INTRODUÇÃO
A existência jurídica da pessoa natural termina com a morte, conforme teor da primeira parte do art. 6º, do Código Civil. Assim, a constatação da morte determina a supressão da personalidade jurídica, conferida ao ser humano pelo sistema legal. Por consequência, o falecido deixa de ser destinatário de normas jurídicas, não podendo mais ser considerado sujeito de direitos ou de obrigações.
Algumas situações jurídicas, reputadas intransmissíveis, são extintas com o falecimento do seu titular, como ocorre com o poder familiar (art. 1.635, I, CC), com a sociedade conjugal (art. 1.571, I, CC), com o usufruto (art. 1.410, I, CC), com os contratos personalíssimos, por exemplo, prestação de serviço (art. 607, CC) e mandato (art. 682, II, CC).
Outras situações jurídicas, ativas ou passivas, mas consideradas transmissíveis, não são extintas com a morte do seu titular, em evidente benefício da estabilidade, da eficiência e da justiça de inúmeras interações sociais. Excetuadas aquelas que se aniquilam por força de sua própria natureza ou por imperativo legal, as demais situações jurídicas, caracterizadas por sua patrimonialidade, sobrevivem ao falecimento de seu titular, impondo-se o problema do destino dos respectivos direitos e obrigações.
Compete ao direito sucessório, também designado direito das sucessões ou direito hereditário, regular o destino, depois da morte de uma pessoa, dos seus direitos e obrigações que subsistem para além dessa morte. O direito das sucessões é o setor do direito civil responsável pelas regras que delimitam a transmissão do patrimônio de alguém que deixa de existir.
O Código Civil é a primordial fonte legislativa do direito sucessório, que ocupa o Livro V, da Parte Especial. Além disso, a Constituição da República, em seu art. 5º, XXX, enuncia: “é garantido o direito de herança”
O objetivo, no presente trabalho, é apresentar os elementos que compõem uma teoria geral do direito sucessório, isto é, aqueles conceitos e aquelas proposições indispensáveis para uma compreensão introdutória do fenômeno jurídico sucessório. Previlegia-se a dinâmica entre a doutrina e a jurisprudência na descrição do regime legal de institutos como a abertura da sucessão, a indignidade, a aceitação e a renúncia da herança, sem esquecer de conceitos básicos como os de sucessão, suas modalidades e seus destinatários, assim como os de morte e suas espécies.
1 - CONCEITO E ESPÉCIES
Em sentido amplo, afirma-se que sucessão designa a transferência de direitos e obrigações de uma pessoa para outra. Assim, ocorre sucessão “quando uma pessoa fica investida num direito ou numa obrigação ou num conjunto de direitos e obrigações que antes pertenciam a outra pessoa, sendo os direitos e obrigações do novo sujeito considerados os mesmos do sujeito anterior e tratados como tais”. Com acerto, Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira assinala que o traço essencial da sucessão situa-se na permanência de uma relação jurídica que perdura e subsiste a despeito da mudança dos respectivos titulares.
A transferência de direitos e obrigações pode ser desencadeada por ato realizado pelo seu titular em vida, assim como em virtude do fato morte. A primeira é conhecida como transmissão inter vivos, enquanto a segunda, como transmissão mortis causa.
Interessante destacar, a transmissão mortis causa. Em sentido estrito, utiliza-se o termo sucessão para designar a transferência do conjunto de direitos e obrigações de alguém que falece para outro que ainda está vivo. A propósito, assinalam Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:
"emprega-se o vocábulo sucessão em sentido estrito para identificar a transmissão do patrimônio apenas em razão da morte, como fato natural, de seu titular, tornando-se o sucessor sujeito de todas as relações jurídicas que àquele pertenciam”
Quanto à sua origem, a sucessão pode ser classificada como legítima ou testamentária (art. 1.786, CC):
“Art. 1.786. A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”
A sucessão legítima, também designada ab intestato, é aquela derivada imediatamente da lei, que se encarrega de indicar quais pessoas serão consideradas titulares da cadeia hereditário. Ocorrerá sempre que o falecido não tiver deixado testamento ou quando este negócio jurídico for julgado nulo ou caduco.
A sucessão testamentária é aquela derivada de disposição de última vontade do de cujus, expressa em testamento, elaborado de acordo com as condições estabelecidas por lei, no qual o próprio autor da herança elege os seus sucessores. Ocorrerá sempre que o falecido houver contemplado todo o seu patrimônio em testamento e não possua herdeiros necessários, isto é, descendentes, ascendentes ou cônjuge.
Sublinhe-se que as duas modalidades de sucessão não se excluem. Caso o autor da herança possua herdeiros necessários, poderá livremente dispor de apenas metade do seu patrimônio no testamento, uma vez que a outra parte reputa-se reservada aos referidos herdeiros, sendo-lhes deferida em consonância com os parâmetros da sucessão legítima (art. 1.789, CC). Além disso, caso o autor da herança não contemple toda a parcela disponível de seu patrimônio no testamento, o remanescente será distribuído aos seus herdeiros segundo os ditames da sucessão legítima (art. 1.788, CC). Portanto, nestas hipóteses, a sucessão testamentária conviverá com a sucessão legítima, aplicando-se simultaneamente sobre parcelas distintas do patrimônio do falecido.
Aquele que morreu é chamado autor da herança ou de cujus 10, sem prejuízo da utilização de designações vulgares, como falecido, morto, defunto ou finado. Por sua vez, aqueles que recebem o patrimônio deixado pelo defunto são qualificados como sucessores ou herdeiros. Finalmente, o conjunto de bens, direitos e obrigações - o patrimônio - que alguém deixa ao morrer é denominado herança ou acervo hereditário, podendo também sê-lo, na ótica processual, espólio.
2 - MORTE E SUCESSÃO
A morte é a causa do fenômeno sucessório. Sem a morte, real ou presumida, não há que se falar em sucessão. A propósito, não se pode deixar de lembrar que é considerado ilícito todo contrato que tenha como objeto herança de pessoa viva (art. 426, CC).
2.1 - MORTE REAL
Em regra, a morte é verificada perante o cadáver. Trata-se da morte real, configurada por meio da cessação das diversas funções orgânicas responsáveis pela vida do ser humano. Sabe-se, contudo, que as funções vitais do organismo não se interrompem em simultâneo, sendo a morte produzida não em um instante, mas por etapas sucessivas, em determinado espaço de tempo, o que acaba por exigir a eleição de certo momento para a sua determinação jurídica.
Tradicionalmente, a morte era verificada pela falência das funções cardíaca e respiratória. No entanto, o desenvolvimento tecnológico exigiu uma revisão de tais critérios, uma vez que se tornou possível estender indefinidamente os sinais vitais de uma pessoa por meio de aparelhos, assim como executar a remoção e a transplantação de diversos órgãos e tecidos do corpo humano. Atualmente, a morte é determinada pela “cessação irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico, onde se situam as estruturas responsáveis pela manutenção dos processos vitais autônomos, como a pressão arterial e a função respiratória”.
Importante também destacar que a morte real será atestada por médico, que declarará a causa e o momento do falecimento, levados em conta na lavratura do registro de óbito junto ao cartório civil.
2.2 - MORTE PRESUMIDA
Em algumas situações, apesar da morte real ser extremamente provável, torna-se inviável a sua efetiva comprovação, em função da impossibilidade de recuperação do cadáver ou da inexistência de outras provas que atestem cabalmente o acontecido. Quando o desaparecimento de alguém tenha ocorrido em determinadas circunstâncias que não permitam duvidar de sua morte, apesar de não ter sido possível encontrar ou identificar seu cadáver, considera-se, para fins jurídicos, a pessoa natural falecida. Trata-se da morte presumida.
Convém destacar que a morte presumida resultará sempre de um provimento judicial, iniciado por qualquer interessado na constatação do evento, por exemplo, esposa, companheira, pais, filhos, credores.
A primeira hipótese de morte presumida, conforme a segunda parte do art. 6º do Código Civil, é aquela decorrente da ausência. Presume-se a morte do ausente, depois de transcorridos dez anos do trânsito em julgado da sentença que concede a abertura da sucessão provisória ou após o transcurso de cinco anos das últimas notícias do ausente, quando este já contar com mais de oitenta anos. Importante ressaltar que a declaração judicial de ausência, comprovando-se o simples desaparecimento do indivíduo do seu domicílio, não significa certeza do óbito. Somente verificar-se-á morte presumida nos casos autorizativos da abertura da sucessão definitiva dos bens do ausente, disciplinados nos arts. 37 e 38 do Código Civil.
As outras hipóteses de morte presumida encontram-se elencadas no art. 7º do Código Civil. A morte presumida poderá ser declarada, sem a decretação de ausência, quando for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida, como nas situações de pessoa desaparecida em virtude de naufrágio, de acidente aéreo ou de catástrofes naturais muito graves (art. 7º, I, CC). Poderá também ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência, quando alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra (art. 7º, II, CC). Assinala Caio Mário da Silva Pereira que o desaparecido pode ser militar ou não, uma vez que as guerras modernas atingem também as populações civis, com bombardeios, campos de concentração, deslocamento para trabalhos forçados.
A declaração da morte presumida, em qualquer das hipóteses do dispositivo legal em comento, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento (art. 7º, parágrafo único, CC).
3 - ABERTURA DA SUCESSÃO
A abertura da sucessão é efeito jurídico da morte. Orlando Gomes lembra-nos que a abertura da sucessão não se confunde com a morte, apesar de cronologicamente com ela coincidir em virtude de uma ficção jurídica. Denomina-se abertura da sucessão o desligamento do autor da herança da titularidade daqueles direitos e obrigações suscetíveis de transmissão que compõem o seu patrimônio. Dá-se lugar ao nascimento do direito de herdar.
Ocorrem, no mesmo instante da abertura da sucessão, a delação sucessória e a aquisição da herança. Chama-se delação sucessória a colocação da herança à disposição de quem possa adquiri-la, enquanto aquisição da herança designa a incorporação do acervo hereditário no patrimônio dos herdeiros.
Vale dizer, embora conceitualmente distintas, na sistemática legal brasileira, estas três fases do processo sucessório verificam-se simultaneamente. E, portanto, aberta a sucessão, transmite-se, desde logo, a herança aos herdeiros (art. 1.784, CC). É a consagração do droit de saisine.
A abertura da sucessão determina, sem qualquer mediação de tempo, a aquisição do patrimônio do falecido pelos seus herdeiros, não dependendo de qualquer ato dos sucessores, ainda que estes não tenham sequer tomado conhecimento dela. Em outras palavras, morto o autor da herança, esta é transferida de pleno direito e imediatamente aos sucessores.
Sublinhe-se que os herdeiros se tornam titulares dos direitos, mas também das obrigações que pertenciam ao falecido, limitando-se, contudo, a responsabilidade pelas dívidas ao ativo hereditário (art. 1.792, CC).
Importa ainda ressaltar que a herança será deferida aos sucessores como bem imóvel e indivisível, sendo regulada pelas normas relativas ao condomínio até sua partilha (art. 1.791, CC). A propósito, assinala Washington de Barros Monteiro:
“O herdeiro tem direito sobre uma parte ideal do acervo hereditário, que só na partilha será definido e individualizado. Enquanto se processa o inventário dos bens deixados, ativos e passivos, essa massa deve ficar sob a administração de alguém, o administrador provisório e depois o inventariante, que velará pela sua guarda e manutenção até que, pela partilha, seja objeto de divisão, concretizando o quinhão de cada um, que receberá então os bens que lhe tocaram”
Admite-se que o herdeiro, mesmo não tendo a sua quota da herança discriminada, possa transmiti-la, no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, a outrem, por meio de escritura pública (art. 1.793, CC). Advirta-se que, antes da partilha, o herdeiro pode alienar ou ceder apenas sua quota ideal, não lhe assistindo o direito de separar do acervo hereditário coisa certa e determinada, para transferi-la a terceiro. Entretanto, não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se co-herdeiro a quiser, nas mesmas condições (art. 1.794, CC). Estabelece a lei que o co-herdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão e depositar o preço (art. 1.795, CC).
3.1 - TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSÃO
Como já dito, a abertura da sucessão coincide, cronologicamente, por efeito de ficção jurídica, com o instante da morte, e não com outro momento anterior ou posterior. Além de marcar o instante em que se opera a transferência do patrimônio do falecido aos seus herdeiros, o momento da abertura da sucessão também serve como referência para delimitação da lei aplicável ao fenômeno sucessório. Sublinhe-se que a lei vigente ao tempo do falecimento do autor da herança regulará a legitimação para suceder e a própria sucessão (art. 1.787, CC). Entre nós, aliás, essa regra produziu relevantes consequências em razão das modificações introduzidas pela ordem constitucional vigente na disciplina da estrutura familiar.
Assume relevo particular fixar o momento da abertura da sucessão quando dois ou mais indivíduos, reciprocamente herdeiros, morrerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar, faticamente, quem faleceu primeiro. Nestas circunstâncias, estabelece a lei que se presumirão simultaneamente mortos (art. 8º, CC). A presunção, elemento essencial do instituto da comoriência, pode ser compreendida como a consequência que o sistema jurídico deduz de certos fatos, e que fica estabelecida como verdadeira, mesmo sendo obtida por meio de um exame baseado em indícios. Vale dizer, é o resultado de um julgamento fundado em aparências.
Ora, em caso de falecimento sem possibilidade de fixação do momento exato das mortes, o ordenamento jurídico firma a presunção de óbito simultâneo, que acaba por elidir a possibilidade de transmissão de direitos e obrigações entre os falecidos e, consequentemente, determina a abertura de cadeias sucessórias distintas. A utilidade da comoriência está, portanto, no seu efeito, que é a intransmissibilidade de posições jurídicas entre comorientes, como se entre eles não tivesse havido qualquer vínculo sucessório.
3.2 - LUGAR DA ABERTURA DA SUCESSÃO
A abertura da sucessão ocorre no último domicílio do falecido (art. 1.785, CC), ainda que o óbito tenha se verificado em outro local e os seus bens se encontrem em localidade diversa.
Lembre-se que domicílio designa o município no qual a pessoa natural estabelece sua residência com ânimo definitivo. Em regra, o indivíduo determina livremente o seu domicílio, bastando se fixar em determinado lugar com intenção de permanência (art. 70, CC), admitindo-se, inclusive, a pluralidade de domicílio (art. 71, CC).
O lugar da abertura da sucessão é importante para fixação do juízo competente em diversas questões relativas à sucessão, entre elas o inventário 26. Se o falecido tinha vários domicílios, o inventário poderá ser iniciado em qualquer deles, determinando-se a competência do juízo por prevenção 27. Se o falecido tinha domicílio incerto, o foro competente para o inventário será o do local da situação dos bens (art. 96, I, CPC) ou do lugar em que ocorreu o óbito (art. 96, II, CPC).
Convém advertir que a autoridade judiciária brasileira será competente para processar o inventário das pessoas domiciliadas no país, no momento da morte, independentemente da nacionalidade. Além disso, também será competente para o processamento de inventário dos bens situados no país, ainda que o autor da herança, no momento da morte, tenha domicílio apenas fora do território nacional (art. 89, II, CPC). Nesta última hipótese, em regra, o juiz brasileiro deverá observar a legislação aplicável no domicílio do falecido, mesmo que estrangeira (art. 10, LICC). Contudo, deverá aplicar a legislação brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do falecido (art. 5º, XXXI, CR/88).