente investido Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes, que participou da Comissão Celso Ribeiro Bastos, responsável pela criação de anteprojeto de lei encaminhado aos Ministros do STF para apreciação, e posteriormente apresentado pelo Deputado Prisco Viana como substitutivo ao projeto da Deputada Sandra Starling de regulamentação da argüição, que levou à edição da Lei n.° 9.882/99 nos seus atuais termos [18]:
"De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que, na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo, deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão – contido no art. 4, § 1.°, da Lei n.° 9.882, de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global.
Nesse sentido, se se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta inclusive da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata".
Afinal, há de se atentar que, mesmo no direito alemão e espanhol, onde vige o princípio da subsidiariedade para o recurso constitucional e o de amparo, respectivamente, aquele não é absoluto. Assim, a Corte Constitucional alemã, ao apreciar o Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional ou agravo constitucional), apesar de seu conhecimento estar submetido ao exaurimento das instâncias ordinárias, pode, presentes os requisitos do allgemeine Bedeutung (interesse geral) ou do schwerer Nachteil (perigo iminente de grave lesão), conhecê-lo e decidi-lo de imediato – Lei Orgânica do Tribunal, § 90, II. Da mesma forma, não obstante dispor a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional espanhol – art. 44, I, que somente cabe o recurso de amparo contra ato judicial que tenha esgotado todos os recursos utilizáveis dentro da via recursal, a jurisprudência e a doutrina têm entendido não ser necessária a interposição de todos os recursos possíveis, mas aqueles razoavelmente úteis [19].
Certamente, a subsidiariedade do instituto deve ser considerada à luz da sua natureza objetiva [20]. Em outro dizer, a necessidade de rigoroso exaurimento das demais instâncias deve ser inversamente proporcional à importância da questão constitucional suscitada para a sociedade.
Deve-se ter em mente que a argüição revela-se como um processo objetivo e abstrato, de forma que se justifica não no interesse concreto do argüinte, mas no da sociedade. Assim, em relação, por exemplo, a ato concreto do Poder Público que agrave direito subjetivo, tido como preceito fundamental, a admissibilidade de utilização da argüição deverá ser buscada, abstraindo-se seu sentido, no dano causado à sociedade por aquele entendimento, e não naquela lesão individualmente considerada, mesmo que seja possível a utilização de outro instrumento processual.
Além disso, deve-se apontar que a aludida lei previa, originalmente, além dos mesmos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade, a possibilidade de ser proposta por qualquer pessoa interessada. Somente sob esta ótica é que se poderia justificar a inclusão expressa do princípio da subsidiariedade somente na lei n.° 9.882/1999, e não na lei n.° 9.868/1999, que trata da ação direta de inconstitucionalidade e da declaratória de constitucionalidade.
Esse argumento junta-se aos demais para afirmar-se que não se justifica a interpretação literal do dispositivo legal em evidência, já que o objetivo de restringir o número de ações pela amplitude do número de legitimados já foi atingido pelo veto presidencial.