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Por uma reflexão constitucional-penal da disponibilidade da própria vida em um contexto eutanásico

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Agenda 18/11/2014 às 14:22

2. Da “Disponibilidade” do Direito à Vida:

Firmada a premissa de o direito à vida ser necessariamente relacional, uma garantia anteposta aos demais, forçoso é o reconhecimento de os contornos da tutela jurídica a este bem (de sua inviolabilidade, reitere-se) não se espraiar ao ponto de afirmar-se que o ser humano teria “frente à comunidade a obrigação de viver[30]”. Enfim, não cabendo aludir acerca de um superior interesse coletivo projetável contra o próprio titular, o conteúdo desta tutela não há de subjugar a pessoa, quando é esta, em toda sua complexidade, o centro da ordem normativa.

Saliente-se que o direito a viver, conforme art. 5º, caput da C.F., expõe apenas a faceta positiva deste exercício, não se defluindo dele per se a afirmação ou vedação da faculdade de dispor da vida. Mister se faz apreender na autodeterminação o supedâneo constitucional desta faculdade (inclusive, para deixar-se morrer).

Contudo, não é conseqüente necessário desta faculdade o envolvimento legítimo de outrem.

Lógica diversa preside a “disponibilidade” do direito à vida. Se é verdade que cada sujeito competente tem, adstringindo-se à esfera somente a si concernente, a livre condução de seus interesses e bens pessoais como melhor lhe aprouver, outrossim verdadeira é a assertiva de a regra de inviolabilidade aprioristicamente vincular terceiros, projetando-lhes dever de respeito e relativa proteção; a conduta de alguém, ao interferir no bem alheio em comento, não é indiferente; para tanto, há de revestir-se de legitimidade.

Especificamente neste ponto, ousa-se divergir de Paulo Queiroz, porquanto o autor, ao que parece, assenta a amplitude da faculdade que conforma o princípio da lesividade além de seus contornos; é dizer, ao tratar da repercussão do sobredito principio no uso e tráfico de drogas ilícitas, confere-lhe (à conduta autorreferente) inexoravelmente uma eficácia justificante de incursões alheias, por compreender que:

Finalmente, não se deve pensar que tais considerações sobre o princípio de lesividade não são válidas para o tráfico de entorpecentes, embora o fosse para o uso. Não. E isto por uma razão simples e muito lógica: o que a lei permite, ou vier a permitir, pela via direta (o uso), não pode, nem deve proibir ou vir a proibir, pela via indireta (a produção e o comércio). Uma coisa sem a outra é um contra-senso, algo absolutamente ilógico, além de socialmente danoso.[31]

Se se considera o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes potencialmente ofensivo a bem jurídico, o poder de consumo (uso) de tais substâncias por um sujeito não faz dessumir per se a legitimidade da transposição de outrem em relação a seu dever de respeito àquilo que se protege. Eis que do harm to others principle (princípio do dano), em sua perspectiva constitucional, podem ser inferidas duas dimensões: partindo da perspectiva do indivíduo (garantista), assegura-se-lhe a imunidade ante intromissões[32], quando as conseqüências de uma sua eleição circunscrevam-se ao estrito âmbito privado; por outro lado, hetero-lesões consentidas ou colaboração à auto-lesão podem dar azo a um legítimo paternalismo estatal. Poder-se-ia haurir nas palavras de John Stuart Mill (1991, p. 137) a ideia deste argumento:

o primeiro de tais preceitos é que o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém a não ser ele. Conselho, ensino, persuasão, esquivança da parte das outras pessoas se para o bem próprio a julgam necessária são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da conduta do individuo. O segundo preceito consiste em que, por aquelas ações prejudiciais aos interesses alheios, o indivíduo é responsável, e pode ser sujeito à punição.

A realidade constitucional brasileira parece propugnar por um mais restrito conceito de autorreferência, excluindo inicialmente de sua seara o exercício manu alius daquilo que alguém determina para si. É indicação desta valoração sistêmica o explícito preceito autorizando a criminalização do tráfico de substâncias entorpecentes (C.F. art. 5º XLIII). Se do princípio da transcendência (que permite, por via direta, o uso) defluisse inexoravelmente a permissão do tráfico, haver-se-ia de sustentar a inconstitucionalidade de norma constitucional originária. Sequer se alude desta extrema medida por se harmonizarem as duas dimensões da noção de ofensividade, fazendo integrar no conceito de autorreferência (strictu sensu) a pessoalidade em concretizar os planos autolesivos, excluindo-se interceder externo.

Deveras, constata-se que o exercício da autodeterminação não é dotado, em regra, de transcendência/transferibilidade aos demais; tem caráter pessoal, não significando, sem mais, que “esse direito de disponibilidade permita a intervenção de terceiros” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 288). Assim, o consentimento não é suficiente, v.g., para elidir a tipicidade do homicídio comissivo, se bem, pela menor reprobabilidade do injusto, enseja apenação atenuada em relação ao homicídio comum[33].

Doutrinadores espanhóis advogavam a necessidade de ter-se em conta a autodeterminação no homicídio consentido, já que não seriam situações valorativamente equivalentes matar alguém conforme ou contra a vontade da vítima, refletindo-se num menor grau do injusto, o que fora finalmente assimilado pelo Código Penal espanhol de 1995. Comparativamente, cumpre assinalar que o Código Penal brasileiro parece estar inserto naquela fase jurídica espanhola pós-Constituição de 1978, que alberga a dignidade como valor superior de sua ordem jurídica, fazendo saliente a importância do (auto)governo da pessoa sobre seu existir, e pré-Código Penal espanhol de 1995.

A inércia do legislador pátrio em proceder a uma reforma da legislação penal consentânea com a nova ordem constitucional não obsta, antes autoriza, que se engendre uma interpretação neste sentido, sabendo-se que “a norma não é o que está escrito no dispositivo” (CARNEIRO, 2004, p. 19), pois, como adverte Wálber Carneiro[34]:

Do dispositivo pode ser possível extrair uma ou mais normas jurídicas, sendo que, muitas vezes, dele não se extrai nenhuma norma, isto porque a norma jurídica será, necessariamente, extraída do ordenamento como um todo. (...) A norma, portanto, representa um enunciado comunicativo construído pelo intérprete a partir do sistema. Sendo linguagem, a norma não é nada em si mesma, logo, será somente aquilo que for resultado de sua interpretação.

Cotejando-se a regulação do auxílio ao suicídio, por seu turno, percebe-se que, embora lícito o suicídio (ao expressar a eleição do indivíduo sobre seu destino vital), o ordenamento brasileiro optou por restringir interferências alheias, à medida de um sopesamento legislativo entre a liberdade (e uma possível aptidão de envolver licitamente terceiros) e o respeito à vida de outrem. Óbice constitucional não haveria em proceder-se a descriminalização in abstracto da conduta referida, o que refletiria uma prevalência, ao ponderar-se, da autodeterminação e do controle exercido pelo titular do bem jurídico sobre a execução do fato lesivo, como já ocorre na Alemanha[35].

As disposições incriminadoras em comento (homicídio e auxilio ao suicídio) são pontos de partida de interpretação/aplicação do Direito, devendo ser submetidas a um inafastável juízo acerca de sua aplicabilidade em casos históricos ou simulados e, pois, de sua constitucionalidade in concreto.

Se se pretende conceber o sistema jurídico como um todo hierarquizado, harmônico e coerente, ao analisar-se uma conduta sob influxo do Direito, há de observar-se a gama de princípios e regras aplicáveis em tese, por vezes se instaurando uma aparente antinomia que, mediante técnica de ponderação de interesses, desnudará (argumentar-se-á) a norma jurídica aplicável ao caso. Os dispositivos legais não são realidades normativas desconexas, isoladas, integram um contexto uno e racional, cumprindo asseverar, firme no escólio de Eros Roberto Grau[36], que:

Não se interpreta o direito em tiras. A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao interprete sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum.

Por ter a Constituição Federal de 1988 albergado a dignificação humana como razão de existir do Estado constituído, prescrevendo que ninguém seja submetido a tratamento degradante ou penoso, há de se fazer uma releitura dos tipos legais de suicídio assistido e homicídio em um contexto eutanásico; “é preciso uma interpretação dos tipos penais acorde com a Constituição,” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 159) já que esta contempla “os limites do poder punitivo e os princípios fundamentais informadores do Direito penal” (COBO DEL ROSAL, M; T.S. VIVÉS ANTÓN apud VALLE MUÑIZ, 1989, p. 158).

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A eutanásia strictu sensu,[37]objeto da presente análise, pode ser compreendida como a conduta comissiva ou por omissão de um terceiro, mediante consentimento e no interesse de alguém que padece enfermidade, lesão ou invalidez (geralmente mortal) irreversível e sofrimentos físicos ou psíquicos atrozes, cuja finalidade é aliviar, não adiar ou antecipar o trânsito da vida à morte, colaborar com o suicida eutanásico ou, ainda, causar-lhe a morte, em não sendo o sofrimento de outro modo evitável. A hipótese eutanásica afigura-se como uma situação extrema na qual a postergação do processo existencial-biológico significa (implica) um trato desumano. Neste ponto, o princípio da dignidade da pessoa humana deixa de convergir com o princípio de respeito à vida. Exsurge, então, o conflito entre interesses constitucionais.

Oportunamente, cumpre esclarecer a inexistência da suscitada colisão quanto à denominada eutanásia consentida por omissão,[38] haja vista que, entendendo-se o suicídio como ato lícito a expressar o livre-arbítrio humano, poder-se-á intentá-lo diretamente, pôr-se em risco de morte (v.g., greve de fome) ou, estando nesta situação, solicitar a não submissão ou interrupção de tratamento vital (exemplo de negativa de transfusão de sangue por Testemunha de Jeová). Em este caso, o autogoverno individual, constitucionalmente assegurado, impera, já que, inexistindo dever de viver, a proteção dispensada pelo Direito não pode ser imposta a sujeito responsável.

Naquel’outros, entretanto, far-se-á absolutamente necessário superar o dever de respeitar o viver alheio. Embora se tenham os direitos a dispor da vida e a não padecer tratos degradantes, não os podendo concretizar manu propria, inexoravelmente haverá de compartilhar dita efetivação. Eis a questão lapidarmente exposta por Gonzalo Rodrígues Mourullo (apud LANUZA, 1999, p. XXVIII):

A regulação da participação no suicídio de outro (...) pressupõe um duplo reconhecimento: por um lado, confirma a disponibilidade da própria vida por seu titular, na medida em que não castiga (como poderia) o suicídio em suas formas imperfeitas; por outro, que a disponibilidade da vida por parte de seu titular não pode ser compartida com os demais. Mas o que fazer quando ao titular da vida, a quem se reconhece a disponibilidade da mesma, não está em condições de fazer efetiva por si mesmo tal disponibilidade? Não se esta reconhecendo uma disponibilidade vazia de conteúdo? Não se lhe está colocando, sob esta perspectiva, em uma situação de desigualdade frente àqueles que estão em condições de executar por si mesmos sua própria morte?

O dilema afirma-se quando o único meio de assegurar a dignificação ou cessar a degradação seja abreviar ou causar o trânsito derradeiro. Apesar de parecer paradoxal (e paradoxal não o é), quando a existência humana se resume a um martírio e “seja imposta como se fora uma pena[39][40]” (FÖPPEL, 2004, p. 20), como morte severina, que se morre de sofreguidão um pouco por dia, e quando o então direito à vida digna haja se transmutado em um sobreviver desumano, pode-se erigir um último propósito: morrer com dignidade. Ante a impossibilidade de valer-se por si para concretizá-lo, “não deixaria de ser um certo contra-senso admitir a licitude do suicídio causado por própria mão e denegar ao suicida as experiências alheias necessárias em não poucas ocasiões, suicidio longa manus”, segundo Quintano Ripollés (apud NUÑEZ PAZ, 1999, p. 44).

A expressão suicidio longa manus, ao significar o assassínio de si por interposta pessoa, decerto representaria uma contradictio in terminis se não pudesse ser compreendida a sua relevância e inteligência. Na eutanásia em sentido estrito, o consentimento exterioriza o querer (frustrado) de conduzir o destino vital de modo a afastar um estado desumanizante. Intervir redundaria em lesar naturalisticamente aquele processo biológico. Por outro lado, a passividade alheia relegaria o enfermo a uma espécie de tortura, não se olvidando que, por vezes, convertem-se as unidades de cuidados intensivos “numa câmara de tortura; ou mesmo que algumas enfermidades podem provocar padecimentos superiores aos que têm sua origem num exercício de sadismo policial.[41]

A conflituosa situação faz doutrinadores suscitarem, por fundamentos diversos, que se exima a responsabilidade penal do eutanasista. Argüi-se, como causa de exculpação, a inexigibilidade de conduta diversa, uma vez que, “sem dúvida, não se pode esperar de um parente que, ao ver seu familiar padecendo – algo que muito se aproxima da tortura – com isso concorde e nada faça para alterar. A irresignação e o instinto são inerentes às pessoas, fazem parte da estrutura do ser humano” (FÖPPEL, 2004, p. 22). Em palavras de Valle Muñiz, é fácil advertir, nas hipóteses de eutanásia, uma alteração emotiva importante que poderia influir consideravelmente no processo motivacional do autor, em razão do que, fazendo referência à posição firmada por Del Rosal Blasco, se há falado “de inexigibilidade de conduta em casos em que, por exemplo, o filho não pode suportar mais o sofrimento do pai, enfermo incurável” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 177).

“Não me parece que haja objeção alguma a tais considerações” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 177), assevera o autor, sustentando, todavia, que a eutanásia ativa direta consentida possa ser uma conduta justificada pela eximente de estado de necessidade[42].

Compreendendo-se os direitos fundamentais como realidades dinâmicas que se articulam para materializar o livre desenvolvimento da pessoa, é a conclusão do doutrinador espanhol sob a égide do anterior Código penal espanhol:

Não parece necessário insistir em que a configuração constitucional dos direitos e liberdades fundamentais, à medida que são expressão e concretização dos valores superiores do ordenamento jurídico, devem ser relevantes para o Direito penal. E, desde logo, devem conformar e incidir diretamente no juízo de antijuridicidade. (...) Assim, pois, entendo que a modalidade consentida de eutanásia ativa direta é enquadrável no tipo do inciso 2º do artigo 409 C.P[43]., mas sua realização poderia estar justificada pela eximente de estado de necessidade. (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 181)

Resta objetável, entretanto, a solução supra indicada.

A aplicação do Direito penal, instrumento institucionalizado de violência, reclama racionalidade com o todo normativo; sendo longa manus de um Estado Democrático de Direito, seus fins e limites são invariavelmente conformados por princípios que estruturam o ente e o exercício de seu poder. 

É verdade – trazendo à colação os ensinamentos de Paulo Queiroz – que, para desincumbir-se de sua missão e prezar pelo princípio da reserva legal, o legislador formula taxativamente esquemas, tipos em que se descrevem, com possível clareza e brevidade os comportamentos humanos passíveis de repressão penal, afirmando-se “que o legislador trabalha com tipos e pensa com tipos. É só delituosa a conduta humana que se lhe amolde rigorosamente” (QUEIROZ, 1998, p. 121).

De uma outra perspectiva, a subsidiariedade lógico-sistêmica do Direito penal permite conceber o delito como resultado de uma especial valoração de ilícito pré-existente no ordenamento jurídico; é cediço, então e ainda colhendo lições deste autor, que o ilícito nasce originariamente na Constituição do país e somente derivadamente na ordem infraconstitucional, como concretização do ilícito “constitucional-originário;” o ilícito penal conecta-se subsidiariamente aos demais ramos do direito, em razão de ser o mais rigoroso e extremado modo de tutela jurídica. Ressalta-se, “em conclusão: o ilícito, latente ou manifesto, preexiste à sistematização do direito penal; significando dizer que todo ilícito penal é, antes, um ilícito não penal” (QUEIROZ, 1998, p. 76).

Tudo isto para afirmar que mera subsunção formal da conduta a um tipo descritivo (legal) não exaure o juízo de tipicidade penal.

Se se analisa a possibilidade de valoração penal sobre um fato e a resultante responsabilidade, há de, preliminarmente e sob influxo do cânone nullum crimen sine lege, perquirir-se acerca da existência de um concernente tipo abstrato. Por vezes, poderá constituir ilícito civil ou administrativo sem que se o preveja in abstracto como crime ou contravenção, cessando neste ponto a averiguação proposta.

Casos outros há, no entanto, em que, conquanto uma conduta fosse passível, em tese, de amoldar-se a uma dada descrição legal, a co-incidência e primazia in concreto de outra regra ou princípio, geralmente constitucional, haurida no sistema tem a eficácia de obstar, desde logo, a ingerência penal; enfim, a tipicidade penal.

Verbi gratia, o Código Penal incrimina a subtração de coisa alheia móvel para si ou para outrem (art. 155 caput). Não se podendo, todavia, apreender em esquemas abstratos a multitude dos fatos da vida, a intensidade e extensão da lesão ao bem jurídico tutelado, restam subsumidas formalmente mínimas diminuições ao patrimônio alheio a contrastar com a drasticidade penal. Sob império do princípio da proporcionalidade, que delimita o atuar estatal, impede-se proceder um juízo positivo de tipicidade penal, embora se tenha implementado a referida subtração[44]. Com razão, Carlos Augusto Canêdo e Lúcio Chamon Júnior (2001, p. 78) advertem o seguinte:

O fato, quando ocorre, já nasce típico ou atípico, não existindo, nesse caso, uma tipicidade que será posteriormente excluída. Apesar de toda doutrina tradicional e contemporânea se referir à exclusão do tipo e do “injusto”, trata-se, na verdade, de postulado inadequado, visto que, como em matéria da ilicitude, não há exclusão, mas sim, quando muito, impedimento do juízo de tipicidade e de ilicitude por incidência de uma norma prima facie aplicável que impede a adequação de outras.

A hipótese de eutanásia caracteriza-se pela aparente colisão entre princípios/interesses constitucionais do respeito à dignidade da pessoa e, d’outro lado, do respeito à vida.

Se se parte de uma visão humanista (neopersonalista) da ordem normativa, segundo a qual os direitos e liberdades fundamentais se articulam dinamicamente para dotar de conteúdo e eficácia o primeiro (da dignidade) e isso com o único objetivo de salvaguardar o livre desenvolvimento da personalidade (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 180); em se concebendo que a vida não é um fim absoluto, mas um meio; que o término da existência pessoal não necessariamente contradiz a ideia de pessoa (JAKOBS, 2003, p. 13) e, mais precisamente, que a personalidade se manifesta não somente em como se vive, mas também em como se morre (GIMBERNAT ORDEIG, 2004, p. 5); salientando, afinal, que a vida tem um conteúdo de dignidade que não pode ser ignorado (NUÑEZ PAZ, 1998, p. 21), caberá a retórica indagação formulada de modo contundente por Francis Delpérée[45]: “para que serve o direito à vida, se esta for desprovida da mais elementar dignidade?”

Diante desta ponderação, inclina-se a balança para admitir gradativamente a prevalência do respeito à pessoa em detrimento da observância à sua sobrevivência. A existência biológica há de ser meio dotado de sentido para realização humana. Todavia, sob contexto eutanásico, a postergação do processo vital reverte-se em uma “humilhante escravidão; viver é um direito, não uma obrigação” penosa a ser suportada, sentencia Ramón Sampedro[46]. Em tais casos, o ser humano se torna escravo de sua própria vida, não podendo, sem ajuda alheia, pôr fim ao seu martírio, efetivar o único propósito que expressa sua personalidade: morrer dignamente.

In casu, a primazia daquele tido como valor superior da ordem jurídica parece desvendar no sistema uma norma permissiva adequada também aos casos de eutanásia ativa consentida, sendo objetável – aqui se retoma a crítica a Valle Muñiz – que logre incidência apenas no juízo de antijuridicidade como estado de necessidade.[47]

A concepção humanista do sistema constitucional há de ser observada não apenas no modo de se executarem as penas, como conseqüência do ius puniendi; primordialmente, conforma os fins e seu conteúdo, no esteio da explanação de Luiz Flávio Gomes:[48]

Os princípios, normas e valores típicos do Estado Constitucional e Democrático de Direito condicionam os fins legitimadores do Direito penal, que por sua vez condicionam o conteúdo e a estrutura das normas penais, que por seu turno condicionam o conteúdo e a estrutura da teoria do fato punível. É nesse sentido que se pode falar numa teoria constitucional do fato punível.

Nesta senda, quando protrair-se a existência redunde irremediavelmente em violar a condição humana, impelindo-se a alguém uma situação desumana (C.F. art. 5º, III), a conduta de terceiro, apesar de poder findar (homicídio eutanásico) ou colaborar (auxílio eutanásico ao suicídio) com o término do curso vital, ao concretizar o fundamento normativo da República Federativa do Brasil em promover a dignificação humana (C.F. art. 1º, III) ou fazer cessar, a pedido, a degradação, sequer deveria ser reputada penalmente típica. Eis que o Estado de Direito preconizado pela Carta política estrutura-se como instrumento a determinados fins; existe tão-somente para cumprir as funções e atingir os objetivos para os quais foi concebido, não poderá, pois, insurgir-se e fulminar, direta ou indiretamente, o fundamento jurídico sobre o qual se assenta.

Sendo a tipificação penal ato emanado do Estado, não poderia este reputar susceptível de adequação típica conduta estritamente direcionada à concreção do objetivo ao qual está jungindo e pelo qual deve velar de oficio. D´outro modo, estaria a instituir “um arsenal de normas jurídicas que lesam reflexamente a dignidade da pessoa humana” (ROMEO CASABONA), fulminando, paradoxalmente, seu alicerce jurídico - no dizer de Tércio Sampaio Ferraz Júnior - “sua conditio per quam e conditio sine qua non,” fator sem o qual “a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável” (apud GRAU, 2003, p. 190).

Sublinhe-se que nem toda ofensa naturalística a um bem (in casu a vida) há de revestir-se de tipicidade penal, haja vista que esta não se circunscreve a um formal silogismo do fato à simples descrição incriminadora. Deve-se perscrutar no sistema, no todo harmônico e coerente, como se posiciona este ante ao acontecimento em apreço e qual a norma jurídica (não apenas o dispositivo legal) a ele adequada. Consoante assevera Wellington Cezar Lima e Silva, se o “cotejo da globalidade autoriza, permite a conduta, não estaria confirmada a tipicidade legal”, pois esta “só existiria após análise global” (2004, informação verbal).[49] Poder-se-ia, trazendo à colação um exemplo corriqueiro analisado pela doutrina, cogitar que as intervenções cirúrgicas com finalidade terapêutica, em conformidade com a lex artis, ao causarem lesões corporais seriam típicas, mas sobre tais condutas incidiria uma causa de justificação. Face a uma lógica sistêmica, não se pode olvidar que os tipos legais estão inseridos em um contexto pretensamente coerente, cabendo então ao intérprete proceder, como restou consignado, uma análise global acerca do posicionamento do sistema em relação ao fato sub examine. Oportuna a explanação de Zaffaroni e Pierangeli:[50]

Não obstante, dizer que o cirurgião age ao amparo de uma causa de justificação é tão pouco coerente como afirmar que o oficial de justiça comete furto justificado. Além do fato de que o direito, eventualmente, obriga o cirurgião a praticar certas intervenções, não há dúvida de que as intervenções cirúrgicas, com finalidade terapêutica, são altamente fomentadas pela ordem jurídica, o que pode ser comprovado por uma ligeira consulta à legislação sanitária. Como, conforme os princípios que regem a tipicidade conglobante, resulta inadmissível que uma norma proíba o que outra fomenta, dentro da mesma ordem normativa, o problema deve ser resolvido neste nível, sem pretender a inexistência do tipo legal, nem cometer a incoerência de explicá-lo em nível de justificação.

O crime não tem existência ôntica, não é uma realidade meramente fenomenológica, mas normativa, regida por racionalidade própria. Dessarte, o juízo de tipicidade penal de uma conduta não é simplesmente transladar o acontecimento no mundo dos fatos (causação de lesões corporais e da morte alheia) e promover uma subsunção a um esquema abstrato. Há de proceder-se uma valoração jurídica necessariamente sistêmica. “Não se interpreta o direito em tiras” (GRAU, 2003, p. 40).

Se colaborar com o suicídio ou matar alguém sob a hipótese de eutanásia é absolutamente necessário à efetivação do princípio que representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, o qual irradia “efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, conferindo unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na ideia de respeito irrestrito ao ser humano” (SARMENTO, 2003, p.59-60), exsurge, ao primar-se pela realização do vetor normativo multicitado, uma eficácia imunizante, impediente de conformação típico-penal.

Nestes lindes, é possível argüir-se a aplicabilidade de norma permissiva a envolver legitimamente a conduta do agente eutanasista. Na eutanásia passiva consentida, a negativa em iniciar ou prosseguir um tratamento consubstancia a afirmação de um direito fundamental do ser humano em conduzir sua integridade física, sua liberdade ambulatorial e sua vida, inclusive para deixar-se morrer.

A eutanásia ativa consentida “é um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana (...) significa o desejo de reapropriação de sua própria morte[51]” (BAUDOUIN e BLONDEAU apud BORGES, 2001, p. 285); enfim reivindicar o direito a morrer com dignidade é, em última instância, franquear espaço de legítimo interceder alheio para concretizar ou viabilizar a disposição (frustrada por absoluta impossibilidade) da vida in extrema ratio, por não se poder de outro modo elidir a desumanização representada pelo processo existencial em este contexto.

É, pois, conceder gradativamente maior amplitude aos explicitados contornos de autorreferência quando o indivíduo, “estando prostrado, deseja dar-se morte a si mesmo, mas sua prostração o impede fazê-lo por própria mão ou, podendo fazê-lo, o método seria sumamente doloroso ou denigrinte.[52]” Diz-se gradativamente porque a harmonização do conflito de interesses (dignidade e vida) há de pautar-se por uma proporcional redução do alcance daquele que restou prejudicado. Assim, far-se-á preferível a colaboração ao suicídio relativamente ao homicídio eutanásico, constituindo este medida de extrema excepcionalidade, já que, tendo em conta o caso de Rámon Sampedro, verifica-se a possibilidade de alguém que padeça de tetraplegia dar-se morte ingerindo uma substância letal[53].

A diferença básica entre tais condutas é que a execução (e eventual desistência) do ato fica em mãos do suicida, sendo uma garantia a mais da seriedade do seu propósito de ultrapassar o trânsito final. Dizendo com Claus Roxin, no auxílio ao suicídio a decisão de quem é titular do domínio do último ato que, irremediavelmente, conduz à morte reside no suicida; se residir em um estranho, se trata de homicídio a pedido. “Existe, pois, uma importante diferença entre aquele que se dispara um tiro na cabeça e aquele outro que pede que se o disparem,” já que “quem se dispara com sua própria mão se manteve firme em sua ultima decisão” (ROXIN, 2001, p. 27-49).

O paternalismo estatal indireto[54], consubstanciado nas disposições legais tratadas, prescrevendo que terceiros se omitam, sob pena de intervenção penal, reputa-se, nessas situações, carente de lastro normativo ao pôr-se em antagonismo completo com o princípio que lhe (ao Estado) conforma a existência e uma válida atuação.

Conquanto a colaboração ao suicídio e o homicídio fossem formal e abstratamente previstos, permite-se inferir da análise da globalidade que, diante das especialidades das hipóteses em comento, o sistema constitucional autorizaria tais condutas absolutamente necessárias a possibilitar uma morte de feição humana, já que, reitere-se, distanciando-se desta perspectiva e dos seus fins legitimadores, a ordem reconhecida deixaria de ser aquela preconizada, ela “passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável” (FERRAZ JUNIOR apud GRAU, 2003,p. 190), para compartir da opinião de Tomás-Valiente Lanuza (1999, p. 152/3), segundo a qual:

Em um contexto eutanásico, no qual o desejo de terminar com o sofrimento através da morte pode ser perfeitamente racional, desde um ponto de vista interno dos valores e preferências últimas do indivíduo, concluímos que a privação da colaboração alheia através de sua proibição penal supõe uma mostra de paternalismo forte indireto que não encontra justificação ética – tenha-se em conta que a um sujeito que se faça em este tipo de circunstancias frequentemente lhe é muito difícil suicidar-se de forma humana se não for com alguma ajuda -, menos ainda em uma sociedade que – coincidindo com a percepção do próprio paciente – rechaça a dor e o sofrimento sem esperança de cura como um mal que é desejável evitar. 

E arremata:

Sem embargo, foram sugeridas algumas ideias que induzem a pensar que tais riscos [do levantamento da proibição] (que. de serem certos. legitimariam a proibição) poderiam ser controlados, o que abundaria na conveniência de descriminalizar as condutas eutanásicas solicitadas pelo paciente, descriminalização esta que, de chegar a produzir-se, deveria restringir o homicídio admissível unicamente aos casos nos quais o paciente não possa sequer ingerir por si mesmo a dose de medicamentos necessários para terminar com sua vida.

Expendidas estas considerações, pode-se concluir com a síntese pertinente e precisa de Mercedes García Arán[55]:

Em suma: desde o ponto de vista constitucional, cabe perfeitamente admitir a licitude de executar a própria morte, mas estabelecer que a disponibilidade somente é exercível por terceiros (substituível) no caso de impossibilidade do titular da vida ou em outras hipóteses excepcionais.

Sobre o autor
Carlos Otávio Reis de Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Carlos Otávio Reis. Por uma reflexão constitucional-penal da disponibilidade da própria vida em um contexto eutanásico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4157, 18 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34068. Acesso em: 19 nov. 2024.

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